Prenúncio do fim





As sessões da meia-noite costumavam ser um verdadeiro acontecimento naqueles tempos em que não dispúnhamos de muitas opções de lazer. Para se ter uma ideia, até o final da década de 1960, existiam apenas quatro cinemas no centro da cidade. As poucas possibilidades que tínhamos à nossa disposição eram as chamadas tertúlias, pequenas festas regadas a ponche, que era uma mistura de suco de uva com pedacinhos de maçã. Havia ainda os conhecidos encontros de jovens que costumavam acontecer nos clubes da cidade. 

Quando não se tinha nenhum bailinho à vista, a saída era assistir a uma dessas sessões que eram realizadas  todos sábados no Cine São Luiz (depois de 1971 elas passaram a acontecer no moderno e requintado Cine Veneza), onde eram exibidos as chamadas avant première dos filmes que só iriam entrar em cartaz semanas depois.

Normalmente, antes de começar a sessão, costumávamos nos dirigir primeiramente para a ponte Duarte Coelho, que ficava quase em frente ao cinema, principalmente se o filme fosse proibido para menores de 18 anos. No final da década de 1960, início dos anos 1970 (estávamos no início dos anos 70), uma boa parte daquele nosso grupinho ainda não tinha atingido essa idade.

Quando chegávamos à ponte, nos dirigíamos até um ponto de onde fosse possível ficar espreitando o movimento das pessoas que  normalmente se apinhavam em frente às bilheterias que costumavam se formar longas filas para a compra do ingresso.

Sentávamos naquelas balaustradas de pedra sabão e fumávamos nervosos  deixando que a maior parte das pessoas que se espremiam na entrada do cinema entrasse primeiro. 

Quando a grande maioria já tinha entrado e a bilheteria se encontrava um pouco vazia, nós estufávamos o peito e nos enchíamos de coragem para enfrentar aquele terrível e mal encarado porteiro.  Ele sempre implicava conosco.  Ora, éramos muitos jovens e excetuando-se um ou outro, ainda imberbes, e mesmo que fizéssemos cara de bravos (achávamos que os mais velhos eram todos muito sérios), isso não ajudava muito. 

Para nos auxiliar um pouco nessa terrível empreitada, tínhamos do nosso lado uma carteira de estudante devidamente falsificada pelo nosso grande mestre P-zinho.  P-zinho era um pouco mais velho que a grande maioria daqueles rapazes do nosso grupo e embora tivesse apenas uns dois anos a mais que a gente, como ele era tio dos irmãos ML, C-zinho e M, nossos companheiros do bairro, outorgávamos a ele uma maturidade que o coitado ainda não possuía.

P-zinho era um sujeito de fala mansa e aquele seu trejeito um tanto desligado conferia-lhe uma característica única. Tinha um talento nato para falsificar carimbos e assinaturas e por isso o elegemos como o nosso falsificador Mor. As nossas carteiras de estudante eram todas adulteradas por ele, principalmente no que tange o quesito idade. 

Ele era um rapaz um tanto inclassificável para o nosso ainda rude repertório de palavras, mas mesmo sendo diferente dos demais, ainda assim conseguia ser adorado por todos. Ele era o cara do... “não sei, acho que talvez, quem sabe?...”  Era o tipo de pessoa que poderíamos chamar de... O indeciso.

De posse daquele documento, nos enchíamos de coragem e partíamos para enfrentar a fera. Nessas ocasiões, eu, que sempre fui um tanto medroso, caminhava normalmente sem muita firmeza, tremendo que nem uma vara verde.  Quando lá chegava, exibindo a minha carteira, imediatamente o meliante malvado a tomava das minhas mãos e ficava de uma forma tremendamente ostensiva olhando alternadamente para a minha foto e para o meu rosto.  Aquilo me irritava profundamente. O diálogo que geralmente se seguia era mais-ou-menos assim:

-             Você tem dezoito anos, rapaz?
               Tenho, sim Senhor.
              Não parece, não!
              Tenho sim, fiz no mês passado, - eu respondia sem muita convicção.
              Fulano! – chamava ele por algum outro funcionário do cinema.
              -   Não cria confusão, cara! Me deixa entrar logo. O filme já está começando, – eu insistia.
              Fica quieto aí, - retrucava ele.
             Olha esse cara e esse documento. Acha que esse sujeito tem mais de dezoito anos?

Era uma briga eterna pois a grande maioria daqueles garotos ainda não tinha chegado à tão esperada idade da libertação e os melhores filmes daquela época eram todos proibidos para menores de 18 anos. 

Haviam porteiros que eram mais tranquilos, mas, em compensação, existiam outros que eram verdadeiros Caxias.  Nem sempre lográvamos êxito nessa empreitada e por isso eu ficava com tanto receio todas as vezes que precisava encarar essas situações.

X

Aquele sábado, em especial, iria se tornar um daqueles dias que poderíamos considerar como sendo antológicos.  Passava das vinte e três horas quando, de longe, ainda na Rua Sete de Setembro, avistamos um bando de garotos caminhando alegremente pela Avenida Conde da Boa Vista. Eles estavam se dirigindo para o cinema pois um grande filme iria estrear naquela noite.

Eram grupos de variados tamanhos,  alguns maiores, outros menores, com uns mais calados e outros mais barulhentos. Naquela época, chamávamos isso de algazarra. Juntamos-nos àquela improvável passeata compartilhando da mesma alegria e lá fomos viver o nosso tão esperado dia.

A nossa turma se encontrava em grande número naquela noite pois o evento que estava  prestes a acontecer permitia que todos nós do bairro da Boa Vista, indiferentemente de idade e afinidade, ficássemos juntos. É que a classificação de censura do filme era "Livre". Como sempre, havia dentro daquele nosso grupo algumas divisões, com os mais velhos de um lado e os mais novos do outro.

Éramos um grupo de aproximadamente uns doze ou quinze garotos, sendo que os mais velhos, que era o grupo em que eu me encontrava, estava à frente, enquanto atrás de nós marchava aquela garotada mais nova, eles, inclusive, em maior número. E pra variar, faziam uma algazarra pra lá de barulhenta.

Naquele dia, seria exibido pela primeira vez em Recife, o filme Let it Be,  por isso aquele intenso movimento de jovens caminhando em direção ao cinema. Estávamos todos eufóricos e bastante ansiosos diante daquele grande acontecimento. Nos demais finais de semana, normalmente naquele horário, a avenida já se encontrava bastante vazia. Só que naquele dia, em especial, estava sendo diferente pois a película que iria estrear era o esperado documentário que tinha sido feito sobre Os Beatles, que haviam acabado de lançar recentemente dois discos maravilhosos, o Let it be e o Abbey Road.  Além disso, existiam rumores que a banda havia chegado ao fim.  Não era à toa que a moçada estava tão excitada. Entre nós, existiam fans fervorosos do grupo. Eu era um deles.

Havia chovido um pouco mais cedo e o ar úmido e quente que subia do asfalto, somado-se à brisa fresca que vinha do oceano carregando à tira colo o cheiro forte que exalava das águas do rio Capibaribe, enchiam nossos pulmões e almas de entusiasmo. 

Quando chegamos ao cinema, ficamos impressionados com a quantidade de gente que se aglomerava em volta das bilheterias. A fila estava tão grande que dava a volta no quarteirão.  As pessoas, na sua grande maioria jovens, esperavam ansiosas para poderem entrar. 

Como morávamos ali perto, tivemos o privilégio de comprar as nossas entradas mais cedo e por isso nos demos ao luxo de ficar de fora espreitando à distância. Fomos todos novamente sentar na balaustrada da ponte, só que diferentemente dos outros dias, o nosso semblante só ostentava alegria.  Tensão?  Medo? Naquele dia, não!  Éramos puro excitamento.

De onde estávamos, assistíamos de camarote ao frenesi da multidão que parecia enlouquecida. Ficamos de longe vendo aquelas pessoas se espremerem, saboreando cada minuto com o coração cheio de expectativa, apenas esperando que as coisas se acalmassem para que pudéssemos entrar.

Quando a fila diminuiu um pouco, lá fomos nós felizes da vida para aquela tão esperada sessão.  Jogamos nossas bitucas de cigarro no rio, estufamos o peito e corremos em direção à portaria principal.

Aqueles rapazes de Liverpool, como Os Beatles eram conhecidos, falavam diretamente aos nossos corações. Antes do surgimento do Rock, os garotos tinham que se contentar ouvindo as músicas dos seus pais.  Depois que ele surgiu, tudo mudou.  E aqueles caras, com seus cabelos compridos e suas guitarras elétricas descortinaram um admirável mundo novo que não pertencia a mais ninguém, ao não ser a nós, jovens. Aquele era o nosso dia.

Levamos todos os nossos sonhos para dentro do cinema acreditando que aquela noite seria simplesmente inesquecível.

X

Depois de uma longa espera, lá estávamos dentro do saguão principal lotado de gente que se amontoava formando um imenso e ensurdecedor burburinho de vozes amalgamadas. O impacto foi tão grande que tive a sensação de estar diante de uma cena de filme Noir, pois a luz do ambiente estava bastante difusa tal era a quantidade de fumaça suspensa no ar exalada pelos cigarros dos jovens que ainda ali permaneciam dando suas últimas tragadas antes de entrarem para a sala de projeção.

Aquela luz semi-opaca aumentou ainda mais minha excitação pois momentaneamente fiquei com a impressão que por trás daquela imensa fumaça os nossos ídolos poderiam surgir a qualquer momento. Só que isso passou rapidamente.  Para ser sincero, cheguei a ficar um pouco aflito diante daquela multidão.

Depois de ter feito um árduo esforço para conseguir transpor toda aquela turba ensandecida que se aglomerava à nossa frente, novamente nos deparamos com uma cena ainda mais aterradora.  O salão inferior já estava completamente tomado e não havia mais nenhum lugar livre.  Imediatamente alguém teve a brilhante ideia de propor que subíssemos para o salão superior.  Foi realmente uma ótima ideia pois lá ainda haviam lugares vagos.

Tomamos os nossos assentos com a garotada mais nova ficando numa fileira abaixo. Respirei aliviado, primeiro por ter conseguido um lugar para sentar, depois, porque aquela moçada não ficou do nosso lado. Eles eram terríveis. Para ser mais preciso,  acho que eles eram mesmo...   “impossíveis!”.

Para provar que eu estava certo, não demorou muito e eles começaram a fazer um fuzuê daqueles.  Fizeram tanto barulho que chamaram a atenção dos guardas ali presentes.  Não se espante, não, meu amigo! Na época da ditadura, era assim mesmo. Até dentro dos cinemas nos deparávamos com PMs fazendo a patrulha. Se até um tempo atrás existiam apenas os simpáticos e educados vagalumes, como eram chamadas aquelas pessoas munidas de pequenas lanternas que nos guiavam pelos corredores para que encontrássemos um lugar para sentar, agora a coisa tinha mudado completamente de figura.

Um dos guardas se aproximou do grupo e vociferou:

-      Se continuarem fazendo bagunça, eu ponho todo mundo pra fora!
-      Tô falando sério! - concluiu. 

Se pensam que isso adiantou alguma coisa, vocês estão completamente enganados. Acho que a algazarra até aumentou. E não deu outra.  O guardinha subiu os degraus até a fileira onde eles se encontravam e mandou todo mundo pra rua.

- Desce todo mundo agora – vociferou o meliante fardado.

E toda aquela horda juvenil foi posta para fora do cinema ficando proibida de assistir ao filme.  Aquele fato fez com que boa parte daqueles jovens que se encontravam no andar superior ficassem quietos. Pelo menos por um tempo.

Eu continuava aflito querendo que o filme começasse logo e, para minha felicidade e alegria de todos, as luzes se apagaram e aqueles enormes vasos luminosos, super coloridos, que ficavam em cada um dos lados da tela, se acenderam.  Era o sinal de que a sessão iria começar.  Nos arrumamos todos em nossos lugares, ansiosos. Logo depois começou o noticiário semanal Canal 100 com as suas entediantes matérias que vomitavam semanalmente os seus eternos “colóquios flácidos para acalentar bovinos”, ou, traduzindo, “conversa mole para boi dormir”.

O assunto era quase sempre o mesmo e o ufanismo barato que fazia parte daquele noticiário sempre trazia reportagens falando sobre o crescimento do Brasil e as novas obras que estavam sendo inauguradas por aqueles milicos que ocupavam o poder. Aquele velhinho simpático, um verdadeiro lobo disfarçado na pele de cordeiro e que atendia pelo pomposo nome de um antigo príncipe italiano, estava presente num desses eventos junto com a sua corja.

Aquilo demorou uma barbaridade, mas na sequência, a alegria de todos ali presentes voltou a reinar.  Era chegado o momento de falar do futebol e a matéria que foi apresentada naquele dia não poderia ser melhor para o momento: a repercussão internacional do tricampeonato da nossa seleção canarinha que ainda colhia os louros pela sua histórica conquista ocorrida em junho daquele mesmo ano.  Todos foram ao delírio ao ouvirem aquela vinheta que dava início às matérias esportivas. Peço permissão ao leitor para fazer uso da minha licença poética e cantarolar essa entrada. Para tanto me utilizarei de algumas onomatopeias musicais. Aquela vinheta ufanista e festeira tomou conta do ambiente com os seus acordes iniciais ecoando pelo ar.

Tan tanran, tan TAAAM – tan tanran, tanram, tanta, tanta, tan taram, tanram, tanta, tanta - tan tanram, tam TAAAM.

Todos aqueles da nossa geração lembrarão dela nesse momento, com certeza.  Tratava-se do samba  "Que bonito é" de Luis Bandeira.  Na sequência, o locutor, com aquela sua tradicional voz de lata velha, narrou o empate magro entre o Flamengo e o Botafogo em jogo válido pela Taça de Prata, antigo nome do Campeonato Brasileiro de Futebol. Para o ambiente ficar ainda melhor, assistimos logo depois ao trailer do novo filme do nosso grande herói daqueles tempos: Charles Bronson. O cenário estava montado.  Só faltava o filme começar, e ele finalmente começou.

O barulho era ensurdecedor.  Nas poltronas, as pessoas se contorciam de tanta ansiedade.  Na minha tenra idade eu ainda não havia presenciado algo tão vibrante assim. Tudo era novo e mágico e os rapazes de Liverpool estavam todos ali, desfilando bem à nossa frente diante dos nossos olhares atônitos.

X

Entretanto, todo aquele entusiasmo foi pouco a pouco dando lugar a um desencantamento acachapante. As imagens que foram se sucedendo, uma a uma, não mostravam aquilo que todos nós queríamos tanto, que era, obviamente, ver os caras tocando. O que se descortinava diante de nós, eram apenas cenas mostrando o entrar e sair do grupo no estúdio, conversas enfadonhas que não levavam a lugar algum e um terrível tédio estampado nos rostos dos músicos que demonstravam um imenso cansaço uns com os outros. A impressão que se tinha é que eles não estavam se suportando mais. A banda realmente estava chegando ao fim. Na verdade, ela já havia acabado.

Aquela euforia inicial foi dando lugar à uma frustração tremenda em todos nós ali presentes, e o que começamos a presenciar, e vivenciar, foi um alvoroço que começou a se formar e que foi tomando proporções alarmantes. As pessoas começaram a gritar e reclamar em alto e bom som, mostrando uma insatisfação que se tornaria o estopim de uma revolta sem controle. Alguns começaram a gritar:

-      Queremos música!, gritaram uns.
-      Música!!! – bradavam outros.
-      Para de falar e toca logo, seus imbecis – gritou alguém mais exaltado.
-      Quero meu dinheiro de volta!!!

Essa frase atuou como um verdadeiro divisor de águas pois virou o mote geral, contagiando todo mundo de uma forma totalmente negativa.  A aquele grito, outros se sucederam vindo de algumas pessoas que estavam ainda mais exaltadas e que começaram a se levantar de suas poltronas e provocar os demais.  As cenas que presenciamos foram muito semelhantes àquelas que se costumam ver quando eclode um levante geral.  O caótico cenário estava dado. Uma imensa manifestação tomou conta do cinema com todas as pessoas se levantando e gritando ao mesmo tempo.  Imediatamente o filme foi interrompido e as lâmpadas se acenderam. 

Aquela turba ensandecida começou a caminhar em direção às portas de saída e uma tragédia só não aconteceu porque eles caminharam lentamente.  Diante daquele alvoroço, resolvemos fazer o mesmo e acabamos seguindo os demais.  Ao chegarmos ao saguão superior, nos deparamos com uma cena assustadora.  Um enorme grupo havia se formado na porta da gerência e extremamente perturbados gritavam palavras de ordem exigindo o dinheiro de volta.

-      Enganados, nós fomos enganados! – gritou um sujeito mais exaltado.
-      Queremos nosso dinheiro de volta! – vociferou um rapaz forte com pinta de remador.


Nesses momentos, a massa costuma ficar totalmente descontrolada e o que se vê são cenas de vandalismo fruto de uma energia que parece estar represada no dia-a-dia das pessoas e que acaba sendo liberada de forma quase que espontânea.  Aquele andar em que nos encontrávamos era um salão bastante luxuoso com um lindo tapete de veludo vermelho e várias poltronas de couro. Ao lado deles, haviam  enormes vasos de bronze cheios de areia, que funcionavam como cinzeiros.  Alguns garotos começaram a entornar aqueles vasos em cima das poltronas e um mais exaltado atirou um objeto na direção da porta da administração quebrando um vidro fosco e branco onde estava escrito a palavra “Gerência”. Vidros e portas foram sendo quebrados a chutes e o que se viu foram verdadeiras cenas de guerra. O caos estava instalado e a polícia precisou intervir para baixar os ânimos. 

Eu e o meu grupo resolvemos sair do cinema para não nos envolvermos naquela depredação e do lado de fora ficamos assistindo a todo o desenrolar daquela manifestação.  Aqueles garotos que estavam conosco e que haviam sido expulsos mais cedo, foram em casa avisar aos que não tinham ido ao cinema naquela noite. ML apareceu na portaria trajando um pijama listrado, mostrando toda sua costumeira irreverência.  Não recordo o porquê dele não ter ido conosco naquela noite. Talvez não gostasse dos Beatles, sei lá!

Ficamos em frente ao cinema, arrasados, assistindo a toda aquela gente ir embora vociferando gritos de descontentamento.  A nossa noite não poderia ter sido mais frustrante. Para alguns, entretanto, tudo aquilo não passava de uma imensa farra e com certeza seria assunto para a semana inteira. Eu, confesso, estava dividido entre sentir-me frustrado ou estar feliz por ter presenciado aquele acontecimento.  

Quando este documentário finalmente estreou, semanas depois, tiramos uma tarde para assisti-lo com calma. O que tanto gostaríamos de ter visto naquela noite, é mostrado nos minutos finais do filme. Trata-se de uma apresentação que ficou conhecida como Rooftop Concert, e que foi realizada no último andar do prédio onde ficava o estúdio dos Beatles. Esta apresentação tem uma duração muito curta (são apenas 34 minutos) mas talvez tenha sido o melhor show que eles, Beatles, deram ao longo de sua curta história, mesmo porque foi o show que pôs fim à banda.

Eram tempos muito divertidos e normalmente nada costumava abalar a nossa felicidade já que quase tudo era motivo para festa. Naquele dia, entretanto, fui tomado por uma sensação diferente.  Momentaneamente senti um leve calafrio como se pudesse antever que tudo aquilo que estávamos vivenciando iria chegar ao fim.

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Pouco tempo depois, inaugurava o Cine Veneza e ali ainda assistiríamos a filmes marcantes, também nas sessões que aconteciam aos sábados, como, por exemplo, O destino de Poseidon Viva e deixe morrer (Live and let Die), novo filme do 007 com trilha sonora do Paul McCartney, já em carreira solo.  Só que por mais belo e moderno que fosse, o Veneza não tinha o charme do cinema São Luiz, que além de tudo ficava em um local privilegiado, bem às margens do Rio Capibaribe.  As sessões da meia-noite que se deram nesse belíssimo lugar eram cercadas por uma aura mágica e as pessoas que vivenciaram aqueles memoráveis encontros sabiam que depois que eles acabassem nada mais seria como antes.



Fonte: O Pasquim


Quando John Lennon falou a célebre frase “O sonho acabou”, nós éramos ainda jovens demais para compreender toda a extensão daquelas suas proféticas palavras.

Alguns estudiosos e historiadores consideram os anos 1960 como sendo a década que tudo mudou e hoje tenho certeza de que aqueles anos, ao mesmo tempo conturbados e efervescentes, foram vividos de forma intensa por todos os que o atravessaram, sobretudo pela profusão de acontecimentos que se tornaram marcantes. Entre eles, eu destacaria os assassinatos do presidente Kenedy em 1963 e do ativista Martin Luther King em 1968, a Guerra do Vietnã, o Golpe Militar de 1964, a Primavera de Praga, a chegada do homem à lua em 1969, o festival de Woodstock, também em 1969, o levante dos estudantes em Maio de 1968, em Paris, a passeata dos cem mil em Copacabana, o nascimento da geração hippie, o surgimento dos Beatles, entre tantos outros eventos significativos e transformadores. Foi também o fim dos últimos grandes sonhos utópicos do Ocidente.

As palavras de Lennon poderiam estar se referindo ao fim do sonho que eles, Beatles, haviam vivenciado como banda. Mas também se referia, e por isso elas foram proféticas, ao fim de um tempo. E nisso ele estava certo.

Naquele dia eu saí do cinema com uma sensação estranha, que parecia prenunciar justamente isso: o fim de um ciclo. Após aquele dia, percebi, mesmo ainda de forma incipiente, que nada mais seria igual. Eu e aqueles rapazes ainda vivenciaríamos belos momentos e encontros inesquecíveis. Contudo, a partir daquela data, algo havia mudado. Nós é que ainda demoramos um pouco para perceber.

Tudo passa, nada é para sempre, todos nós sabemos. O que é efêmero e o que é perene?  Ainda não sei responder ao certo. A única certeza que tenho, é de que carregarei até o fim dos meus dias, todos aqueles momentos inocentes e passageiros que vivenciei naqueles anos dourados, tenham eles sido feitos de lembranças felizes ou até mesmos tristes. Contudo, sei que por melhor ou pior que tenham sido, fizeram parte de um período lindo e marcante, não só na minha vida, mas na de todos aqueles garotos que cresceram, brincaram e sonharam na esquina da Rua Sete de Setembro com a Av. Conde da Boa Vista.

Carlos Pessegatti














Comentários

  1. Esse conto é um documento que registra uma passagem da história de Recife. Um momento extremamente efervescente de nossa comtemporaneidade. Tu tens que compilar e editar no futuro para que nossos netos leiam mermão!

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