A Esquina Sete - A esquina das nossas vidas



“Naquela esquina cabia o mundo. Éramos jovens. Éramos imortais. Éramos invencíveis. Éramos aventureiros de uma espécie curiosa, experimentadores de existência, mostrando que pensar, viver e rir são atividades semelhantes. Ríamos de tudo”.

Assim escreveu o jornalista Fábio Hernandes em uma de suas últimas crônicas na Revista Vip publicada anos atrás.

Lendo a sua crônica fui arremessado tão velozmente quanto um raio de luz para a esquina onde vivenciei toda a minha infância e juventude. Você tem razão, Fábio: o mundo cabia na esquina da Rua 7 de setembro com a Av.Conde da Boa Vista. Ali, como na Speaker’s Corner em Londres, pronunciávamos os nossos discursos de felicidade e perplexidade pelo mundo que se desenrolava diante dos nossos olhos.

Como ríamos de tudo naqueles tempos! "Como eram bons aqueles tempos idos em que eu era feliz e ninguém estava morto", como escreveu Fernando Pessoa.

Estou aqui, tentando fazer uma reconstituição dos sonhos, do imaginário, das mentalidades, dos sentimentos, do clima e do comportamento daqueles tempos de exaltação e alegria. Fomos jovens que crescemos deixando não só os nossos cabelos crescerem, mas também a nossa imaginação que voava solta e leve.

Daquela esquina assistimos à grande passeata dos acontecimentos mais importantes daqueles anos mágicos. Daquela esquina assistimos, de camarote, ao grande desfile da vida.

Ali, costumávamos nos reunir todos os finais de tarde e à noite após termos regressados, ora do colégio, ora das baladas, e para alguns, do trabalho. Éramos um grupo grande, com mais de 30 integrantes, tremendamente animado, que ali ficava a espreitar as moças que retornavam das escolas e caminhavam em direção aos diversos pontos de ônibus que levavam à zona sul da cidade.

Era uma esquina de onde se podia observar toda a dinâmica da cidade com a sua efervescência de cores e movimentos, o ir e vir das pessoas que passavam apressadas para o trabalho, ou dele retornando, ou os inúmeros jovens que iam e vinham dos colégios Marista, Americano Batista, Carneiro Leão, da Faculdade de Filosofia do Recife, ou da Universidade Católica e da Faculdade de Direito, deixando quase sempre apinhado de gente o ponto de ônibus que ficava do outro lado da rua, bem em frente onde costumávamos nos reunir. 

Ficávamos boa parte do tempo em frente à portaria do Edifício Ouro, onde alguns ali residiam, embora sendo um número bem pequeno considerando-se o tamanho do grupo. Os jovens que ali se reuniam vinham do bairro da Boa Vista, da Rua Velha ou Rua da Glória, de outros edifícios residenciais ali próximos, que naqueles tempos conviviam pacificamente com os chamados prédios comerciais.

Daquela esquina podíamos sentir a brisa vindo mar através do rio Capibaribe e sua confluência com o Beberibe. A poucos metros dali, seguindo em frente, chegávamos à outra esquina, essa já de frente para a ponte Duarte Coelho e para o rio Capibaribe, onde se encontrava o saudoso cinema São Luiz. Do outro lado da rua estava a calçada mais gostosa da cidade que era onde ficava o chamado popularmente “quem-me-quer”, aquele famoso banco em pedra-sabão que margeava o rio e onde as moças costumavam ficar, nas tardes de domingo, a espreitar os rapazes que passavam em bandos, loucos para serem fisgados. Entretanto, convém ressaltar: esta esquina, embora charmosa, era extremamente movimentada e pouco convidativa. O contrário do que acontecia com a esquina Sete. Nela, sentíamos como se estivéssemos em casa.

Voltando aos Setembrinos, diga-se, nós, habitantes daquela acolhedora esquina, aquele nosso grande grupo era formado por pequenos sub-grupos. Nos seus tempos áureos aquele grupo maior abrigou mais de trinta jovens, subdividindo-se em pequenos subgrupos onde o que os diferenciava era a idade. Obviamente, aqueles que já tinham entre 17 e 19 anos, alguns até com mais de 20, faziam parte do grupo considerado sênior. Os que estavam entre 13 e 15 anos, do grupo júnior, e aqueles que tinham entre 15 e 17, do grupo pleno. Esses pequenos grupos juntavam-se por afinidade e costumavam andar sempre juntos. Embora com as suas diferenças de idades e visões de mundo, era normal a reunião de todos ao largo do muro de um estacionamento localizado a poucos metros dali, na própria Rua Sete de Setembro. Nesses momentos, embora ainda os grupos menores se conservassem juntos, todos participavam da grande reunião daquela bela família. Sim, uma grande família, assim poderíamos nos considerar. E que família maravilhosa!

Contudo, não foram apenas os transeuntes ou o nosso grupo que aquela esquina mágica viu desfilar. Por ali passaram muitas pessoas famosas. Apenas para citarmos alguns nomes poderíamos dizer que ali estiveram Elvis Presley, Chuck Berry, os Beatles e os Rolling Stones, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Led Zeppelin, entre outros. Todos os acontecimentos importantes ou não daquele tempo em que crescíamos espreitando o mundo como curiosos e participantes, ali aconteceram, tais como a morte de Kennedy, o assassinato de Martin Luther King, a Primavera de Praga, o nascimento da geração beat, Woodstock, a guerra do Vietnã, a passeata dos cem mil em Copacabana contra a ditadura militar, a conquista do tri-campeonato da nossa seleção, e por aí vai.

A impressão que tínhamos era que todos aqueles acontecimentos que estavam ocorrendo no mundo inteiro também estavam acontecendo bem ali à nossa frente. Sentados conosco àquela esquina estiveram muitas celebridades, algumas delas já falecidas há muito tempo. Dentre elas podemos citar Proust, Kafka, Pablo Picasso, Pablo Neruda, Allen Ginsberg, Jean Paul Sartre, Herman Hesse, Kalil Gibran, Adoux Huxley, Marcuse e George Orwel. Ávidos por experiências e conhecimentos, posso dizer que ali estiveram todos aqueles para os quais havíamos aberto as nossas mentes com o afã de escutá-los e ouvir o que eles tinham para nos ensinar. A verdade, é que éramos jovens em um mundo já velho. Portanto, tínhamos muito a aprender.

Ali choramos tristes quando John Lennon falou que o sonho havia acabado. Como num prenúncio, parecia que ao ouvi-lo dizer aquelas palavras já podíamos pressentir que aquele lugar onde parecíamos eternos uma hora teria o seu fim.

Vivíamos como se já pudéssemos antever a Cibercultura, essa grande rede interativa de comunicação onde se pode partilhar com um grande número de indivíduos no mundo inteiro.

Aquele nosso ciberespaço, diferentemente deste de hoje, processava-se tão somente em nossas mentes e por não estar em parte alguma (mesmo existindo de forma virtual o ciberespaço pode facilmente ser acessado de qualquer computador ou smartphone), acredito que fosse ainda mais sutil e imagético, pois não se cristalizava em lugar algum, mas apenas e tão somente dentro da experiência humana, a nossa mais especificamente. Hoje, o que temos é, como afirma Castells, a cultura da virtualidade do real, diferentemente do nosso tempo onde o que tínhamos era a cultura do real que se virtualizava em nosso imaginário.

Alguns estudiosos afirmam que em sociedades como as de hoje que estão organizadas em torno da grande mídia, a existência de mensagens fora dela fica restrita a redes interpessoais, portanto desaparecem do inconsciente coletivo. Como ainda a mídia não detinha a força que possui hoje, eram justamente fora dela que as mensagens cresciam e se propagavam, fazendo mais do que nunca parte daquele nosso inconsciente coletivo.

Mas as nossas vidas tinham um palco bem definido onde nele não só representávamos a nossa existência, mas assistíamos ao desenrolar de todos os acontecimentos de um tempo, que, embora terrivelmente difícil, encerrou momentos, talvez os últimos, onde a humanidade pode ansiar por escolher caminhos melhores que aqueles que diante de nós se cristalizavam. 

Verdade que tínhamos inimigos ferozes tais como os nossos pais com a sua educação rígida (essa educação serviu de esteio e estofo para o que hoje somos), a ditadura e a sociedade de consumo que já naquela época, e porque não dizer, com o nosso aval, começava a se tornar esse monstro que é hoje.

As corporações, enormes, mas ainda não transnacionais e com a força que possuem hoje, já se configuravam como verdadeiros monstros.

A esse respeito, Antony Sampson escreveu em seu maravilhoso livro A História das Companhias: “As tentativas de humanizar as grandes empresas não foram suficientes para atrair uma nova geração de estudantes que rejeitavam os benefícios sociais delas e as consideravam destruidoras do meio ambiente, opressoras das minorias e manipuladoras da demanda por meio da propaganda e do patrocínio. Eles (diga-se, nós) estavam com muito menos medo do desemprego que seus pais tiveram no passado, e desiludidos com o materialismo e a dependência da "sociedade de consumo”.

Com relação à essas palavras escritas por Sampson, poderíamos dizer que hoje a sociedade ainda rejeita os chamados benefícios sociais embutidos no bonito discurso da “responsabilidade social corporativa” das grandes corporações, que na grande maioria das vezes não têm outro objetivo a não ser o de aumentar os seus lucros se beneficiando dos abatimentos que esse tipo de atuação possibilita em seus impostos de renda e do efeito psicológico que isso provoca na mente das pessoas. A situação planetária, com a escassez cada vez maior de recursos naturais, sem contar a emissão de poluentes que estão ocasionando o aquecimento global, está aí para nos mostrar todos os dias como as grandes corporações continuam sendo consideradas como destruidoras de meio ambiente.

Entretanto, os jovens de hoje estão com um medo muito maior do desemprego e totalmente ofuscados com a magia provocada pelas novas tecnologias, tornando-se, assim, presas fáceis da mídia e da publicidade. Posso dizer sem medo, que até boa parte daquela geração, hoje já adulta, também se sente aturdida e até maravilhada com a mídia. Contudo, talvez seja essa a grande diferença que faz com que a balança penda favoravelmente mais para o lado do sistema, que tanto combatíamos, do que para o lado das pessoas.

A crescente desumanização provocada pelo alto grau de automação das indústrias, sobretudo as automobilísticas, fazia com que os jovens daquela época fugissem delas como o diabo foge da cruz. Tanto que foi um período onde se registrou um altíssimo índice de turnover e absenteísmo.

Enquanto essa geração de hoje paga para estar inserida no sistema, aquela nossa geração pagava qualquer preço, alguns com a própria vida, para estarem fora dele.

E falo isso em nome dos garotos que fomos, de um tempo e lugar determinados, e que de certa forma se envolveram de diversas maneiras com a história daquele tempo, não apenas como expectadores, mas, e principalmente, como atores de seus dramas, por mais que tenham sido insignificantes os papéis que representaram. Nós não apenas assistimos a todos aqueles acontecimentos, mas fizemos parte dele. Não apenas observamos os acontecimentos sem participar do evento, sem nos sentirmos parte integrante, sem vivenciarmos todo aquele processo. Não! Se fosse assim, nosso ser que vivenciou/presenciou todos aqueles acontecimentos teria se tornado meramente circunstancial, um forasteiro ao conhecer que emergiu de fora, estranho à vivência, como afirmou Tarthang Tulku.

Como integrante desses anos mágicos, acredito que acabamos sendo formados por todos aqueles acontecimentos que consideramos cruciais. Estávamos em pleno século XX. Fomos parte daquele século e ele, com certeza, foi parte de nós.

Foram experiências que nos marcaram a todos, em certa medida da mesma forma. Os acontecimentos públicos que se deram naquela época são, com certeza, parte da textura de nossas vidas. E eles não são apenas marcos em nossas vidas privadas, mas, e principalmente, aquilo que formou nossas vidas, tanto privadas como públicas.

Ah! Como gostaria de revê-los, todos: o Cléo, o Marco Viana, o Nequinha, o Foquinha, o Nenê, o Airton, o Paulinho, o Carlinhos, o Bispo, o Lula, o galã Jorge Lins, o Silvio, o Tininho, os irmãos Bilzinho e Soares,o Marcos "Louco" e tantos outros que tomaram parte naquela enorme festa. Sei, entretanto, que nem a todos poderia reencontrar pois alguns já não estão mais entre nós, ou simplesmente enlouqueceram por causa das drogas.

Uma geração não é feita de idades e sim de afinidades, disse certa vez Hélio Pellegrino. Verdade vos digo... se existiu alguma afinidade entre nós, mais que qualquer outra coisa, foi o fato de termos, todos, trafegado por uma grande esquina, e não uma esquina qualquer, pois, sem dúvida, aquela foi a esquina das nossas vidas. Para nós, a esquina mais importante de todas as que existem no mundo. E ela tem um nome: a Esquina Sete.



A esquina

Aquela não era apenas
mais uma esquina.
Era o mundo inteiro.

Não era apenas um ponto de encontro
de jovens sonhadores e inocentes.
Era um local de vivências e aprendizados.

O mundo se deixa ver
através da linguagem que fabricamos.

E a nossa linguagem...
era única e repleta de significados,
numa relação direta da experienciação
tempo-espaço.
Estávamos integrados a ele.
Éramos parte dele.

A TV e a propaganda
ainda incipientes.

O mundo estava mesmo era nos livros,
nos cinemas, nas revistas.
Não importa se censuradas, adulteradas,
fabricadoras de realidades mutiladas, etc.

Todavia, mesmo assim...
nós conseguíamos enxergar
através delas e além delas.
E sabe por que?

Porque a nossa imaginação
estava liberta.

A Vida, ah!, a vida...
ela estava mesmo era nas ruas.
Nas ágoras da nossa pólis.
Nas ágoras espalhadas pelo mundo.

Apesar dos horrores das guerras,
do fim-do-mundo que pairava sobre nossas cabeças,
das cortinas-de-ferro e das ditaduras
que estavam por toda a parte,
para nós o mundo era uma festa...
...um local de confraternização.

E nós assim a ele cantávamos 
Gira mundo, gira.
E na hora que te cansares,
dá uma paradinha aqui...
na esquina das nossas vidas.



Carlos Pessegatti

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