Saudades das peladas da Rua da Saudade

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZFLQQzau9s9I3y6U0YsTPWX7n-SrpolmHmecBMVL0ZUMMxH4jVEDBdJ0jbJ7K2Zg3yAp0A4vnAOAUsDmGp77Pd0-2MMc9K22TqtI2UBPHybL9au-ZVxnCDBtyEsu9zPlEFL7BRjPeMfh3/s1600/Sau.jpg  Sábado era o dia da semana que eu mais gostava, pois em boa parte do ano não havia a obrigação de ir para o colégio, muito menos ainda de estudar, mesmo que tivesse alguma prova na segunda-feira.

Na minha pequena cartilha de regras – como ela era magrinha naqueles tempos e como foi engrossando ao longo dos anos –, isto estava totalmente descartado.  O sábado existia para que o aproveitássemos totalmente, desde o raiar do dia até o fim da noite.

Bem verdade, que em vários meses do ano eu acabava acordando um pouco mais cedo, por volta das 08:00hs, pelo fato de que o meu colégio tinha como padrão a aplicação de provas semanais que costumavam ser realizadas justamente aos sábados pela manhã, sempre começando pontualmente no horário das 09:30hs. 

Entretanto, mesmo nesses dias, quando saía de casa, acabava caminhando na direção Oeste, ou seja, lado oposto ao sol visto que o  local onde estudava, o Colégio Esuda, ficava sentido bairro, mais precisamente na Rua Corredor do Bispo, no bairro da Soledade. 

Aquela talvez tenha sido uma das primeiras vezes que realmente tenha acordado cedo e caminhado na direção leste, ou seja, para o mar. Isso, obviamente, aconteceu em outras ocasiões no passado, quando, ainda criança ia à praia aos domingos com a minha mãe. Só que nunca antes havia caminhado em direção ao cais, que ficava no Recife Antigo.  Devo ressaltar que foi uma linda descoberta.

Apesar de considerar o sábado o melhor dia da semana, normalmente eu perdia boa parte dele, justamente no momento em que era mais exuberante: ao amanhecer. É com certo pesar que lembro disso hoje e com uma certa tristeza, também, já que as manhãs guardam os instantes em que o dia ainda está prenhe de possibilidades. Isso sempre esteve fora da minha programação.  Acho até que o Sol ficava um pouco triste comigo.

Só que naquele dia, por força de uma obrigação,  me vi forçado a acordar mais cedo. Precisava me apresentar no Forte do Brum para regularizar a minha situação com o exército.

O Forte do Brum, que teve sua construção iniciada no ano de 1626 pelos portugueses e que foi concluído no ano de 1630 pelos holandeses, fica localizado no Recife antigo próximo à zona portuária.  Hoje funciona o Museu do Exército, mas naquela época abrigava o quartel da 7a. Região Militar. 

Foi com muita dificuldade que levantei àquela hora do dia, por volta das 06:00hs da manhã, já que precisava me apresentar às 07:00s.  Ainda meio atordoado, caminhei apressadamente pela Rua 7 de Setembro em direção à Av. Conde da Boa Vista andando como se carregasse uma tonelada em cada perna.  Sentia-me injuriado e o fato de ter que acordar cedo num dos poucos dias em que tinha permissão para dormir até mais tarde, transformava-se num terrível martírio, difícil de ser enfrentado.

Quando cheguei na esquina da Rua 7 de Setembro e entrei na avenida em direção à Rua da Aurora, senti como se tivesse  tomado um enorme tapa no rosto, tanta era a luz vinda do horizonte que, confesso, me deixou um pouco atordoado.   Naquela manhã, a luz forte que despencava do sol tornava todas as coisas um tanto misteriosas.  Os contornos pareciam pouco definidos e os contrastes estavam bastante tênues, deixando tudo imerso numa luz nebulosa, as pessoas, os carros e as edificações.  Havia chovido de madrugada e as ruas, ainda molhadas, guardavam algumas poças d`água que refletiam a luz do sol formando miríades de pontos coloridos que tornavam aquele cenário ainda mais encantador.

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Rua da Aurora - trecho entre as pontes Princesa Isabel e dos Limoeiros


Contudo, aquele primeiro tapa não foi nada diante daquele que viria a receber mais para frente, já na Rua da Aurora.  E ele aconteceu logo depois que cruzei a ponte Princesa Isabel. A partir dali, principalmente depois que ultrapassei os fundos do Palácio do Governo, pude perceber a união do Rio Capibaribe com o outro rio, o Beberibe, fato este que torna o leito de ambos muito mais largo, deixando a descoberto boa parte da vista da zona portuária. Naquele instante, fui presenteado de forma inesperada por um rico banquete de luz e cor que soprava do mar, e o sol, como se sussurrasse ao meu ouvido, parecia me dizer carinhosamente: “Veja o que você está perdendo todos os dias por insistir em acordar tarde; eu estou aqui, sorrindo e esperando por você e a única coisa que peço é um pouco de atenção“.


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Encontro dos rios Capibaribe e Beberibe


A partir daquele dia, repensei os meus hábitos e jurei que mudaria de postura.  O encanto e o arrebatamento provocado por aquela profusão de luzes, ventos e pelos contornos da cidade, me encheram de regozijo.  Olhando para a beleza que havia no encontro dos rios, fui tomado por um sentimento de orgulho, pois só então me dei conta de tamanha beleza.  Aquele sentimento me fez lembrar um poema do Fernando Pessoa que havia lido há pouco tempo atrás, escrito pelo seu heterônimo Alberto Caieiro.  Não recordava ao certo a sequência correta nem de todo o poema, mas o que lembrei já foi suficiente, sobretudo quando ele diz:

“Poucos sabem qual é o rio da minha aldeia, e para onde ele vai e donde ele vem / O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Alberto estava certo: não importa se o Tejo é mais bonito que o rio que corre pela minha cidade/aldeia. O que importa é que aquele é o rio da minha cidade e é justamente por isso que ele é o mais belo.  Estufei o meu peito e me enchi de júbilo.

Daquele ponto em diante, passei a andar mais lentamente, mesmo tendo pela frente uma obrigação pouco animadora e com hora marcada.  Fui arrebatado pelo vento que soprava forte trazendo uma mistura de aromas e odores, ora vindos do mangue, que estava logo ali às margens do rio, ora da brisa marinha que chegava do horizonte como se estivesse me trazendo notícias frescas. Eles se entrelaçavam num bafo quente e suave que pareciam acariciar não só o meu rosto mas também minha alma.

Embora estivesse sentindo a minha visão um pouco obnubilada pelo excesso de luminosidade, as imagens e os contornos da paisagem que se descortinavam à minha frente eram tão sedutoras que por alguns momentos esqueci completamente do dever que me esperava, tão maravilhado era o estado em que me encontrava.  Lembro de ter pensado com os meus rotos botões: preciso vivenciar isso mais vezes. Sequer tinha ideia de que alguns anos depois eu passaria a fazer aquele trajeto todas as manhãs a caminho do trabalho. Acordar, cedo, entretanto, nunca foi o meu forte, mas as recompensas que isso nos traz são tremendamente gratificantes, sem sombra de dúvidas.

Queria estar fazendo aquele percurso em outra situação, mas como o meu compromisso era urgente e o horário da minha apresentação estava se aproximando, fui forçado a apressar novamente os meus passos pois precisava chegar o quanto antes à Ponte dos Limoeiros, já que logo ali, na outra margem do rio, ficava localizado o temível Forte.  Naquela época, não só para mim mas como para boa parte dos jovens da minha idade, ele tinha um significado muito claro: sofrimento.

A Rua da Aurora, no intervalo que vai da Ponte Princesa Isabel à Ponte dos Limoeiros é bem extensa, com uma distância que deve perfazer quase um quilômetro.  Era um percurso longo e sem nenhuma sombra, e embora estivesse exuberante naquela manhã, haveremos de convir,  não seria nada fácil.  A brisa soprava forte mas o calor era intenso.  Fiquei mais aliviado quando vi vários remadores fazendo um esforço tremendo sob o comando de um  técnico tirano que bradava suas ordens aos quatro ventos. A minha caminhada, mesmo que a passos largos, era refresco diante da dureza que aqueles rapazes estavam enfrentando. Jamais tive vocação para os esportes por mais interessantes que fossem e aquele, menos ainda. 

Cheguei ao meu destino faltando pouco menos de cinco minutos e ainda da ponte pude perceber o sofrimento que estava me aguardando. De longe, avistei uma enorme fila que se formava logo na entrada do quartel. Respirei fundo como se tivesse me preparando para um ato sacrificial.

Depois de ter esperado por um longo tempo em pé e sob aquele sol escaldante, a fila começou a andar e pouco a pouco, um por um daqueles extenuados rapazes, eu me incluindo, começou a ser chamado.  Não sem antes, obviamente, ter prestado juramento à bandeira e de ter repetido todas aquelas ladainhas e rituais obrigatórios das rotinas militares. Lembro de ter perdido ali aproximadamente umas quatro horas e meia do meu precioso tempo ouvindo aqueles sujeitos fardados me dando ordens a todo instante.  Estava um tanto irritado e aborrecido com toda aquela situação que considerava bastante cansativa e constrangedora, mas a minha paciência e resignação acabaram dando resultado, pois no final acabei saindo de lá ostentando o meu alvará de soltura, o tão esperado Certificado de Reservista.  Estava livre do exército e ainda mais livre para aproveitar o meu dia favorito, e por que não, até para encarar a própria vida. 

Aliviado pelo dever cumprido, corri direto pra casa pois logo mais iria encontrar com os meus amigos.  Era dia das nossas tão esperadas peladas que costumavam acontecer em um estacionamento localizado na esquina da Av. Conde da Boa Vista com a Rua da Saudade.  Cheguei à minha residência num pinote só.  Estava faminto e louco para saborear o feijão da Têca.

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Aquele almoço estava tão maravilhoso que tive a sensação de estar saboreando um verdadeiro banquete.  No cardápio, o melhor feijão da região, regado a muito tempero, entre eles o coentro, claro, que implorava a presença de uma farofa, complemento indispensável e obrigatório.  O arroz, o purê e os bolinhos de batata com carne moída preparados pela minha avó, eram os ingredientes que completavam aquela deliciosa refeição.  No final, tomei um enorme gole do meu guaraná preferido,  o Fratelli Vita, e como agradecimento aos céus, fiz o sinal da cruz, hábito que havia adquirido ainda garoto com o meu padrasto.

Comi tanto a ponto de me sentir leso. Na minha gíria daqueles tempos, eu diria que fiquei um tanto “morgado”.  Fosse aquele um dia normal da semana, é bem provável que não resistisse à uma sesta.  Só que aquele era o sábado das nossas tão aguardadas peladas da turma da Sete.  Despi-me da minha calça Western, uma das minhas prediletas, substituindo-a por uma surrada bermuda de Tergal e na sequência vesti a maior meia que possuía, já que não tinha um meião de verdade, e no final calcei o meu Ki-chute novinho.  Iria estreá-lo naquele dia e como nunca fui um jogador de linha, pois era um perna-de-pau de dar dó, não esperaria dele um chute a gol ou um drible desconcertante. No máximo, uma defesa salvadora.

Ainda em casa, ouvi quando SC gritou o meu nome do outro lado da rua.  Ele estava falando através dos combogós localizados no corredor do seu prédio, o Ed. Amazonas,  que ficava defronte ao meu, numa posição que dava bem de frente à varanda da minha sala e que também ficava no mesmo patamar, visto que tanto o meu apartamento quanto o corredor onde ele se encontrava ficavam na mesma altura, o segundo andar.

– Carlinhos!   -- bradou ele do outro lado.

– Fala mermão, e aí?  - corri até a varanda e respondi todo contente .

– Já tá pronto? 

– Prontinho da Silva -- respondi.

– Então desce! – respondeu ele quase em tom de ordem. 

– É pra já – completei todo acelerado mas não sem antes pegar o meu Cassete Crown e as minhas adoradas fitas, itens indispensáveis pois iria aproveitar os intervalos em que não estivesse jogando para ouvir o bom e ainda novo, Rock and Roll.

Ao descer, encontrei com ele, o Magro Zé, M-mentiroso e Jo, cada um com uma indumentária que dava dó de tão mal ajambradas que eram.  Naquela época, a gente não tinha uma roupa certa para as peladas, ou seja, um uniforme de verdade com camisetas, caução, meião, chuteiras e tudo mais.  Pegávamos o que mais se parecia com um, com as chuteiras indo de um Bamba a um horrível Ki-chute.  Era o que dispúnhamos e isso, acreditem, era mais que suficiente.  Quando nos avistamos, cada um riu da cara do outro com se tivéssemos algum senso de ridículo, e lá fomos nós felizes da vida.

Chegando na esquina da Sete de Setembro, encontramos o resto da tropa que, angustiados, nos esperavam.  SR, todo nervosinho como era de costume, foi logo gritando.

– Pô seus frescos, onde vocês tavam? O que é que as bichas estavam fazendo que demoraram tanto?  Passando e batom e rouge?

– A bicha tá nervosinha? – retrucou SC.

Era tanta gente que a frente do Ed. Ouro estava completamente congestionada. Além do SR, Lá estavam P-Zinho, C-Léo, Gu e seu irmão, M-Toso, os irmãos F e N, os irmão B-Zinho e SO, o baixinho AT, M-Louco e seus dois irmãos, e M-ZINHO. 

Além deles, os meus dois primos mais novos, C-Ruca e AC, que apesar de não estarem indo para jogar, por ainda serem muito garotos, faziam questão de nos acompanhar.  Adoravam ficar vendo aquele monte de pernas-de-pau jogando e brigando.  Brigando, sim, pois vira e mexe saía um arranca-rabo daqueles.  E olha que quando faltava gente para completar os times, vez por outra acabávamos aproveitando alguns deles. Do outro lado da rua, embaixo do Ed. Iran pude avistar C-Zinho que de longe gritou pra mim, dizendo:

Carlinhos, espera aí, espera aí!  A farmínia nos espera.

Farmínia era o nome que dávamos para as farmácias, local onde naquela época sempre fazíamos as nossas paradas obrigatórias.  Antes do jogo começar, era de praxe nós comprarmos o nosso barbitúrico predileto: o Xarope Pambenyl.  Para não dar “bandeira”, resolvemos descer a avenida até a farmácia próxima ao prédio onde ficava o Cine São Luiz evitando assim que algum morador da região nos visse e nos dedurasse aos nossos pais.  Compramos o nosso líquido precioso e lá fomos nós todo contentes para a pelada.  A tarde prometia. 

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Foi com certa dificuldade que atravessamos para o outro lado da Av. Conde da Boa Vista, ademais naquele lugar em que nos encontrávamos não havia semáforos e o trânsito de veículos e ônibus era intenso. 

Demos uma parada na loja A Modinha para sapear as novidades.  Ouvimos um trecho do novo disco do Uriah Heep, Magician`s Birthday. Óbvio que ele precisaria ser adquirido. É bem provável que naquela época de vacas magras nós fizéssemos uma vaquinha para comprá-lo. Saindo dali, seguimos em direção à Rua da Saudade.  Na esquina, demos uma parada na Fan`s e compramos uma Coca-Cola. Xarope, Coca e cigarros eram os ingredientes indispensáveis para a nossa festa.

Ao chegarmos ao estacionamento, a maior parte da rapaziada já se encontrava lá fazendo seus aquecimentos iniciais.  Ao perceber a nossa chegada, o baixinho AT foi logo dizendo:

Chegaram os xaropeiros, - falou com um enorme sorriso no rosto. 

Foi uma gargalhada só.  AT era um sujeito atarracado com uns tiques estranhos que lhe conferiam uma característica totalmente singular. Certa vez, alguém a chegou a dizer que quando ele andava, lembrava um rinoceronte.

Perto dele, o grupo dos entendidos começava a enrolar os seus baseados. Entendidos era a forma como o nosso amigo Fada Loira chamava aqueles que pegavam fumo.  Convenhamos, essa era uma maneira bem menos perniciosa e bandeirosa, de se chamar os maconheiros.  

Fizemos uma pequena reunião para definir os times.  Foi uma longa discussão pois cada um queria levar para o seu grupo aqueles que eles consideravam os melhores, enquanto outros, normalmente os menos favorecidos no que tange ao talento futebolístico, queriam tornar as coisas mais equilibradas, mesclando os pernas-de-pau com os pelezinhos da turma.  É claro que naquele grande grupo existiam as chamadas panelinhas, ou patotas, no jargão daquela época, em que os seus participantes preferiam sempre jogar juntos. No final, depois de um longo bate-boca, conseguiu-se montar seis times que eram compostos por cinco jogadores, um no gol e quatro na linha, e na sequência, para não haver brigas, foram sorteados os grupos e montada a tabela.  Todos os times se enfrentariam e no final os quatro melhores se cruzariam num mata-mata de partida única com o primeiro lugar jogando contra o terceiro e o segundo contra o quarto.  Eu, para variar, fui escolhido como goleiro do time que contava com as participações de SR, SC, C-Linho e C-Zinho.  Confesso que considerei aquele grupo razoável, com boas chances de se chegar à uma final. Bem, essa era a minha vontade pois isso nunca tinha acontecido antes.

As partidas começaram e o meu time, seguindo a tabela, fez o primeiro jogo contra o grupo comandado pelo baixinho AT.  Não demorou muito e o nervosinho SR começou a se desentender com ele, que de santo não tinha nada.  Por um momento, quase chegaram às vias de fato tal a troca de farpas entre os dois todas as vezes que se cruzavam.  A turma do deixa-disso logo interveio e o jogo recomeçou, embora as provocações continuassem de lado a lado.  Tal qual ficou combinado no início, as partidas teriam duração de 20 minutos com parada aos dez para troca de lados.

O jogo continuou pegado e com uma forte marcação e talvez fosse até por essa razão que aqueles desentendimentos estivessem ocorrendo com maior intensidade. Da posição onde me encontrava, no gol, eu tinha uma visão privilegiada do jogo e procurava tirar proveito disso dando orientações para o meu grupo.  SR não gostava muito de ficar me ouvindo gritar dando ordens pois se considerava o bonzão daquele time e não seria eu, um sujeito ruim de bola, que saberia dar instruções. 

Contudo, como eu tinha uma visão do conjunto, nada errado em querer ajudar, pensava.  Só que no futebol, como em diversas outras áreas da atividade humana, o jogo de vaidades corre solto e cada um quer puxar a sardinha para o seu lado por se considerar o mais importante. 

O jogo prosseguiu sem que eu tivesse dando a menor atenção para as reclamações de SR. Eu gritava de um lado, ele do outro e vez por outra SC e C-Zinho também davam os seus palpites.  No fundo, todos buscavam a mesma coisa: sair vitoriosos.  A partida terminou com a nossa vitória por 5 X 4 e com muitas discussões e reclamações de ambos os lados.  Foi falta, não foi; foi pênalti, não foi; você me empurrou, quem me empurrou foi você, e por aí vai.  Isso sem falar nos palavrões e nas agressões verbais que eram constantes. 

Era por razões como essas que muitas vezes eu preferia ir à praia para tomar o meu xarope e filosofar a ter que ficar assistindo a esse tipo de coisas.  Eram rapazes que normalmente se davam muito bem. Só que na hora do futebol, alguns passavam um pouco da conta e acabavam colocando os seus recalques para fora.  Apesar desses fatos, sei que, no fundo, eram garotos de boa índole e no final do jogo, geralmente os ânimos se acalmavam e aquelas pequenas rusgas logo desapareciam.

Recostado no canto de um muro que dava para os fundos de um prédio que ficava localizado na Rua Sete de Setembro - isso já na quadra que dava para a Rua do Riachuelo - encontravam-se os meus primos C-Léo, AC e C-Ruca. Sentei ao lado deles e peguei o meu Cassete que naquele momento estava tocando a música Confort me do disco novo da banda americana Grand Funk, o lindo Survival.

– Essa música é uma das minhas preferidas desse disco – falei para C-Léo.

– Gosto mais de I can feel him in the morning – respondeu ele de forma seca e direta.

Tivemos que parar a nossa conversa porque aqueles dois nervosinhos não paravam de discutir.

– Puta que pariu, caralho!, precisava ficar chutando o meu tornozelo o tempo todo? – bradou AT para SR.

– Porra, velho, eu não fiz isso porque quis. Só errei o tempo da bola.
Precisava dar cotovelada?  Isso é filho-da-putice, cacete! – retrucou SR.

– Você não é santo, não, mermão. Eu te conheço – respondeu AT.

– Para de discutir vocês dois, cacete – gritou F tentando apartar aquilo que já estava em vias de se tornar uma briga.

– Vamo jogar bola, jogar bola, caraio! – revidou M-Mentiroso.

– Vamo seguir a tabela. Times em campo, times em campo – completou B-Zinho.

C-Zinho sentou ao meu lado com um largo sorriso no rosto como se tivesse algo muito importante a me dizer.

– Esses caras não sabem brincar...  puta que pariu!!!

– Mermão, se for pra esses neguinhos ficarem discutindo o tempo todo, semana que vem, em vez de vir pra cá, eu vou pra praia – respondi um tanto chateado.

– Deixa pra lá – respondeu ele, e mudando de assunto, falou.

– Cara, eu te falei que tô lendo Sartre, não falei? –  perguntou ele.

– Falou, e aí? – completei.

– Cara, eu acho o Existencialismo um marco no estudo da filosofia – falou como se fosse um verdadeiro entendido no assunto, e prosseguiu.

– Cara, ontem eu tava lendo um conto chamado “Intimidade” e gostei tanto que tive a manha de copiar um trecho. Olha só! – e pegando um pedaço de papel que estava no seu bolso começou a ler.

“Lulu dormia nua não só porque gostava de se acariciar com as cobertas, mas também porque lavagem de roupa custa caro. A princí­pio Henri protestou; não se deve dormir nu, isto não se faz, é nojento. Acabou, porém, por comodismo, seguindo o exemplo da mulher; ele era correto como uma estaca quando se achava no meio de outras pessoas (admirava os suí­ços e particularmente os genebrinos, achava-os altivos porque eram impassí­veis) mas negligenciava as pequenas coisas, por exemplo, não era muito asseado, raramente mudava de cuecas; quando Lulu as punha na roupa suja, não podia deixar de observar o seu fundo amarelado à força de roçar contra o rego das nádegas. Pessoalmente, Lulu não se incomodava com a sujeira: dá um ar de intimidade, cria certos sombreados familiares. No cíncavo dos cotovelos, por exemplo. Não gostava dos ingleses, dos seus corpos sem personalidade, sem nenhum cheiro. Sentia, porém, horror às negligências do marido, porque refletiam um carinho excessivo por si próprio. De manhã, ao acordar, ele se sentia sempre terno, a cabeça cheia de sonhos, e o dia claro, a água fria, o pelo áspero das escovas lhe faziam o efeito de brutais injustiças.

– Confesso que não entendi bem – respondi sem compreender o que ele, C-Zinho, queria me dizer com aquele trecho que acabara de ler.

 – Mermão, esse lance da sujeira que a Lulu vê nas cuecas do marido e a forma como Sartre coloca isso, resgatando a questão da intimidade, e de como isso cria, nas palavras dele, um certo sombreado familiar, é existencialista pra cacete! – respondeu ele com tal vibração que comecei a acreditar em suas palavras tal era a fé que colocava naquelas ideias.  Nesse momento, pensei comigo mesmo: o Xarope já está fazendo o seu efeito, pois o neguinho tá a todo vapor.

– Cara, osóriamente falando, acho que você tá tomando Xarope demais – falou P-Zinho com um largo sorriso no rosto e que por estar ali próximo, também havia escutado a conversa.

Todos que estavam ali por perto danaram-se a rir, se divertindo a valer por causa das maluquices viajantes do C-Zinho e também por causa do “osóriamente falando” que era uma expressão-gíria criada e adotada por nós. Os termos “Osóriamente” e “Erôneamente” (leia-se erôneo e não errôneo, de erro) foram criados por sei lá quem e fazia parte do nosso jargão diário.  Dizem alguns, que o primeiro que apareceu com isso no grupo foi um bandidinho conhecido pelo apelido de Barão Bá Bá Bá, um sujeitinho repugnante que havia aportado por aquelas bandas pouco tempo atrás.  O cara era um punguista que costumava circular pelo centro da cidade atrás de vítimas distraídas.  Um belo dia ele encostou em nosso grupo para pedir um cigarro, puxou uma conversa e a partir de então, vez por outra dava as caras na esquina da Sete de Setembro, bem ali no nosso pointer.  

– C-Zinho, é por isso que você hoje tá irreconhecível no campo.  Isso é muito Xarope na cabeça, mermão! – falou SR em alto e bom som, ele que agora já se encontrava mais calmo, tanto que o seu conhecido Tic já tinha até voltado. Ele não parava de tirar o seu cabelo da testa.

Nesse instante, para a alegria dos ali presentes, pelo menos aqueles que estavam mais próximos a nós, a música I Want Freedom do Grand Funk começou a tocar, música essa que era quase uma unanimidade entre nós. Todos a adoravam, principalmente pela ideia que os membros do grupo tiveram. A música é interrompida logo em seu início, como se os músicos estivessem ensaiando e alguma coisa saiu errado.  O baterista e o tecladista trocam algumas palavras sobre a parada abrupta que eles deverão fazer na segunda parte da introdução. A ideia é genial porque é como se nós, os ouvintes, fôssemos de repente, convidados a entrar na sala de gravação e participar do ensaio.  Isso dava a sensação de que estávamos entrando na música. No momento em que ela começou a tocar, B-Zinho, de longe, começou a gritar:

– Aumenta isso aí, aumenta isso aí! – bradou ele, que naquele momento,  se encontrava em pleno jogo.

– Se liga no jogo, B-Zinho, nós tamo perdendo, caráio! – esbravejou SO, seu companheiro de equipe.

Enquanto esperávamos pela próxima partida, eu, C-Zinho, C-Léo, P-Zinho e outros, ficamos confabulando as nossas filosofices yessiânicas, termo que mais gostávamos de usar e que se referia ao som viajante do grupo inglês Yes, banda que C-Zinho havia acabado de nos apresentar.  Ele ganhara o disco intitulado Fragile em sua estada recente nos EUA e esse disco provocou, pelo menos em mim, uma verdadeira revolução, afinal de contas até aquele momento nós só ouvíamos Rock pesado de bandas como Led Zeppelin, Uriah Heep, Grand Funk e Black Sabbath, por exemplo.  Aquele som, que era uma mistura de Rock, Jazz e música Clássica, causou uma verdadeira quebra de paradigma em nossas visões musicais, digamos assim.

Indiferente a aqueles nossos “papos”  filosóficos e pambenílicos (pambenílico era uma referência ao nome do Xarope Pambenyl e o estado alterado de consciência que ele provocava, resultado de uma substância que ele continha chamada codeína), AT, que naquele momento, acredite, já estava sentado ao lado de SR e junto com ele não parava de tirar sarro da rapaziada que estava jogando, levantou-se e levou a mão ao rabo dizendo:

– Pô, mermão!, hoje pela manhã dei uma cagada monumental. A merda que saiu foi tão grande que me deflorou – falou enquanto  coçava a sua bunda de forma acintosa.

Confesso, eu considerava o baixinho AT um sujeitinho execrável pela sua falta de modos, palavra predileta da minha avó quando queria me repreender por algum desvio de conduta.

– Tenha modos, menino!  – falava ela quando achava que eu estava fazendo algo que não devia.

Indiferente a qualquer um, o baixinho continuava se coçando com uma veemência desenfreada e sem nenhum pudor. Logo em seguida, sem escrúpulo algum, falou:

– Estou com uma coceira danada no dedo hoje!  – disse ele virando-se para nós, com a cara mais lavada do mundo.  E não parou por aí.

– Cara, imagina o sujeito, todo elegante, andando pela rua e de repente ele é acometido por uma tremenda coceira no rabo, já pensou? – falou ele já de pé virando-se para o nosso lado.

– Te digo uma coisa, ainda vou escrever um livro sobre isso e o título vai ser, sabe como?   Quando o rabo coça o sujeito perde a bossa.

Foi uma gargalhada geral no grupo.  C-Léo, que costumava rir por qualquer bobagem, quase foi à loucura. Sorriu tanto que quase urinou nas calças.  O sorriso dele, obviamente, contagiou a todos nós.  Acho que ficamos rindo por uns dez minutos seguidos.  O baixinho se divertia a valer, aliás, esse era o termo predileto que ele utilizava quando assistia a filmes de comédia.

Por várias vezes eu o flagrei no cinema dando pernadas pro ar de tanto rir diante de uma cena engraçada. Nesses momentos ele costumava falar bem alto dizendo: “Eu me divirto, eu me divirto! Meu Deus!, eu me divirto! Nessas ocasiões, se eu estivesse por perto, me afastava completamente dele de tanta vergonha que sentia.  O cara era um sujeitinho muito escroto.  Que Deus o tenha, pois ele já não está mais entre nós. 

Quando acreditávamos que o festival de bobagens iria parar, SR disparou:

– Moçada, vocês não sabem a cena que presenciei ontem na entrada  do Ed. Unidos – falou ele mais uma vez levando a mão ao rosto para levantar a sua franja que insistia em cair-lhe sobre os olhos.  E prosseguiu.

  Cara, ontem eu vi SO dando o maior amasso numa pinil do quinto andar  – concluiu a sua chamada.

“Pinil” era o abreviativo de “piniqueira”, expressão que remonta, creio eu, ao período da Casa Grande, onde as escravas pela manhã, limpavam os penicos dos senhores da fazenda. Esse era o nome que utilizávamos de forma pejorativa, diga-se de passagem, para as empregadas domésticas.

– Todo mundo aqui sabe que SO adora uma pinilzinha, não é verdade B-Zinho?  – respondeu AT se dirigindo a ele, questionando o irmão.  E SO não deixou por menos.

– Olha quem fala?  – Se defendeu ele.  E continuou em sua defesa.

– Esses dias eu tava chegando em casa da escola, acho que era umas 17:30hs, e, de repente, ouvi uns gemidos.  Sabe quem era?  – falou ele com cara de interrogação olhando em nossa direção.

– Quem? – Perguntou M-Louco.

– Esse sujeitinho aí...   o baixinho.  Gente, vocês não vão acreditar!?. O sujeito tava comendo a pinilzinha do sétimo andar, sabe quem é?  Aquela gostosinha que trabalha na casa da Dona Eliete?

– E aí?  – alguém perguntou, curioso.

– Pois é!  Ele tava comendo a mina, moçada, acreditem, na escada do 2o. andar. No meio da escada.  Olha só que perigo?  Esse cara é completamente maluco.

– Essa praga aí é um tarado de marca maior – completou M-Mentiroso com ares de indignação.

– Santo Deus!, esse sujeitinho é completamente desregrado  – falou C-Zinho olhando pra mim enquanto balançava a cabeça como se desaprovasse tudo aquilo.

Aquela conversa ainda rendeu por um bom tempo enquanto, em quadra (chamar aquele chão batido de quadra é um elogio), a moçada continuava se digladiando. 

– Fim de jogo, uhuuuuuuu!!!  – Gritou B-Zinho feliz da vida porque o seu time havia vencido aquela disputada partida.

– Próximo time em quadra!  – Gritou M-Mentiroso chamando os seus companheiros pro campo.

As partidas foram se sucedendo com o meu time conseguindo vencer os seus confrontos.  Havíamos nos classificado em segundo lugar por saldo de gols e fomos para a disputa do primeiro mata-mata, novamente contra o time do baixinho. 

Confusão à vista, pensei eu. E não deu outra.  Logo no início do jogo, os dois nervosinhos se desentenderam e dessa vez foram às vias de fato.  Corremos todos para apartar aquela briga que por pouco não se transformou numa confusão ainda maior, visto que no meio de toda aquela discussão, outros elementos também acabaram se envolvendo.  Foi um empurra-empurra pra cá, outro pra lá,  com a turma do deixa-disso no meio de todos tentando acalmar os ânimos que naquele momento estavam bastante exaltados.

Depois de muita conversa, os grupos se separaram e a partida foi retomada.  Só que, para variar, aqueles dois sujeitinhos continuaram a se estranhar.  O baixinho, em vez de jogar, ficou próximo a SR girando ao seu redor ao mesmo tempo em que girava o seu braço, que em punho estava prestes a lhe desferir um golpe.

– Cara, se tu me bater, eu vou te arrebentar – Falou SR com um sorriso nervoso no rosto.
– Eu vou te bater, eu vou te bater, lá lá lá – falava sem parar, o irritadinho.

Nesse momento, um coro se formou dentro e fora do campo pedindo para que aquelas pendengas acabassem.  Alguém chegou a sugerir que se as rusgas não fossem deixadas de lado, o melhor seria que os jogos fossem interrompidos e o campeonato encerrado.  De certa forma aqueles pedidos acabaram surtindo um certo efeito pois os arranca-rabos diminuíram.

Pedimos para que os dois ficassem em lados diferentes do campo objetivando assim evitar possíveis encontros mais duros.  No fim, eles acabaram se afastando e o jogo chegou ao seu final com nova vitória da nossa equipe.  Foi um jogo duríssimo com placar de 2 X 1 favorável ao nosso time.  Estávamos na final.

Ficamos esperando pela partida do outro grupo e enquanto isso ouvimos mais um pouco de rock, fumamos mais uns cigarros e tomamos mais um pouco de xarope.  A aquela altura do campeonato, eu comecei a sentir os efeitos da codeína de uma forma ainda mais acentuada. Percebi isso no momento em que sentei ao lado de C-Zinho, C-Léo e To, meu irmão mais novo.  Não lembro bem qual foi o tema da conversa, aquela hora já permeada pelo viajante som do Yes, mas deve ter sido algumas daquelas nossas filosofices habituais.  Eu, completamente chapado, percebi claramente que o lema daquela nossa geração estava fazendo um completo sentido.  Eu era só Paz e Amor. 

Ficamos ali olhando aqueles jovens correndo de um lado para o outro e em nossas cabeças foi se delineando um tal estado alterado da consciência que tudo ali, todos os gestos e movimentos, pareciam completamente cobertos de sentido. Na nossa visão, aquele jogo era pura poesia.  C-Zinho, como que em estado de êxtase, virou-se pra mim e falou:

– Cara, olha essa bola e esses caras aí correndo atrás dela. Que coisa louca, não?  – indagou-me como se quisesse dizer alguma coisa.

– A bola é um verdadeiro símbolo, algo, eu diria, xamânico – completou. E na sequência eu pensei comigo mesmo: C-Zinho hoje passou da conta. E ele não parou por aí pois em seguida nos confidenciou um poema que havia feito por inspiração da sua voz da consciência, a quem ele chamava de Antracília.  Não me pergunte porque, pois acho que nem ele mesmo sabia explicar de onde tinha saído esse nome. E ali, olhando para o movimento da bola que não parava de sambar à nossa frente, declamou:

Antracília me falou
que a bola é uma aposta
onde nela tudo se joga
até aquilo que não se gosta.

– Mermão, o cara hoje tá inspirado, caraio!  Quantos vidros de Pam tu tomastes?  Uns dois, acho! – falei pra ele com um misto de alegria e encantamento.

– E você tá esquecendo de uma coisa, né C-Zinho? – perguntou C-Léo.

– O Gol! – concluiu!

– Pois é!  Outra coisa totalmente simbólica e xamãnica – respondeu C-Zinho.

– É isso aí! – interrompeu C-Léo.

– O chamado Filó, como escreveu Chico – completou C-Léo referindo-se a um poema do Chico Buarque e também à forma como o Goal, que em inglês quer dizer Meta, Objetivo, era chamada nos meios futebolísticos.

– Estufar o Filó é o momento mais mágico do futebol.

– Verdade – respondi.

– Repara quando um desses caras faz um gol!  Olha só a felicidade que eles sentem nesse momento...  é indescritível – completei.

– E quando esse gol ainda por cima traz a vitória? – indagou C-Zinho.

– Aí fudeu! – respondeu C-Léo.

– É isso aí – concordei não só com ele, C-Léo, mas como se estivesse fazendo um gesto de concordância global com tudo aquilo que estava sendo conversado ali.

Vendo aqueles rapazes correndo atrás da bola, com seus dorsos se contorcendo numa verdadeira dança, observei ainda mais a forma como alguns a tratavam com delicadeza, sobretudo aqueles mais talentosos. Gu era um deles.  A maneira como ele a tocava e a forma harmoniosa com que ele ia se infiltrando na zaga adversária, parecia delinear no espaço um ritmo morno e ao mesmo tempo incisivo que impunha a todos os seus combatentes os seus desejos.  Tive a impressão de que ele mandava nos seus oponentes, fazendo o que bem desejasse. Deu dó de ver a angústia dos seus marcadores que de todo jeito buscavam impedi-lo de chegar ao seu objetivo.  No fim, eles acabavam ficando para trás, um a um, como se estivessem caídos de podres, tal a impotência que sentiam ao tentar pará-lo. Dava gosto de ver.

No final, não deu outra.  O time deles venceu o duelo e seria o nosso adversário na final.  Estava certo que iríamos ter um jogo duríssimo pela frente mas senti-me mais confortado porque aquela equipe não contava em seu grupo com nenhum elemento criador de caso.  Isso, por si só, já era um grande alívio. O jogo seria jogado, na bola.

X

O desábito de vencer
não cria o calo da vitória
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas

Guarda-a sem mofo: coisa fresca
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto no sol do Cais da Aurora

                                                                     João Cabral de Melo Neto

Nos jogos em que participei durante aquela época em que jogávamos a nossa bola no estacionamento da Rua da Saudade, eu nunca cheguei a uma final.  Meu time, formado na maioria das vezes pelos maiores pernas-de-pau do grupo, mesclado aqui e ali por um ou outro mais talentoso, nunca havia chegado à uma decisão.  Aliás, vencer não era uma palavra presente no meu vocabulário. E que fique claro: na maioria das vezes a grande culpa, como sempre acontece nesses casos, recaía sobre mim, o goleiro/mordomo, como eu era chamado pois sempre era considerado o culpado.

Além de ser ruim de bola, eu era um cara totalmente viajandão, que vivia nas nuvens e, convenhamos, isso não é um pré-requisito muito apreciado para um goleiro. 

Naquele dia, eu até que estava me saindo bem.  Havia feito boas defesas e o meu Ki-chute, a aquela altura já não tão novo assim, havia tirado algumas bolas decisivas.  Só que depois de todas aquelas discussões filosóficas regadas a xarope e muito Rock and Roll, era de se esperar que eu já me encontrasse para lá de Marrakech.

Apesar das minhas sandices e pelo fato de me encontrar naqueles exatos instantes bastante alhures,  até que eu estava me saindo bem. Fiz algumas boas defesas e até consegui posicionar bem a minha defesa, passando instruções de como C-Zinho e C-Linho deveriam marcar o talentoso Gu. 

– Não fiquem em linha, não fiquem linha – eu gritava a todo momento.

– Um marca e outro fica na cobertura.  SR, marca ele também aí no ataque! – eu falava o tempo todo numa tentativa desesperada não só de anular o principal jogador do time adversário, como também, e essa era a parte mais importante, de me manter no jogo, pois se eu não fizesse isso, com certeza rapidamente iria parar em outras plagas, como se estivesse numa viagem lisérgica.

Numa jogada mais aguda dos nossos oponentes, Gu, de forma inteligente, puxou a marcação dos meus dois zagueiros, deixando seu irmão livre para marcar.  Não demorou muito e SC, numa linda jogada individual, empatou para o nosso time.

O jogo seguia bastante disputado, porém, sem jogadas mais ríspidas e embora estivesse sendo interrompido muitas vezes por causa da forte marcação exercida por ambos os lados, não tínhamos grandes discussões.  Naquele instante, de onde estava, pude ouvir quando no meu pequeno gravador começou a tocar a canção mais linda do Survival, álbum novo do Grand Funk: I can feel him in the morning. As vozes singelas e angelicais daqueles garotinhos conversando sobre Deus logo no início da música me fizeram viajar para bem longe dali.  Isso foi algo que não podia ter acontecido já que, numa distração, Gu acabou virando o jogo.  SR foi à loucura.

Só que naquele exato momento, estávamos perdendo por 2 X 1 e o jogo já se encaminhava para o seu final quando num ataque adversário, a bola acabou saindo pela linha de fundo, indo parar bem longe do gol.  Eu, que já estava numa Nice só, saí caminhando bem devagar para buscá-la indiferente ao resultado desfavorável para a nossa equipe.  Quando me preparava para voltar ao gol, ouvi SR bradando desesperadamente, e com razão pois estávamos em desvantagem no placar e precisávamos correr contra o tempo para buscar o resultado.

– Manda a bola... manda a bola, caraio!  Rápido, rápido!

Rápida e desastradamente, de onde estava, ou seja, fora do gol, joguei a bola em sua direção.  Ela, a bola, caprichosamente pegou um outro rumo e caiu certeiramente nos pés do Gu, que de forma implacável, sem dó nem piedade, antecipou-se rapidamente à nossa defesa e largou o pé.  Estava decretada a nossa derrota. 

SR saiu correndo em minha direção com os punhos cerrados me chamando de nomes nada agradáveis de se ouvir.  Não chegou a me bater porque foi seguro pelos demais.  O desábito de vencer, não cria o calo da vitória, estava certo o Cabral.

Ficamos ali discutindo por um longo tempo.  Ele querendo me crucificar e eu, totalmente à deriva, tentando me justificar, afinal de contas havia atendido ao seu pedido para jogar-lhe a bola. 
- Porque não esperou que eu voltasse ao gol?  Eu iria demorar?  -- É provável que naquele meu passinho de tartaruga isso de fato fosse acontecer. 

O fato é que mais uma vez, por minha causa, o goleiro/mordomo, aquele que é sempre o culpado, o nosso time deixou de vencer.  E olha que nunca havíamos chegado tão longe.

No final de tudo, o que mais importa é que entre mortos e feridos, se salvaram todos.  Aquela tinha sido mais uma deliciosa tarde que passamos juntos e não foi por causa das desavenças que aconteceram naquele dia que o grupo se desagregaria, afinal de contas para aqueles rapazes tudo era motivo de alegria.

Perder ou vencer faz parte do jogo.  Faz parte da vida.  O importante é que a vida seja vivida.  Em seu livro de memórias, Viver para Contar, o escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez define o que considera a essência de estar vivo. “A vida não é o que se viveu, mas sim, o que se lembra, e como se lembra para contar.”

Essa é a forma como me lembro desses fatos que vivenciei durante tantos anos junto com todos aqueles rapazes e essa é a forma como gostaria de compartilhar com cada um deles: contando essas pequenas e divertidas histórias. Apesar de saber que alguns já se foram, aqueles que ainda estão vivos haverão de se lembrar dos momentos marcantes que vivenciamos, e ao relerem essas passagens voltarão a ser os eternos garotos que são e que sei,  ainda moram dentro de cada um deles.

Que saudades que sinto das nossas peladas jogadas ali naquele lugar, que apesar de não reunir as menores condições para que uma boa partida fosse jogada, nos emprestava o seu espaço para que vivenciássemos esses saborosos momentos. Como não morávamos nos subúrbios, que eram lugares onde normalmente se podia encontrar espaços mais apropriados ou até mesmo verdadeiros campinhos de futebol para que os jogos fossem disputados, aquilo era o que dispúnhamos e era com ele que haveríamos de nos contentar. 

Não era um lugar apropriado, sabemos disso, pois tratava-se de um local onde antes existiam enormes casarios que foram construídos no final do século XIX e que tinham sido derrubados para darem lugar a algum prédio no futuro.

Jogávamos sobre restos de pisos de cozinhas, varandas e salas de jantar, o que por várias vezes nos levou a pensar que pessoas e famílias haviam vivido naquele lugar.  Quer quiséssemos ou não, só o fato de estar ali já nos fazia sentir como se tivéssemos tocando a outra ponta de um tempo que já havia se passado. 

À essa altura, poderemos nos perguntar: onde se joga futebol? E eu lhes direi:  futebol se joga em qualquer canto ou em qualquer lugar que se ofereça para que uma bola e pessoas dispostas a correr atrás dela pratiquem as suas traquinagens, suas molecagens e, por que não, realizem seus sonhos.  No entanto, para finalizar, vou deixar que alguém mais preparado que eu, o poeta Carlos Drummond de Andrade, possa responder à essa questão.

Futebol se joga no estádio?
Futebol se joga na praia,
futebol se joga na rua,
futebol se joga na alma,
a bola é a mesma: forma sacra
                                                                                Para craques e pernas-de-pau.

                                                                                    Mesma volúpia de chutar
na delirante copa-mundo
ou no árido espaço do morro.
São voos de estátuas súbitas,
desenhos feéricos, bailados
de pés e troncos entrançados.
Instante lúdicos; flutua
o jogador, gravado no ar
-- Afinal, o corpo triunfante
da triste lei da gravidade.


Carlos Pessegatti







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