Saudades das peladas da Rua da Saudade

Na minha pequena cartilha de regras –
como ela era magrinha naqueles tempos e como foi engrossando ao longo dos anos
–, isto estava totalmente descartado. O
sábado existia para que o aproveitássemos totalmente, desde o raiar do dia até
o fim da noite.
Bem verdade, que em vários meses do ano
eu acabava acordando um pouco mais cedo, por volta das 08:00hs, pelo fato de
que o meu colégio tinha como padrão a aplicação de provas semanais que costumavam ser realizadas justamente aos sábados pela manhã, sempre começando pontualmente no horário das
09:30hs.
Entretanto, mesmo nesses dias, quando
saía de casa, acabava caminhando na direção Oeste, ou seja, lado oposto ao sol
visto que o local onde estudava, o
Colégio Esuda, ficava sentido bairro, mais precisamente na Rua Corredor do Bispo, no bairro da Soledade.
Aquela talvez tenha sido uma das primeiras vezes que realmente tenha acordado cedo e caminhado na direção leste, ou seja, para o mar. Isso, obviamente, aconteceu em outras ocasiões no passado, quando, ainda criança ia à praia aos domingos com a minha mãe. Só que nunca antes havia caminhado em direção ao cais, que ficava no Recife Antigo. Devo ressaltar que foi uma linda descoberta.
Aquela talvez tenha sido uma das primeiras vezes que realmente tenha acordado cedo e caminhado na direção leste, ou seja, para o mar. Isso, obviamente, aconteceu em outras ocasiões no passado, quando, ainda criança ia à praia aos domingos com a minha mãe. Só que nunca antes havia caminhado em direção ao cais, que ficava no Recife Antigo. Devo ressaltar que foi uma linda descoberta.
Apesar de considerar o sábado o melhor
dia da semana, normalmente eu perdia boa parte dele, justamente no momento em
que era mais exuberante: ao amanhecer. É com certo pesar que lembro disso hoje
e com uma certa tristeza, também, já que as manhãs guardam os instantes em que
o dia ainda está prenhe de possibilidades. Isso sempre esteve fora da minha
programação. Acho até que o Sol ficava
um pouco triste comigo.
Só que naquele dia, por força de uma
obrigação, me vi forçado a acordar mais cedo. Precisava me apresentar no
Forte do Brum para regularizar a minha situação com o exército.
O Forte do Brum, que teve sua
construção iniciada no ano de 1626 pelos portugueses e que foi concluído no ano
de 1630 pelos holandeses, fica localizado no Recife antigo próximo à zona
portuária. Hoje funciona o Museu do
Exército, mas naquela época abrigava o quartel da 7a. Região
Militar.
Foi com muita dificuldade que levantei
àquela hora do dia, por volta das 06:00hs da manhã, já que precisava me
apresentar às 07:00s. Ainda meio
atordoado, caminhei apressadamente pela Rua 7 de Setembro em direção à Av.
Conde da Boa Vista andando como se carregasse uma tonelada em cada
perna. Sentia-me injuriado e o fato de
ter que acordar cedo num dos poucos dias em que tinha permissão para dormir até
mais tarde, transformava-se num terrível martírio, difícil de ser enfrentado.
Quando cheguei na
esquina da Rua 7 de Setembro e entrei na avenida em direção à Rua da Aurora,
senti como se tivesse tomado um enorme tapa no rosto, tanta era a luz vinda do
horizonte que, confesso, me deixou um pouco atordoado. Naquela manhã, a luz forte que despencava do
sol tornava todas as coisas um tanto misteriosas. Os contornos pareciam pouco definidos e os
contrastes estavam bastante tênues, deixando tudo imerso numa luz nebulosa, as
pessoas, os carros e as edificações.
Havia chovido de madrugada e as ruas, ainda molhadas, guardavam algumas
poças d`água que refletiam a luz do sol formando miríades de pontos coloridos
que tornavam aquele cenário ainda mais encantador.
Rua da Aurora - trecho entre as pontes
Princesa Isabel e dos Limoeiros
Contudo, aquele
primeiro tapa não foi nada diante
daquele que viria a receber mais para frente, já na Rua da Aurora. E ele
aconteceu logo depois que cruzei a ponte Princesa Isabel. A partir dali,
principalmente depois que ultrapassei os fundos do Palácio do Governo, pude
perceber a união do Rio Capibaribe com o outro rio, o Beberibe, fato este que
torna o leito de ambos muito mais largo, deixando a descoberto boa parte da
vista da zona portuária. Naquele instante, fui presenteado de forma inesperada
por um rico banquete de luz e cor que soprava do mar, e o sol, como se sussurrasse
ao meu ouvido, parecia me dizer carinhosamente: “Veja o que você está perdendo todos os dias por insistir em acordar
tarde; eu estou aqui, sorrindo e esperando por você e a única coisa que peço é
um pouco de atenção“.

Encontro dos rios Capibaribe e Beberibe
A partir daquele dia, repensei os meus
hábitos e jurei que mudaria de postura.
O encanto e o arrebatamento provocado por aquela profusão de luzes,
ventos e pelos contornos da cidade, me encheram de regozijo. Olhando para a beleza que havia no encontro
dos rios, fui tomado por um sentimento de orgulho, pois só então me dei conta
de tamanha beleza. Aquele sentimento me fez lembrar um poema do Fernando
Pessoa que havia lido há pouco tempo atrás, escrito pelo seu heterônimo Alberto
Caieiro. Não recordava ao certo a
sequência correta nem de todo o poema, mas o que lembrei já foi suficiente,
sobretudo quando ele diz:
“Poucos sabem qual é
o rio da minha aldeia, e para onde ele vai e donde ele vem / O Tejo é mais belo
que o rio que corre pela minha aldeia / mas o Tejo não é mais belo que o rio
que corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha
aldeia.
O Alberto estava certo: não importa se
o Tejo é mais bonito que o rio que corre pela minha cidade/aldeia. O que
importa é que aquele é o rio da minha cidade e é justamente por isso que ele é
o mais belo. Estufei o meu peito e me
enchi de júbilo.
Daquele ponto em diante, passei a andar
mais lentamente, mesmo tendo pela frente uma obrigação pouco animadora e com
hora marcada. Fui arrebatado pelo vento
que soprava forte trazendo uma mistura de aromas e odores, ora vindos do
mangue, que estava logo ali às margens do rio, ora da brisa marinha que chegava
do horizonte como se estivesse me trazendo notícias frescas. Eles se
entrelaçavam num bafo quente e suave que pareciam acariciar não só o meu rosto
mas também minha alma.
Embora estivesse sentindo a minha visão
um pouco obnubilada pelo excesso de luminosidade, as imagens e os contornos da
paisagem que se descortinavam à minha frente eram tão sedutoras que por alguns
momentos esqueci completamente do dever que me esperava, tão maravilhado era o
estado em que me encontrava. Lembro de
ter pensado com os meus rotos botões: preciso vivenciar isso mais vezes. Sequer
tinha ideia de que alguns anos depois eu passaria a fazer aquele trajeto todas
as manhãs a caminho do trabalho. Acordar, cedo, entretanto, nunca foi o meu
forte, mas as recompensas que isso nos traz são tremendamente gratificantes,
sem sombra de dúvidas.
Queria estar fazendo aquele percurso em
outra situação, mas como o meu compromisso era urgente e o horário da minha
apresentação estava se aproximando, fui forçado a apressar novamente os meus
passos pois precisava chegar o quanto antes à Ponte dos Limoeiros, já que logo
ali, na outra margem do rio, ficava localizado o temível Forte. Naquela época, não só para mim mas como para
boa parte dos jovens da minha idade, ele tinha um significado muito claro:
sofrimento.
A Rua da Aurora, no intervalo que vai
da Ponte Princesa Isabel à Ponte dos Limoeiros é bem extensa, com uma distância
que deve perfazer quase um quilômetro.
Era um percurso longo e sem nenhuma sombra, e embora estivesse
exuberante naquela manhã, haveremos de convir,
não seria nada fácil. A brisa
soprava forte mas o calor era intenso.
Fiquei mais aliviado quando vi vários remadores fazendo um esforço
tremendo sob o comando de um técnico
tirano que bradava suas ordens aos quatro ventos. A minha caminhada, mesmo que
a passos largos, era refresco diante da dureza que aqueles rapazes estavam
enfrentando. Jamais tive vocação para os esportes por mais interessantes que
fossem e aquele, menos ainda.
Cheguei ao meu destino faltando pouco
menos de cinco minutos e ainda da ponte pude perceber o sofrimento que estava
me aguardando. De longe, avistei uma enorme fila que se formava logo na entrada
do quartel. Respirei fundo como se tivesse me preparando para um ato
sacrificial.
Depois de ter esperado por um longo
tempo em pé e sob aquele sol escaldante, a fila começou a andar e pouco a
pouco, um por um daqueles extenuados rapazes, eu me incluindo, começou a ser
chamado. Não sem antes, obviamente, ter
prestado juramento à bandeira e de ter repetido todas aquelas ladainhas e
rituais obrigatórios das rotinas militares. Lembro de ter perdido ali
aproximadamente umas quatro horas e meia do meu precioso tempo ouvindo aqueles
sujeitos fardados me dando ordens a todo instante. Estava um tanto irritado e aborrecido com
toda aquela situação que considerava bastante cansativa e constrangedora, mas a
minha paciência e resignação acabaram dando resultado, pois no final acabei
saindo de lá ostentando o meu alvará de soltura, o tão esperado Certificado de Reservista. Estava livre do exército e ainda mais livre
para aproveitar o meu dia favorito, e por que não, até para encarar a própria
vida.
Aliviado pelo dever cumprido, corri
direto pra casa pois logo mais iria encontrar com os meus amigos. Era dia das nossas tão esperadas peladas que
costumavam acontecer em um estacionamento localizado na esquina da Av. Conde da
Boa Vista com a Rua da Saudade. Cheguei
à minha residência num pinote só. Estava faminto e louco para saborear o feijão
da Têca.
X
Aquele almoço estava tão maravilhoso
que tive a sensação de estar saboreando um verdadeiro banquete. No cardápio, o melhor feijão da região,
regado a muito tempero, entre eles o coentro, claro, que implorava a presença
de uma farofa, complemento indispensável e obrigatório. O arroz, o purê e os bolinhos de batata com
carne moída preparados pela minha avó, eram os ingredientes que completavam
aquela deliciosa refeição. No final,
tomei um enorme gole do meu guaraná preferido,
o Fratelli Vita, e como agradecimento aos céus, fiz o sinal da cruz, hábito
que havia adquirido ainda garoto com o meu padrasto.
Comi tanto a ponto de me sentir leso.
Na minha gíria daqueles tempos, eu diria que fiquei um tanto “morgado”. Fosse aquele um dia normal da semana, é bem
provável que não resistisse à uma sesta.
Só que aquele era o sábado das nossas tão aguardadas peladas da turma da
Sete. Despi-me da minha calça Western,
uma das minhas prediletas, substituindo-a por uma surrada bermuda de Tergal e na sequência vesti a maior meia
que possuía, já que não tinha um meião de verdade, e no final calcei o meu Ki-chute novinho. Iria estreá-lo naquele dia e como nunca fui
um jogador de linha, pois era um perna-de-pau de dar dó, não esperaria dele um
chute a gol ou um drible desconcertante. No máximo, uma defesa salvadora.
Ainda em casa, ouvi quando SC gritou o
meu nome do outro lado da rua. Ele
estava falando através dos combogós localizados no corredor do seu prédio, o
Ed. Amazonas, que ficava defronte ao
meu, numa posição que dava bem de frente à varanda da minha sala e que também
ficava no mesmo patamar, visto que tanto o meu apartamento quanto o corredor
onde ele se encontrava ficavam na mesma altura, o segundo andar.
– Carlinhos! -- bradou ele do outro lado.
– Fala mermão, e aí? - corri até a varanda e respondi todo
contente .
– Já tá pronto?
– Prontinho da Silva -- respondi.
– Então desce! – respondeu ele quase em
tom de ordem.
– É pra já – completei todo acelerado
mas não sem antes pegar o meu Cassete
Crown e as minhas adoradas fitas,
itens indispensáveis pois iria aproveitar os intervalos em que não estivesse
jogando para ouvir o bom e ainda novo, Rock and Roll.
Ao descer, encontrei com ele, o Magro
Zé, M-mentiroso e Jo, cada um com uma indumentária que dava dó de tão mal
ajambradas que eram. Naquela época, a
gente não tinha uma roupa certa para as peladas, ou seja, um uniforme de
verdade com camisetas, caução, meião, chuteiras e tudo mais. Pegávamos o que mais se parecia com um, com
as chuteiras indo de um Bamba a um horrível Ki-chute. Era o que dispúnhamos e isso, acreditem, era
mais que suficiente. Quando nos
avistamos, cada um riu da cara do outro com se tivéssemos algum senso de
ridículo, e lá fomos nós felizes da vida.
Chegando na esquina da Sete de
Setembro, encontramos o resto da tropa que, angustiados, nos esperavam. SR, todo nervosinho como era de costume, foi
logo gritando.
– Pô seus frescos, onde vocês tavam? O
que é que as bichas estavam fazendo que demoraram tanto? Passando e batom e rouge?
– A bicha tá nervosinha? – retrucou SC.
Era tanta gente que a frente do Ed.
Ouro estava completamente congestionada. Além do SR, Lá estavam P-Zinho, C-Léo,
Gu e seu irmão, M-Toso, os irmãos F e N, os irmão B-Zinho e SO, o baixinho AT,
M-Louco e seus dois irmãos, e M-ZINHO.
Além deles, os meus dois primos mais novos, C-Ruca e AC, que apesar de não estarem indo para jogar, por ainda serem muito garotos, faziam questão de nos acompanhar. Adoravam ficar vendo aquele monte de pernas-de-pau jogando e brigando. Brigando, sim, pois vira e mexe saía um arranca-rabo daqueles. E olha que quando faltava gente para completar os times, vez por outra acabávamos aproveitando alguns deles. Do outro lado da rua, embaixo do Ed. Iran pude avistar C-Zinho que de longe gritou pra mim, dizendo:
Além deles, os meus dois primos mais novos, C-Ruca e AC, que apesar de não estarem indo para jogar, por ainda serem muito garotos, faziam questão de nos acompanhar. Adoravam ficar vendo aquele monte de pernas-de-pau jogando e brigando. Brigando, sim, pois vira e mexe saía um arranca-rabo daqueles. E olha que quando faltava gente para completar os times, vez por outra acabávamos aproveitando alguns deles. Do outro lado da rua, embaixo do Ed. Iran pude avistar C-Zinho que de longe gritou pra mim, dizendo:
– Carlinhos, espera aí, espera aí! A farmínia
nos espera.
Farmínia era o nome que dávamos para as
farmácias, local onde naquela época sempre fazíamos as nossas paradas
obrigatórias. Antes do jogo começar, era
de praxe nós comprarmos o nosso barbitúrico predileto: o Xarope Pambenyl. Para não dar “bandeira”, resolvemos descer a
avenida até a farmácia próxima ao prédio onde ficava o Cine São Luiz evitando
assim que algum morador da região nos visse e nos dedurasse aos nossos
pais. Compramos o nosso líquido precioso
e lá fomos nós todo contentes para a pelada.
A tarde prometia.
X

Foi com certa dificuldade que atravessamos para o outro lado da Av. Conde da Boa Vista, ademais naquele lugar em que nos encontrávamos não havia semáforos e o trânsito de veículos e ônibus era intenso.
Demos uma parada na loja A Modinha para sapear as novidades. Ouvimos um trecho do novo disco do Uriah Heep, Magician`s Birthday. Óbvio que ele precisaria ser adquirido. É bem provável que naquela época de vacas magras nós fizéssemos uma vaquinha para comprá-lo. Saindo dali, seguimos em direção à Rua da Saudade. Na esquina, demos uma parada na Fan`s e compramos uma Coca-Cola. Xarope, Coca e cigarros eram os ingredientes indispensáveis para a nossa festa.
Ao chegarmos ao estacionamento, a maior parte
da rapaziada já se encontrava lá fazendo seus aquecimentos iniciais. Ao perceber a nossa chegada, o baixinho AT
foi logo dizendo:
– Chegaram os xaropeiros, - falou com um enorme sorriso no
rosto.
Foi uma gargalhada só. AT era um sujeito atarracado com uns tiques
estranhos que lhe conferiam uma característica totalmente singular. Certa vez,
alguém a chegou a dizer que quando ele andava, lembrava um rinoceronte.
Perto dele, o grupo dos entendidos começava a enrolar os seus
baseados. Entendidos era a forma como o nosso amigo Fada Loira chamava aqueles
que pegavam fumo. Convenhamos, essa era
uma maneira bem menos perniciosa e bandeirosa,
de se chamar os maconheiros.
Fizemos uma pequena reunião para
definir os times. Foi uma longa
discussão pois cada um queria levar para o seu grupo aqueles que eles
consideravam os melhores, enquanto outros, normalmente os menos favorecidos no
que tange ao talento futebolístico, queriam tornar as coisas mais equilibradas,
mesclando os pernas-de-pau com os pelezinhos
da turma. É claro que naquele grande
grupo existiam as chamadas panelinhas, ou
patotas, no jargão daquela época, em que os seus participantes preferiam sempre
jogar juntos. No final, depois de um longo bate-boca, conseguiu-se montar seis
times que eram compostos por cinco jogadores, um no gol e quatro na linha, e na
sequência, para não haver brigas, foram sorteados os grupos e montada a
tabela. Todos os times se enfrentariam e
no final os quatro melhores se cruzariam num mata-mata de partida única com o primeiro
lugar jogando contra o terceiro e o segundo contra o quarto. Eu, para variar, fui escolhido como goleiro
do time que contava com as participações de SR, SC, C-Linho e C-Zinho. Confesso que considerei aquele grupo razoável, com boas
chances de se chegar à uma final. Bem, essa era a minha vontade pois isso nunca
tinha acontecido antes.
As partidas começaram e o meu time,
seguindo a tabela, fez o primeiro jogo contra o grupo comandado pelo baixinho
AT. Não demorou muito e o nervosinho SR
começou a se desentender com ele, que de santo não tinha nada. Por um momento, quase chegaram às vias de
fato tal a troca de farpas entre os dois todas as vezes que se cruzavam. A turma do deixa-disso logo interveio e o
jogo recomeçou, embora as provocações continuassem de lado a lado. Tal qual ficou combinado no início, as
partidas teriam duração de 20 minutos com parada aos dez para troca de lados.
O jogo continuou pegado e com uma forte
marcação e talvez fosse até por essa razão que aqueles desentendimentos estivessem
ocorrendo com maior intensidade. Da posição onde me encontrava, no gol, eu
tinha uma visão privilegiada do jogo e procurava tirar proveito disso dando
orientações para o meu grupo. SR não
gostava muito de ficar me ouvindo gritar dando ordens pois se considerava o bonzão daquele time e não seria eu, um
sujeito ruim de bola, que saberia dar
instruções.
Contudo, como eu tinha uma visão do conjunto, nada errado em querer ajudar, pensava. Só que no futebol, como em diversas outras áreas da atividade humana, o jogo de vaidades corre solto e cada um quer puxar a sardinha para o seu lado por se considerar o mais importante.
Contudo, como eu tinha uma visão do conjunto, nada errado em querer ajudar, pensava. Só que no futebol, como em diversas outras áreas da atividade humana, o jogo de vaidades corre solto e cada um quer puxar a sardinha para o seu lado por se considerar o mais importante.
O jogo prosseguiu sem que eu tivesse
dando a menor atenção para as reclamações de SR. Eu gritava de um lado, ele do
outro e vez por outra SC e C-Zinho também davam os seus palpites. No fundo, todos buscavam a mesma coisa: sair
vitoriosos. A partida terminou com a
nossa vitória por 5 X 4 e com muitas discussões e reclamações de ambos os
lados. Foi falta, não foi; foi pênalti,
não foi; você me empurrou, quem me empurrou foi você, e por aí vai. Isso sem falar nos palavrões e nas agressões
verbais que eram constantes.
Era por razões como essas que muitas
vezes eu preferia ir à praia para tomar o meu xarope e filosofar a ter que
ficar assistindo a esse tipo de coisas.
Eram rapazes que normalmente se davam muito bem. Só que na hora do
futebol, alguns passavam um pouco da conta e acabavam colocando os seus
recalques para fora. Apesar desses
fatos, sei que, no fundo, eram garotos de boa índole e no final do jogo,
geralmente os ânimos se acalmavam e aquelas pequenas rusgas logo desapareciam.
Recostado no canto de um muro que dava
para os fundos de um prédio que ficava localizado na Rua Sete de Setembro -
isso já na quadra que dava para a Rua do Riachuelo - encontravam-se os meus
primos C-Léo, AC e C-Ruca. Sentei ao lado deles e peguei o meu Cassete que naquele momento estava
tocando a música Confort me do disco
novo da banda americana Grand Funk, o
lindo Survival.
– Essa música é uma das minhas
preferidas desse disco – falei para C-Léo.
– Gosto mais de I can feel him in the morning – respondeu ele de forma seca e
direta.
Tivemos que parar a nossa conversa
porque aqueles dois nervosinhos não paravam de discutir.
– Puta que pariu, caralho!, precisava
ficar chutando o meu tornozelo o tempo todo? – bradou AT para SR.
– Porra, velho, eu não fiz isso porque
quis. Só errei o tempo da bola.
Precisava dar cotovelada? Isso é filho-da-putice, cacete! – retrucou
SR.
– Você não é santo, não, mermão. Eu te
conheço – respondeu AT.
– Para de discutir vocês dois, cacete –
gritou F tentando apartar aquilo que já estava em vias de se tornar uma briga.
– Vamo jogar bola, jogar bola, caraio!
– revidou M-Mentiroso.
– Vamo seguir a tabela. Times em campo,
times em campo – completou B-Zinho.
C-Zinho sentou ao meu lado com um largo
sorriso no rosto como se tivesse algo muito importante a me dizer.
– Esses caras não sabem brincar... puta que pariu!!!
– Mermão, se for pra esses neguinhos
ficarem discutindo o tempo todo, semana que vem, em vez de vir pra cá, eu vou
pra praia – respondi um tanto chateado.
– Deixa pra lá – respondeu ele, e
mudando de assunto, falou.
– Cara, eu te falei que tô lendo
Sartre, não falei? – perguntou ele.
– Falou, e aí? – completei.
– Cara, eu acho o Existencialismo um marco no estudo da filosofia – falou como se
fosse um verdadeiro entendido no
assunto, e prosseguiu.
– Cara, ontem eu tava lendo um conto
chamado “Intimidade” e gostei tanto que tive a manha de copiar um trecho. Olha
só! – e pegando um pedaço de papel que estava no seu bolso começou a ler.
“Lulu dormia nua não só
porque gostava de se acariciar com as cobertas, mas também porque lavagem de
roupa custa caro. A princípio Henri protestou; não se deve dormir nu, isto não
se faz, é nojento. Acabou, porém, por comodismo, seguindo o exemplo da mulher;
ele era correto como uma estaca quando se achava no meio de outras pessoas
(admirava os suíços e particularmente os genebrinos, achava-os altivos porque
eram impassíveis) mas negligenciava as pequenas coisas, por exemplo, não era
muito asseado, raramente mudava de cuecas; quando Lulu as punha na roupa suja,
não podia deixar de observar o seu fundo amarelado à força de roçar contra o
rego das nádegas. Pessoalmente, Lulu não se incomodava com a sujeira: dá um ar
de intimidade, cria certos sombreados familiares. No cíncavo dos cotovelos, por
exemplo. Não gostava dos ingleses, dos seus corpos sem personalidade, sem
nenhum cheiro. Sentia, porém, horror às negligências do marido, porque
refletiam um carinho excessivo por si próprio. De manhã, ao acordar, ele se
sentia sempre terno, a cabeça cheia de sonhos, e o dia claro, a água fria, o pelo
áspero das escovas lhe faziam o efeito de brutais injustiças.
– Confesso que não entendi bem –
respondi sem compreender o que ele, C-Zinho, queria me dizer com aquele trecho
que acabara de ler.
– Mermão, esse lance da sujeira que a Lulu vê
nas cuecas do marido e a forma como Sartre coloca isso, resgatando a questão da
intimidade, e de como isso cria, nas palavras dele, um certo sombreado familiar, é existencialista pra cacete! –
respondeu ele com tal vibração que comecei a acreditar em suas palavras tal era
a fé que colocava naquelas ideias. Nesse
momento, pensei comigo mesmo: o Xarope já
está fazendo o seu efeito, pois o neguinho tá a todo vapor.
– Cara, osóriamente falando, acho que você tá tomando Xarope demais – falou
P-Zinho com um largo sorriso no rosto e que por estar ali próximo, também havia
escutado a conversa.
Todos que estavam ali por perto
danaram-se a rir, se divertindo a valer por causa das maluquices viajantes do
C-Zinho e também por causa do “osóriamente falando” que era uma expressão-gíria
criada e adotada por nós. Os termos “Osóriamente” e “Erôneamente” (leia-se
erôneo e não errôneo, de erro) foram criados por sei lá quem e fazia parte do
nosso jargão diário. Dizem alguns, que o
primeiro que apareceu com isso no grupo foi um bandidinho conhecido pelo
apelido de Barão Bá Bá Bá, um sujeitinho repugnante que havia aportado por
aquelas bandas pouco tempo atrás. O cara
era um punguista que costumava circular pelo centro da cidade atrás de vítimas
distraídas. Um belo dia ele encostou em
nosso grupo para pedir um cigarro, puxou uma conversa e a partir de então, vez
por outra dava as caras na esquina da Sete de Setembro, bem ali no nosso pointer.
– C-Zinho, é por isso que você hoje tá
irreconhecível no campo. Isso é muito
Xarope na cabeça, mermão! – falou SR em alto e bom som, ele que agora já se
encontrava mais calmo, tanto que o seu conhecido Tic já tinha até
voltado. Ele não parava de tirar o seu cabelo da testa.
Nesse instante, para a alegria dos ali
presentes, pelo menos aqueles que estavam mais próximos a nós, a música I Want Freedom do Grand Funk começou a
tocar, música essa que era quase uma unanimidade entre nós. Todos a adoravam,
principalmente pela ideia que os membros do grupo tiveram. A música é
interrompida logo em seu início, como se os músicos estivessem ensaiando e
alguma coisa saiu errado. O baterista e
o tecladista trocam algumas palavras sobre a parada abrupta que eles deverão
fazer na segunda parte da introdução. A ideia é genial porque é como se nós, os
ouvintes, fôssemos de repente, convidados a entrar na sala de gravação e
participar do ensaio. Isso dava a
sensação de que estávamos entrando na música. No momento em que ela começou a
tocar, B-Zinho, de longe, começou a gritar:
– Aumenta isso aí, aumenta isso aí! –
bradou ele, que naquele momento, se encontrava em pleno jogo.
– Se liga no jogo, B-Zinho, nós tamo
perdendo, caráio! – esbravejou SO, seu companheiro de equipe.
Enquanto esperávamos pela próxima
partida, eu, C-Zinho, C-Léo, P-Zinho e outros, ficamos confabulando as nossas filosofices yessiânicas, termo que mais
gostávamos de usar e que se referia ao som viajante do grupo inglês Yes, banda que C-Zinho havia acabado de
nos apresentar. Ele ganhara o disco
intitulado Fragile em sua estada
recente nos EUA e esse disco provocou, pelo menos em mim, uma verdadeira
revolução, afinal de contas até aquele momento nós só ouvíamos Rock pesado de bandas como Led Zeppelin,
Uriah Heep, Grand Funk e Black Sabbath, por exemplo. Aquele som, que era uma mistura de Rock, Jazz
e música Clássica, causou uma verdadeira quebra de paradigma em nossas visões
musicais, digamos assim.
Indiferente a aqueles nossos
“papos” filosóficos e pambenílicos (pambenílico era uma
referência ao nome do Xarope Pambenyl e o estado alterado de consciência que
ele provocava, resultado de uma substância que ele continha chamada codeína),
AT, que naquele momento, acredite, já estava sentado ao lado de SR e junto com
ele não parava de tirar sarro da
rapaziada que estava jogando, levantou-se e levou a mão ao rabo dizendo:
– Pô, mermão!, hoje pela manhã dei uma
cagada monumental. A merda que saiu foi tão grande que me deflorou – falou
enquanto coçava a sua bunda de forma
acintosa.
Confesso, eu considerava o baixinho AT
um sujeitinho execrável pela sua falta de modos,
palavra predileta da minha avó quando queria me repreender por algum desvio de
conduta.
– Tenha modos, menino! – falava ela quando achava que eu estava fazendo
algo que não devia.
Indiferente a qualquer um, o baixinho
continuava se coçando com uma veemência desenfreada e sem nenhum pudor. Logo em
seguida, sem escrúpulo algum, falou:
– Estou com uma coceira danada no dedo hoje! – disse ele virando-se para nós, com a cara
mais lavada do mundo. E não parou por
aí.
– Cara, imagina o sujeito, todo
elegante, andando pela rua e de repente ele é acometido por uma tremenda
coceira no rabo, já pensou? – falou ele já de pé virando-se para o nosso lado.
– Te digo uma coisa, ainda vou escrever
um livro sobre isso e o título vai ser, sabe como? Quando
o rabo coça o sujeito perde a bossa.
Foi uma gargalhada geral no grupo. C-Léo, que costumava rir por qualquer
bobagem, quase foi à loucura. Sorriu tanto que quase urinou nas calças. O sorriso dele, obviamente, contagiou a todos
nós. Acho que ficamos rindo por uns dez
minutos seguidos. O baixinho se divertia
a valer, aliás, esse era o termo predileto que ele utilizava quando assistia a
filmes de comédia.
Por várias vezes eu o flagrei no cinema
dando pernadas pro ar de tanto rir diante de uma cena engraçada. Nesses
momentos ele costumava falar bem alto dizendo: “Eu me divirto, eu me divirto!
Meu Deus!, eu me divirto! Nessas ocasiões, se eu estivesse por perto, me
afastava completamente dele de tanta vergonha que sentia. O cara era um sujeitinho muito escroto. Que Deus o tenha, pois ele já não está mais
entre nós.
Quando acreditávamos que o festival de
bobagens iria parar, SR disparou:
– Moçada, vocês não sabem a cena que
presenciei ontem na entrada do Ed.
Unidos – falou ele mais uma vez levando a mão ao rosto para levantar a sua
franja que insistia em cair-lhe sobre os olhos.
E prosseguiu.
–
Cara, ontem eu vi SO dando o maior amasso numa pinil do quinto andar –
concluiu a sua chamada.
“Pinil” era o abreviativo de
“piniqueira”, expressão que remonta, creio eu, ao período da Casa Grande, onde
as escravas pela manhã, limpavam os penicos dos senhores da fazenda. Esse era o
nome que utilizávamos de forma pejorativa, diga-se de passagem, para as
empregadas domésticas.
– Todo mundo aqui sabe que SO adora uma
pinilzinha, não é verdade
B-Zinho? – respondeu AT se dirigindo
a ele, questionando o irmão. E SO não
deixou por menos.
– Olha quem fala? – Se defendeu ele. E continuou em sua defesa.
– Esses dias eu tava chegando em casa
da escola, acho que era umas 17:30hs, e, de repente, ouvi uns gemidos. Sabe quem era? – falou ele com cara de interrogação olhando
em nossa direção.
– Quem? – Perguntou M-Louco.
– Esse sujeitinho aí... o baixinho.
Gente, vocês não vão acreditar!?. O sujeito tava comendo a pinilzinha do sétimo andar, sabe quem
é? Aquela gostosinha que trabalha na
casa da Dona Eliete?
– E aí?
– alguém perguntou, curioso.
– Pois é! Ele tava comendo a mina, moçada, acreditem,
na escada do 2o. andar. No meio da escada. Olha só que perigo? Esse cara é completamente maluco.
– Essa praga aí é um tarado de marca
maior – completou M-Mentiroso com ares de indignação.
– Santo Deus!, esse
sujeitinho é completamente desregrado –
falou C-Zinho olhando pra mim enquanto balançava a cabeça como se desaprovasse
tudo aquilo.
Aquela conversa ainda rendeu por um bom
tempo enquanto, em quadra (chamar aquele chão batido de quadra é um elogio), a
moçada continuava se digladiando.
– Fim de jogo, uhuuuuuuu!!! – Gritou B-Zinho feliz da vida porque o seu
time havia vencido aquela disputada partida.
– Próximo time em quadra! – Gritou M-Mentiroso chamando os seus
companheiros pro campo.
As partidas foram se sucedendo com o
meu time conseguindo vencer os seus confrontos.
Havíamos nos classificado em segundo lugar por saldo de gols e fomos
para a disputa do primeiro mata-mata, novamente contra o time do baixinho.
Confusão à vista, pensei eu. E não deu outra. Logo no início do jogo, os dois nervosinhos se desentenderam e dessa vez foram às vias de fato. Corremos todos para apartar aquela briga que por pouco não se transformou numa confusão ainda maior, visto que no meio de toda aquela discussão, outros elementos também acabaram se envolvendo. Foi um empurra-empurra pra cá, outro pra lá, com a turma do deixa-disso no meio de todos tentando acalmar os ânimos que naquele momento estavam bastante exaltados.
Confusão à vista, pensei eu. E não deu outra. Logo no início do jogo, os dois nervosinhos se desentenderam e dessa vez foram às vias de fato. Corremos todos para apartar aquela briga que por pouco não se transformou numa confusão ainda maior, visto que no meio de toda aquela discussão, outros elementos também acabaram se envolvendo. Foi um empurra-empurra pra cá, outro pra lá, com a turma do deixa-disso no meio de todos tentando acalmar os ânimos que naquele momento estavam bastante exaltados.
Depois de muita conversa, os grupos se
separaram e a partida foi retomada. Só
que, para variar, aqueles dois sujeitinhos continuaram a se estranhar. O baixinho, em vez de jogar, ficou próximo a
SR girando ao seu redor ao mesmo tempo em que girava o seu braço, que em punho
estava prestes a lhe desferir um golpe.
– Cara, se tu me bater, eu vou te arrebentar – Falou SR com
um sorriso nervoso no rosto.
– Eu vou te bater, eu
vou te bater, lá lá lá – falava sem parar, o irritadinho.
Nesse momento, um coro se formou dentro
e fora do campo pedindo para que aquelas pendengas acabassem. Alguém chegou a sugerir que se as rusgas não
fossem deixadas de lado, o melhor seria que os jogos fossem interrompidos e o
campeonato encerrado. De certa forma
aqueles pedidos acabaram surtindo um certo efeito pois os arranca-rabos
diminuíram.
Pedimos para que os dois ficassem em
lados diferentes do campo objetivando assim evitar possíveis encontros mais
duros. No fim, eles acabaram se
afastando e o jogo chegou ao seu final com nova vitória da nossa equipe. Foi um jogo duríssimo com placar de 2 X 1
favorável ao nosso time. Estávamos na
final.
Ficamos esperando pela partida do outro
grupo e enquanto isso ouvimos mais um pouco de rock, fumamos mais uns cigarros
e tomamos mais um pouco de xarope. A
aquela altura do campeonato, eu comecei a sentir os efeitos da codeína de uma
forma ainda mais acentuada. Percebi isso no momento em que sentei ao lado de
C-Zinho, C-Léo e To, meu irmão mais novo.
Não lembro bem qual foi o tema da conversa, aquela hora já permeada pelo
viajante som do Yes, mas deve ter sido algumas daquelas nossas filosofices
habituais. Eu, completamente chapado,
percebi claramente que o lema daquela nossa geração estava fazendo um completo
sentido. Eu era só Paz e Amor.
Ficamos ali olhando aqueles jovens
correndo de um lado para o outro e em nossas cabeças foi se delineando um tal
estado alterado da consciência que tudo ali, todos os gestos e movimentos,
pareciam completamente cobertos de sentido. Na nossa visão, aquele jogo era
pura poesia. C-Zinho, como que em estado
de êxtase, virou-se pra mim e falou:
– Cara, olha essa bola e esses caras aí
correndo atrás dela. Que coisa louca, não?
– indagou-me como se quisesse dizer alguma coisa.
– A bola é um verdadeiro símbolo, algo,
eu diria, xamânico – completou. E na sequência eu pensei comigo mesmo: C-Zinho
hoje passou da conta. E ele não parou por aí pois em seguida nos confidenciou
um poema que havia feito por inspiração da sua voz da consciência, a quem ele
chamava de Antracília. Não me pergunte
porque, pois acho que nem ele mesmo sabia explicar de onde tinha saído esse
nome. E ali, olhando para o movimento da bola que não parava de sambar à nossa
frente, declamou:
Antracília me falou
que a bola é uma aposta
onde nela tudo se joga
até aquilo que não se gosta.
– Mermão, o cara hoje tá inspirado,
caraio! Quantos vidros de Pam tu tomastes? Uns dois, acho! – falei pra ele com um misto
de alegria e encantamento.
– E você tá esquecendo de uma coisa, né
C-Zinho? – perguntou C-Léo.
– O Gol! – concluiu!
– Pois é! Outra coisa totalmente simbólica e xamãnica –
respondeu C-Zinho.
– É isso aí! – interrompeu C-Léo.
– O chamado Filó, como escreveu Chico –
completou C-Léo referindo-se a um poema do Chico Buarque e também à forma como
o Goal, que em inglês quer dizer
Meta, Objetivo, era chamada nos meios futebolísticos.
– Estufar o Filó é o momento mais
mágico do futebol.
– Verdade – respondi.
– Repara quando um desses caras faz um
gol! Olha só a felicidade que eles
sentem nesse momento... é indescritível
– completei.
– E quando esse gol ainda por cima traz
a vitória? – indagou C-Zinho.
– Aí fudeu! – respondeu C-Léo.
– É isso aí – concordei não só com ele,
C-Léo, mas como se estivesse fazendo um gesto de concordância global com tudo
aquilo que estava sendo conversado ali.
Vendo aqueles rapazes correndo atrás da
bola, com seus dorsos se contorcendo numa verdadeira dança, observei ainda mais
a forma como alguns a tratavam com delicadeza, sobretudo aqueles mais
talentosos. Gu era um deles. A maneira
como ele a tocava e a forma harmoniosa com que ele ia se infiltrando na zaga
adversária, parecia delinear no espaço um ritmo morno e ao mesmo tempo incisivo
que impunha a todos os seus combatentes os seus desejos. Tive a impressão de que ele mandava nos seus
oponentes, fazendo o que bem desejasse. Deu dó de ver a angústia dos seus
marcadores que de todo jeito buscavam impedi-lo de chegar ao seu objetivo. No fim, eles acabavam ficando para trás, um a
um, como se estivessem caídos de podres, tal a impotência que sentiam ao tentar
pará-lo. Dava gosto de ver.
No final, não deu outra. O time deles venceu o duelo e seria o nosso
adversário na final. Estava certo que
iríamos ter um jogo duríssimo pela frente mas senti-me mais confortado porque
aquela equipe não contava em seu grupo com nenhum elemento criador de
caso. Isso, por si só, já era um grande
alívio. O jogo seria jogado, na bola.
X
O desábito de vencer
não cria o calo da vitória
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas
Guarda-a sem mofo: coisa fresca
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto no sol do Cais da Aurora
João Cabral de Melo Neto
Nos jogos em que participei durante
aquela época em que jogávamos a nossa bola no estacionamento da Rua da Saudade,
eu nunca cheguei a uma final. Meu time,
formado na maioria das vezes pelos maiores pernas-de-pau do grupo, mesclado
aqui e ali por um ou outro mais talentoso, nunca havia chegado à uma
decisão. Aliás, vencer não era uma
palavra presente no meu vocabulário. E que fique claro: na maioria das vezes a
grande culpa, como sempre acontece nesses casos, recaía sobre mim, o
goleiro/mordomo, como eu era chamado pois sempre era considerado o culpado.
Além de ser ruim de bola, eu era um
cara totalmente viajandão, que vivia nas nuvens e, convenhamos, isso não é um
pré-requisito muito apreciado para um goleiro.
Naquele dia, eu até que estava me
saindo bem. Havia feito boas defesas e o
meu Ki-chute, a aquela altura já não tão novo assim, havia tirado algumas bolas
decisivas. Só que depois de todas
aquelas discussões filosóficas regadas a xarope e muito Rock and Roll, era de
se esperar que eu já me encontrasse para lá de Marrakech.
Apesar das minhas sandices e pelo fato
de me encontrar naqueles exatos instantes bastante alhures, até que eu estava me saindo bem. Fiz algumas
boas defesas e até consegui posicionar bem a minha defesa, passando instruções de
como C-Zinho e C-Linho deveriam marcar o talentoso Gu.
– Não fiquem em linha, não fiquem linha
– eu gritava a todo momento.
– Um marca e outro fica na
cobertura. SR, marca ele também aí no
ataque! – eu falava o tempo todo numa tentativa desesperada não só de anular o
principal jogador do time adversário, como também, e essa era a parte mais
importante, de me manter no jogo, pois se eu não fizesse isso, com certeza
rapidamente iria parar em outras plagas, como se estivesse numa viagem
lisérgica.
Numa jogada mais aguda dos nossos
oponentes, Gu, de forma inteligente, puxou a marcação dos meus dois zagueiros,
deixando seu irmão livre para marcar.
Não demorou muito e SC, numa linda jogada individual, empatou para o
nosso time.
O jogo seguia bastante disputado,
porém, sem jogadas mais ríspidas e embora estivesse sendo interrompido muitas
vezes por causa da forte marcação exercida por ambos os lados, não tínhamos
grandes discussões. Naquele instante, de
onde estava, pude ouvir quando no meu pequeno gravador começou a tocar a canção
mais linda do Survival, álbum novo do
Grand Funk: I can feel him in the
morning. As vozes singelas e angelicais daqueles garotinhos conversando
sobre Deus logo no início da música me fizeram viajar para bem longe dali. Isso foi algo que não podia ter acontecido já
que, numa distração, Gu acabou virando o jogo.
SR foi à loucura.
Só que naquele exato momento, estávamos perdendo por 2 X 1 e o jogo já se
encaminhava para o seu final quando num ataque adversário, a bola acabou saindo
pela linha de fundo, indo parar bem longe do gol. Eu, que já estava numa Nice só, saí
caminhando bem devagar para buscá-la indiferente ao resultado desfavorável para a nossa equipe.
Quando me preparava para voltar ao gol, ouvi SR bradando
desesperadamente, e com razão pois estávamos em desvantagem no placar e precisávamos correr contra o tempo para buscar o resultado.
– Manda a bola... manda a bola,
caraio! Rápido, rápido!
Rápida e desastradamente, de onde
estava, ou seja, fora do gol, joguei a bola em sua direção. Ela, a bola, caprichosamente pegou um outro
rumo e caiu certeiramente nos pés do Gu, que de forma implacável, sem dó nem
piedade, antecipou-se rapidamente à nossa defesa e largou o pé. Estava decretada a nossa derrota.
SR saiu correndo em minha direção com
os punhos cerrados me chamando de nomes nada agradáveis de se ouvir. Não chegou a me bater porque foi seguro pelos
demais. O desábito de vencer, não cria o
calo da vitória, estava certo o Cabral.
Ficamos ali discutindo por um longo
tempo. Ele querendo me crucificar e eu,
totalmente à deriva, tentando me justificar, afinal de contas havia atendido ao seu pedido para jogar-lhe a bola.
- Porque não esperou que eu voltasse ao gol? Eu iria demorar? -- É provável que naquele meu passinho de tartaruga isso de fato fosse acontecer.
O fato é que mais uma vez, por minha causa, o goleiro/mordomo, aquele que é sempre o culpado, o nosso time deixou de vencer. E olha que nunca havíamos chegado tão longe.
- Porque não esperou que eu voltasse ao gol? Eu iria demorar? -- É provável que naquele meu passinho de tartaruga isso de fato fosse acontecer.
O fato é que mais uma vez, por minha causa, o goleiro/mordomo, aquele que é sempre o culpado, o nosso time deixou de vencer. E olha que nunca havíamos chegado tão longe.
No final de tudo, o que mais importa é
que entre mortos e feridos, se salvaram todos.
Aquela tinha sido mais uma deliciosa tarde que passamos juntos e não foi
por causa das desavenças que aconteceram naquele dia que o grupo se desagregaria,
afinal de contas para aqueles rapazes tudo era motivo de alegria.
Perder ou vencer faz parte do
jogo. Faz parte da vida. O importante é que a vida seja vivida. Em seu livro de memórias, Viver para Contar, o escritor colombiano
Gabriel Garcia Marquez define o que considera a essência de estar vivo. “A vida
não é o que se viveu, mas sim, o que se lembra, e como se lembra para contar.”
Essa é a forma como me lembro desses
fatos que vivenciei durante tantos anos junto com todos aqueles rapazes e essa
é a forma como gostaria de compartilhar com cada um deles: contando essas
pequenas e divertidas histórias. Apesar de saber que alguns já se foram,
aqueles que ainda estão vivos haverão de se lembrar dos momentos marcantes que
vivenciamos, e ao relerem essas passagens voltarão a ser os eternos garotos que
são e que sei, ainda moram dentro de cada um deles.
Que saudades que sinto das nossas
peladas jogadas ali naquele lugar, que apesar de não reunir as menores
condições para que uma boa partida fosse jogada, nos emprestava o seu espaço
para que vivenciássemos esses saborosos momentos. Como não morávamos nos
subúrbios, que eram lugares onde normalmente se podia encontrar espaços mais apropriados ou até mesmo verdadeiros campinhos de futebol para que os jogos fossem
disputados, aquilo era o que dispúnhamos e era com ele que haveríamos de nos
contentar.
Não era um lugar apropriado, sabemos
disso, pois tratava-se de um local onde antes existiam enormes casarios que
foram construídos no final do século XIX e que tinham sido derrubados para
darem lugar a algum prédio no futuro.
Jogávamos sobre restos de pisos de
cozinhas, varandas e salas de jantar, o que por várias vezes nos levou a pensar
que pessoas e famílias haviam vivido naquele lugar. Quer quiséssemos ou não, só o fato de estar
ali já nos fazia sentir como se tivéssemos tocando a outra ponta de um tempo
que já havia se passado.
À essa altura, poderemos nos perguntar:
onde se joga futebol? E eu lhes direi:
futebol se joga em qualquer canto ou em qualquer lugar que se ofereça
para que uma bola e pessoas dispostas a correr atrás dela pratiquem as suas
traquinagens, suas molecagens e, por que não, realizem seus sonhos. No entanto, para finalizar, vou deixar que
alguém mais preparado que eu, o poeta Carlos Drummond de Andrade, possa
responder à essa questão.
Futebol se joga no
estádio?
Futebol se joga na
praia,
futebol se joga na
rua,
futebol se joga na
alma,
a bola é a mesma:
forma sacra
Para craques e pernas-de-pau.
Mesma volúpia de
chutar
na delirante
copa-mundo
ou no árido espaço do
morro.
São voos de estátuas
súbitas,
desenhos feéricos,
bailados
de pés e troncos
entrançados.
Instante lúdicos;
flutua
o jogador, gravado no
ar
-- Afinal, o corpo
triunfante
da triste lei da
gravidade.
Carlos
Pessegatti
Comentários
Postar um comentário