Seu Martinho, meu Mestre.

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A turma da esquina Sete costumava se reunir ao longo do muro de um estacionamento que existia na Rua Sete de Setembro, localizado entre a Av. Conde da Boa Vista e a Rua Martins Júnior. Ele ficava espremido entre o Edifício Unidos e um casario cercado por grades que pertencia ao desembargador João Roma, pai de um conhecido nosso, o Joca.

Este muro tinha mais-ou-menos um metro e meio de altura, com aproximadamente cinquenta centímetros de largura e uns 20 metros de extensão, aproximadamente.  Na sua base, na parte de trás,  haviam blocos que davam sustentação a alguns Outdoors ali instalados. 

Durante a semana, os rapazes costumavam se reunir à noite, logo após o jantar.  Nos finais de semana, esse local eventualmente servia como ponto de encontro para os diversos grupos que retornavam de suas noitadas, ora das boites, que ficavam localizadas na região sul da cidade, mais exatamente nas praias de Candeias e Piedade, ora das chamadas tertúlias que aconteciam nos diversos clubes da cidade, como o Clube Português, o Internacional ou o Clube Náutico.  Em outras ocasiões, eram grupos que retornavam das chamadas sessões da meia-noite. As sessões da meia-noite apresentavam as conhecidas avant-première de filmes que iriam estrear algumas semanas depois. 

Inicialmente, essas sessões aconteciam no Cine São Luiz, que ficava na Rua da Aurora, à margem do Rio Capibaribe, esquina com a ponte Duarte Coelho.     

Posteriormente, depois  de 1970,  essas  sessões  passariam  a  acontecer  no  novíssimo Cine Veneza que ficava localizado na Rua do Hospício, quase em frente ao Colégio Carneiro Leão, colégio onde fiz o meu 2o. grau, ou ginásio, como era chamado naquela época.  As más línguas costumavam cantar um refrão que dizia mais-ou-menos assim: Colégio Carneiro Leão, onde se entra burro e se sai ladrão.  Eu, como era de se esperar, não gostava muito de ouvir esse cântico.

Os encontros que aconteciam nos dias de semana costumavam reunir um grande grupo, que normalmente ficava subdividido em grupos menores, reunidos por idade e/ou afinidade. Nessas ocasiões, praticamente todos os garotos ali se encontravam.  Eles  ficavam sentados alinhados ao longo do muro, e por se tratar de um grupo grande, acabavam formando pequenas rodinhas, já que era praticamente impossível se estabelecer um diálogo em função de sua disposição espacial.  Havia um rapaz moreno, forte, que tomava conta do estacionamento e que muitas vezes acabava participando daquelas reuniões.  Certa vez, ele nos propôs uma brincadeira. E como ela era?  Vamos às regras.

Deveríamos formar um círculo onde cada um representaria um determinado papel. Ele, que nos sugeriu esse jogo, seria o “Seu Martinho, meu mestre”.  Cada um dos demais ali presentes, seria representado por uma “casa” e cada uma dessas casas teria um número. Eu, por exemplo, poderia ser a “casa No. 1”.  O que estava ao meu lado seria a “casa No. 2”, e assim por diante, até completar o número de participantes da roda.

Ele começaria o jogo fazendo a seguinte pergunta: “Onde foi parar o presente do Seu Martinho, meu mestre?”  E na sequência, ele mesmo apontava para algum outro elemento do grupo dizendo...  “Na casa do Seu Martinho não está, então deve estar na casa número...   quatro!”, por exemplo.  Aquele que representasse esse número, deveria de bate-pronto, responder: “Na casa número 4 não está; deve estar na casa número...   7!”   

Aquele que não conseguisse falar rapidamente e com clareza exatamente aquelas palavras, era submetido a um castigo que era o de tomar, daquele que encaminhou a mensagem, uma palmada com um pedaço de madeira que funcionava como uma  palmatória. Dependendo de onde tinha sido originada a mensagem que nos levou ao erro, sabíamos, de antemão, o tamanho do nosso sofrimento.

Havia ali entre os presentes, alguns garotos que adoravam tripudiar sobre os demais, principalmente porque na maioria das vezes eles eram os que mais erravam.  Eu, que era mais franzino, evitava punir com rigor aqueles que erravam ao me responderem, principalmente se eles fossem um  daqueles que sabíamos serem os mais “fortinhos” do grupo.  Ah!, sim.  Na vez deles, se eu errasse, huummmm....   a vingança seria cruel.  

 SR, F e N, eram os mais fortes e estabanados do grupo e todos nós sabemos que os chamados “parrudinhos” adoram fazer uso de sua força.  F e N, eram atarracados e pareciam dois tanques de guerra.

As suas brincadeiras eram sempre de bater e na aquela ocasião não seria diferente.  Muito pelo contrário. Ali eles tinham carta branca para fazer isso.  Parodiando aqueles filmes de espionagem, muito comuns naquela nossa época onde a Guerra Fria comia solta e onde os agentes tinham “carta branca para matar”,  naquela brincadeira, eles estavam autorizados a bater, e, olha, eles se refestelavam. 

SR era um sujeito que parecia estar ligado no “220” o tempo todo.  De tez branca e ar sisudo, dificilmente o víamos sorrir.  O seu sorriso, quando acontecia, era abrupto e um tanto nervoso.  Parecia incomodado com o seu cabelo aloirado que lhe caía pela face todo o tempo.  Acho que aqueles gestos que ele fazia para retirar o cabelo dos olhos o deixavam um tanto irritadiço.  Apesar de sua cara de poucos amigos, ele não era um mau sujeito.  Particularmente, eu gostava dele.  Talvez porque enxergasse no fundo dos seus olhos o ser humano escondido por trás daquela postura um tanto arredia.

Numa dessas noites, SR, que era o rei do erro, havia tomado tanta palmada que eu comecei a ficar preocupado.  Ele não conseguia segurar a raiva que estava sentindo e o seu desejo era um só: que alguém errasse exatamente na sua vez para que ele pudesse se vingar.  E o que mais eu temia, acabou acontecendo.  Eu, justo eu, o franzino, errei bem na sua vez.  Naquele momento elevei o meu pensamento a Deus pedindo-lhe para aplacar a sua ira. 

SR estava transtornado. Eu vi nos seus olhos o sentimento mais puro de vingança. Lembrei naquele momento do filme As vinhas da Ira.  Ele era a pura ira cuspindo fogo pelos olhos.  Assim que lhe deram a palmatória, ele falou:  “Segurem a mão dele, a minha vingança será maligna”.   Ele disse brincando, mas eu percebi que de brincadeira aquelas palavras não tinham absolutamente nada.  

Ele se preparou para dar aquela palmada com todo empenho, fazendo um monte de peripécias, sentindo uma terrível sede de vingança.  Fez uma enorme e longa encenação que quanto mais demorava, mais aumentava o meu sofrimento.  Os meus amigos seguraram o meu braço e o meu ser se encheu de estupor.  Eu não tinha outra coisa a fazer a não ser rezar,  e foi o que fiz.  Fechei os olhos e esperei a pancada.  E aí, o improvável aconteceu.  Ele estufou tanto o peito, se preparou tanto para aquele momento, que acabou errando.  E graças a Deus, aquele nosso joguinho informal e despretensioso era cheio de regras, e uma delas era:  errou a palmada, chance malograda.

SR não se conteve de tanta raiva.  Esbravejou dizendo que eu havia me mexido. Só que os meus amigos, aqueles que seguraram a minha mão, bateram o pé afirmando que aquilo não havia acontecido.  SR implorou para que lhe dessem uma outra chance, e eu, claro, só reforcei a regra dizendo:  “Meu amigo, chance desperdiçada, chance perdida, e...   seeeeeegue o jogo”.

Eram noites bem doloridas, porém, muito divertidas e que tenho certeza, guardarei para sempre na minha memória.  Ao final delas, nós voltávamos para casa invariavelmente com as nossas mãos inchadas e vermelhas de tanto apanhar.  Contudo, garanto, o sentimento que levava comigo não era de dor, mas sim, e por mais paradoxal que isso possa parecer, de alegria.  Eu ia para casa ostentando  felicidade.

Hoje em dia dói-me muito mais, e essa sim, é uma dor de verdade, ao ver as mazelas sociais, a ignorância no trânsito, o consumismo exacerbado, a falta de cidadania, o desrespeito e o descaso político, as cidades cada vez mais como se tornando um  espaço de medo,  de abandono, a guerra do tráfico, a falta de diálogo entre as pessoas, a corrupção, a selvageria do capitalismo moderno, a sujeira nas ruas, a falta de segurança, a banalização da violência transformada em espetáculo, ver pessoas perdidas, desbussoladas, sem esperança, sem alegria, a propaganda hostil com as empresas pregando valores que não possuem, a degradação do planeta, a luta predatória de todos contra todos, enfim, são tantas outras coisas que nos fazem sofrer  que aquele pequeno mervelhidão em nossas mãos, ou até mesmo o baque momentâneo que aquelas palmadas eventualmente podiam provocar em nossas auto-estimas, tornavam-se irrelevantes. O sentimento de pertencimento, a sensação de fazer parte de uma comunidade, ah! isso não tinha preço.

Hoje tenho claro que naquela época nós não  vivíamos em um mundo de flores, repleto de paz e amor.  Muito pelo contrário.  Estávamos presenciando uma ditadura ferrenha que prendia e matava as pessoas sem direito a defesa.  Sobre nossas cabeças pairava a possibilidade de uma hecatombe nuclear.  O mundo não era melhor do que é hoje.  Historiadores têm dito que o século XX foi o século mais sangrento na história da humanidade e isso, sabemos hoje, é a mais pura verdade.

O que faz aquela época ser tão diferente, então?  Talvez fosse porque a nossa capacidade crítica era muito limitada. Nós éramos extremamente ingênuos e ignorantes em relação à selvageria do mundo que nos cercava. O mundo perdeu ao longo desses últimos anos, o seu encantamento, a sua ingenuidade. As crianças de hoje têm tanta informação, são tão bombardeadas pelos meios de comunicação, que  sequer têm tempo ou até mesmo o direito de serem crianças. 

E tem outra coisa: o mundo era aquele que vivenciávamos alegremente todos os dias.  Não existia muita coisa além daquele nosso dia-a-dia. Os problemas estavam muito distantes da nossa realidade. 

Sei que existiam alguns desconfortos e ansiedades com relação ao futuro,  mas nada que atrapalhasse a nossa felicidade. Quando recordamos o passado, mesmo tratando-se de alguns momentos em que tenhamos vivenciado alguma tensão, tudo isso parece desaparecer.  Sartre certa vez falou que as lembranças do passado são boas porque não carregam consigo a ansiedade presente naqueles momentos.

Aquele era o nosso mundo, o nosso momento. Nada mais nos importava. É muito bom saber quando aquilo que temos não passa de conjecturas e onde o que vale, de verdade, é o tempo presente. Pelo menos disso nós tínhamos conhecimento e  mesmo se essa percepção não fosse tão clara, nós a intuíamos.

 O futuro, ah!, o futuro... ele não passava de pura imaginação. Principalmente quando  somos tão jovens que sequer temos tempo ou maturidade para conjeturar.  O que somos e o que vivemos não passa de um presente que futuro algum pode destruir.  Hoje sei que aquele presente onde reinava figuras como Seu Martinho, vai continuar me servindo de guia por toda a vida como um mestre a iluminar os meus caminhos, lembrando-me a todo instante que a felicidade é uma obrigação e que nunca, não importa quanto tempo passe, devemos nos esquecer.  

Carlos Pessegatti


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