Os segredos de François Hold




Esta história se passa em um 
único dia na provinciana
Recife do início dos anos 1970



Capítulo I
Ciência X Religião – A Física propõe uma trégua


Em uma inesperada e ensolarada tarde de maio, saí do Colégio Esuda bastante intrigado com algumas ideias que o nosso professor de física nos transmitira em sua aula.  Eu estava no segundo ano do curso Científico, nome que se dava ao que hoje conhecemos como Ensino Médio. Foi um período da minha vida onde praticamente todos os dias uma enxurrada de novos conhecimentos me eram apresentados e todas aquelas informações aguçavam ainda mais a minha curiosidade juvenil, sobretudo porque eu me encontrava em uma idade onde as coisas costumavam soar realmente como novas e cheias de mistérios.

Naquela época, o Científico estava voltado para as ciências exatas, enquanto o Clássico era indicado para os alunos que iriam prestar o vestibular de Humanas.  Existia ainda o Biológico, que era direcionado a aqueles que iriam fazer medicina e disciplinas afins.

O professor, que tinha um sotaque estranho (ele era paulistano), vez por outra nos surpreendia com algumas ideias revolucionárias.  Naquele dia, em especial, ao discorrer sobre a Teoria das Cordas, ele acabou comentando sobre algo que ao meu ver me pareceu bastante intrigante.  Segundo nos ensinou naquela ocasião, os princípios matemáticos utilizados por esta teoria permitiriam afirmar que o nosso universo possui onze dimensões.

A título de esclarecimento, a Teoria das Cordas é um modelo físico cujos blocos fundamentais são objetos extensos unidimensionais, semelhantes a uma corda, e não constituídos por pontos sem dimensão (partículas), que eram a base da física tradicional. Entretanto, o que mais chamou a minha atenção foi quando ele falou que alguns estudiosos acreditavam que, entre as onze dimensões enunciadas, a 6a. seria aquela onde habitariam os espíritos.

Ora, sabemos do grande embate que sempre existiu entre a Ciência e a Religião visto que entre elas se formou um enorme abismo de interrogações e divergências, da qual a mais emblemática talvez seja aquela em que se pergunta: viemos dos macacos ou da costela de Adão?

Galileu Galilei, que é considerado o fundador da Física moderna, deu grande ênfase à medida e à quantificação e foi ele quem restringiu o que seja ciência apenas ao que possa ser medido e quantificado. Depois dele, Francis Bacon, que foi o criador do método empírico de investigação, afirmou que a razão sempre deve estar submetida à prova de experimentação, fechando esta questão e colocando definitivamente uma barreira intransponível entre estas duas formas de conhecimento e entendimento humano. Será então, que com aquela afirmação o nosso professor pretendia dizer que a Física estaria propondo algum tipo de aproximação com a Religião?  Tenho minhas dúvidas.


Ouvir um físico falar em espiritualidade, portanto, Religião, soa no mínimo estranho e terrivelmente paradoxal. Entretanto, o que de mais estranho aconteceu, talvez tenha sido o fato de eu não ter, ao final da aula, me dirigido a ele para questioná-lo do porquê dessa sua afirmação, e, segundo me recordo, acho que nunca o procurei para esclarecer esta dúvida. Ela permanece comigo até hoje. As razões para isto?  Acredito que talvez se deva a dois fatores: a minha total ignorância com relação à doutrina espírita àquela época, e depois, porque na minha cabecinha tosca daqueles anos idos espiritismo e assombração possuíam exatamente o mesmo significado. E eu morria de medo de assombração. Melhor, então, seria me ater apenas às questões científicas propriamente ditas. É nisso que quero crer hoje, pois se fosse nos dias atuais, eu teria levado uma questão dessa natureza às últimas consequências.


Antes de sairmos do colégio, eu e o meu amigo SL, um gênio matemático que estudava comigo desde os tempos de ginásio, procuramos trocar algumas ideias sobre o que havíamos escutado. Contudo, esta discussão não evoluiu muito porque ele, SL, era um verdadeiro cientista na acepção da palavra, um Cartesiano, eu diria, e aquelas ideias transmitidas pelo nosso querido professor não faziam menor sentido para ele.

Saí do colégio carregando um sentimento que era um misto de inquietação e alegria. Inquietação, porque aquelas palavras ainda não tinham sido devidamente digeridas por mim, e alegria porque esse era o meu costumeiro estado de espírito sempre ao final das aulas. Junto comigo estavam os meus colegas de sala, AB e L-Gordinho, que tentavam, em vão, me ajudar a encontrar algumas explicações para aquela afirmação tão inusitada proferida por um físico. Caminhamos pela Rua Corredor do Bispo em meio à uma enxurrada barulhenta e festiva de estudantes que divertidamente transitavam naquele horário retornando para suas residências.

Continuamos ainda discutindo aquele assunto mas AB e L-Gordinho não se encontravam numa condição que lhes pudessem conferir uma opinião mais abalizada sobre o assunto. AB, que normalmente parecia estar sempre no mundo da lua, ficava ainda mais absorto quando ingeria um vidro de xarope, o velho Xarope Pambenyl, nosso barbitúrico preferido na época e válvula de escape para as nossas angústias existenciais.

Ao entrarmos na Av. Conde da Boa Vista caminhando em direção ao centro da cidade, o burburinho das pessoas, somado aos dos inúmeros carros e ônibus que trafegavam naquele horário, só aumentou, pois a aquele nosso grupo se juntaram outra leva de estudantes oriundos das demais escolas da região.

Atravessamos para o outro lado da avenida e logo nos deparamos com uma enorme quantidade de moças e rapazes que estavam saindo do Colégio Marista, que ficava encravado bem no meio daquela enorme quadra compreendida entre a Rua Gervásio Pires e a Rua do Hospício.

Eram tantos jovens circulando por aquele trecho da avenida que a presença deles acabava imprimindo ao enorme muro cinza, que margeava o colégio, normalmente tão severo e apático, um ar magicamente festivo e descontraído, permeando-o com uma sensação de intimidade.  A cidade parecia estar em festa.

A brisa suave vinda do mar enchia o meu coração de alegria, sobretudo porque sabia que logo mais me encontraria com os meus amigos para uma outra noitada de brincadeiras e risos, pois era assim que as coisas funcionavam quando éramos jovens. Por mais que tivéssemos nossas obrigações com a escola e os estudos, parecia como se a vida transcorresse o tempo todo dentro de um grande parque de diversões. É certo que tínhamos as nossas angústias, como todo mundo, mas esses sentimentos não chegavam a interferir em nosso estado de ânimo. Hoje, com o passar dos anos, as tensões que eventualmente foram vivenciadas por nós àquela época, de certo que ficaram todas para trás.

Depois de termos percorrido toda a extensão do Colégio Marista, atravessamos a Rua do Hospício e quando passávamos pela frente da loja de discos que ficava no Ed. Suape, a poucos metros dali, ouvimos o Fernando nos chamando para vermos a novidade que acabara de chegar.  Fernando era um sujeito magro de feições delicadas ornada por cabelos pretos e lisos, que trabalhava naquela loja fazia algum tempo.   Ao perceber a nossa presença, abriu um enorme sorriso acenando com uma grande moeda prateada e na sequência foi logo nos falando sobre aquele estranho LP que segurava em suas mãos.

Tratava-se do novo lançamento da banda americana Grand Funk, intitulado Pluribus Funk, mas que ficou conhecido, obviamente, pelo formato inusitado da sua capa imitando uma grande moeda, como O Disco da Moeda. Este disco, diferentemente do anterior, o Survival, mais rítmico e melódico, era pura adrenalina, com músicas de tirar o fôlego. Ouvimos extasiados um pedaço grande de cada faixa e chegamos à conclusão, que teríamos que fazer uma vaquinha para adquiri-lo. Fernando emitiu um largo sorriso aos nos ver confabulando sobre aquela angariação de fundos que precisaríamos fazer para comprar aquele maravilhoso LP. Riu, com certeza, da nossa dureza explícita e escancarada, e nós, sem pudor algum de sermos uns duros assumidos, rimos em consonância com ele, felizes da vida.  Aquela situação, naquela época, não nos constrangia de modo algum, muito pelo contrário. Ríamos dela. Aliás, para ser totalmente sincero, eu diria que ríamos de tudo, ou quase tudo.

Por um bom tempo ficamos confabulando sobre o formato inusitado daquele LP que tinha uma capa redonda, diferentemente das outras que tradicionalmente eram quadradas. Apenas aqueles que vivenciaram a era do LP sabem o quanto ele foi maravilhoso e representativo.  Os primeiros discos Long Playing, ou seja, de longa duração (antes dele tínhamos o disco de 78 rpm) surgiram nos EUA em 1948 e representaram uma grande evolução em relação aos antigos formatos pois possibilitava a revisão e reorganização dos repertórios anteriores em conjuntos que permitiam reconhecer sua grandeza. Alguns estudiosos o consideram um agente de mudanças revolucionário não só pelo seu indiscutível avanço técnico, mas porque enxergam nele uma associação direta com a nascente sociedade de consumo. Ora, sabemos que a posição de cada indivíduo dentro de um contexto social passa a ser determinada pela posse de certos objetos. Segundo o professor Lorenzo Mammi, nenhum deles era tão poderoso quanto o disco para encarnar formas específicas de sociabilidade.

Para Lorenzo, as gerações que cresceram nas décadas de 50, 60 e 70, a chamada era de ouro dos LPs, basearam suas escolhas existenciais nos discos. Aquela geração não somente apreciava o jazz, o pop ou o rock. Elas eram o próprio jazz, pop e rock. Os nossos ídolos daquela época gozavam da autoridade de verdadeiros poetas, tinham carismas de líderes e o charme dos atores de Hollywood.  Ainda segundo professor Mammi, os movimentos sociais da década de 60 não foram anticomunistas, muito pelo contrário: identificaram-se, sob muitos aspectos, com a posse e o uso de objetos específicos – roupas, discos, cartazes, drogas. O consumismo daquela década foi capitalista no sistema, mas anticapitalista no desejo.

É triste ver hoje a forma e a relação que a música assumiu na vida das pessoas.  Aqueles maravilhosos LPs, com seus belos encartes, que nos possibilitava, graças à arte contida em suas capas, um contato primeiro, anterior, com a música ali contida, evaporaram-se quase que por completo, apesar de estarem na moda outra vez, sobretudo para os puristas do som dito analógico.  O certo é que as músicas hoje, encontram-se quase que totalmente virtualizadas, e acabaram se transformando em coisas tremendamente voláteis e muitas vezes, vazias de sentido.  Antes, nós sentíamos como se tivéssemos a sensação de poder pegar, segurar uma música ou uma obra musical.  Hoje ela não passa de um arquivo guardado em um smartphone, iPad, ou mesmo em um lugar distante, em uma nuvem, e a única semelhança que possuem com aquela imagem do LP que tínhamos antigamente, são os desenhos nas telas imitando as capas dos discos.  O professor Lorenzo, no final de sua análise, chega à conclusão de que o LP não foi apenas um meio ou um mero suporte, mas uma forma artística, assim como foram a sinfonia e o romance.

Saímos da loja já pensando em quanto cada um de nós poderia conseguir no dia seguinte para adquirir aquela preciosidade pois é certo que de posse daquele novo disco, iríamos programar uma tarde onde cabularíamos aula para ouvi-lo no apartamento do nosso querido american-man, C-Zinho, que ficava ali perto, no 5o. andar do Edifício Iran, do outro lado da avenida, de frente para a livraria Moderna.

Logo que chegamos à esquina da Rua de Sete de Setembro, nosso querido ponto de encontro e quartel general, avistamos B-Zinho, SC e C-Léo parados em frente ao Ed. Ouro flertando com as estudantes que por ali circulavam.

Acho que o que era mais gostoso e reconfortante naquela esquina, é que ela representava ao mesmo tempo a cidade, com as suas ruas e seus movimentos, e o nosso lar, a nossa moradia. Por isso aquela sensação de conforto e segurança que ela nos transmitia.

Digo isso, porque não sei como essa geração de hoje, que transita pelos Shoppings-Centers, que incluem-se naquela lista dos chamados não-lugares, esses locais que foram homogeneizados pela globalização, sem espaço nem tempo e similares por todo o mundo, vai se recordar disso no futuro. Esses lugares representam a ofensiva avassaladora contra os espaços públicos nas cidades, são o contraponto das praças públicas. O filósofo Paul Virilio nos mostra como o homem assume primeiro a rua, para depois perceber que o espaço que conta é a estrada, o movimento. É nas ruas que se dão as manifestações;  é nas ruas que se dão as revoluções. Ali naquela esquina, eu me sentia um cidadão do mundo, senhor dos meus direitos mas também dos meus deveres.

Em um Shopping, ao contrário, o que importa é o consumidor e o mercado.  Felizes fomos nós que por aquelas ruas trafegamos, respirando o ar das cidades, das pessoas, dos carros, da vida. Triste daqueles que hoje transitam por esses lugares assépticos e pasteurizados, essas cápsulas espaciais condicionadas pela estética do mercado, segundo a definição da escritora argentina Beatriz Sarlo.  Naquela esquina, nós tivemos a possibilidade e a felicidade de podermos representar os nossos verdadeiros papéis na sociedade, por menor que eles fossem.

Ficamos ali reunidos por um bom tempo assistindo ao cair da tarde que mansamente nos acarinhava.  O acender das luzes da cidade iluminaram ainda mais a minha alma.  Todas as coisas parecem ficar ainda mais lindas quando o revolver dos sentimentos dentro de nós está repleto de alegria e a vida que se vive é uma vida verdadeira e não aquela permeada pela ditadura dos simulacros. O terrível e grande perigo da liberdade hoje em dia é essa ditadura dos simulacros, ou seja, a capacidade que não mais temos de  vermos a vida como ela de fato é, mas sim, como ela nos é imposta por meio dessa enorme captura do imaginário pelos sistemas de mídia contemporâneos.

Eu inspirei aquela noite que lentamente caía repleta de luzes, sons, odores e movimentos, e senti-me pleno. O burburinho constante do ir e vir dos veículos e das pessoas fez-me sentir como se eu estivesse dentro de um redemoinho de sentimentos espiralados, que como numa enorme crescente parecia me atirar para dentro de uma grande confraternização.

A noite se fez e os meus amigos de escola logo trataram de se despedir, tomando cada um o rumo de suas casas. L-Gordinho atravessou a avenida para pegar o ônibus em frente ao Ed. Iran. Ele morava no bairro do Espinheiro, zona Oeste da cidade.  AB seguiu em direção à Ponte Duarte Coelho pois iria tomar a condução para Boa Viagem na praça Joaquim Nabuco, que ficava do outro lado da Ponte da Boa Vista. Felizes de nós que por ali morávamos pois não precisaríamos tão cedo abandonar a festa, muito pelo contrário: logo ela recomeçaria.

Convidei SC para irmos à minha casa com a ideia de que pudéssemos saborear a famosa sopa de feijão da Têca, chefe de cozinha da pensão da minha avó, convite que ele imediatamente aceitou, sabedor de que não havia refeição mais gostosa a se servir no jantar.

Ao sairmos da porta do Ed. Ouro caminhando em direção à minha casa, ainda ali na calçada do prédio, uma música dos Beatles me chamou a atenção quando passávamos pela porta da TV Caravelle, uma assistência técnica que ficava encravada numa entrada com uma rampa de acesso onde no passado é bem provável que tenha sido o estacionamento do próprio Edifício Ouro.

Ao olharmos para dentro daquela imensa loja, avistamos F e Tarzan, um sujeito extremamente forte e que ainda por cima ostentava uma vasta cabeleira.

-    Faaaala F, o que estás fazendo aí? - perguntou SC .

-    Vim tranzer um rádio do meu velho para ver se tem conserto - respondeu ele.  

-  Nós estamos indo jantar lá na casa do Carlinhos e logo estaremos de volta pro murinho. Vai lá mais tarde! - completou SC

-    Hoje não vai dar. Vou entregar uma colchas que vendi para umas senhoras amigas da minha mãe lá no bairro da Mustardinha.

-    Legal!  A gente se fala outro dia - respondeu SC.


Seguimos nosso trajeto caminhando por toda extensão da Rua Sete de Setembro confabulando sobre aquele espírito batalhador e empreendedor do nosso amigo F.  Chegamos à conclusão de que ele iria longe na vida. Não estávamos enganados. Antes, porém, quando passávamos em frente ao Edifício Mandacaru, ainda na Sete de Setembro, fomos atraídos pelo aceno efusivo do Pascoal que vinha do outro lado da rua, mais exatamente de dentro do Mercadinho Carioca. O Pascoal, era um rapaz de cor muito clara com gestos às vezes exagerado de afeto e carinho que pareciam ser desprovidos de sentimentos como a timidez ou a tristeza. Ele sofria de um certo retardamento mental.  Perguntou-nos se iríamos estar mais tarde no estacionamento e nós tergiversamos dizendo que não sabíamos ao certo. Ficou claro que a nossa resposta o deixou bastante abatido, mas mesmo assim decidimos prosseguir com a nossa desfaçatez.


X

Chegando em casa, deixei SC na varanda conversando com um dos hóspedes e me dirigi ao quarto para guardar os meus livros. Logo em seguida, tratei de lavar as mãos e voltei para a sala principal onde eram servidas as refeições dos clientes da pensão, pedindo para que um dos empregados da casa nos servisse o jantar.

-      Ai, ai, ai, olha aqui novamente travestida as nossas raízes coloniais! – pensei.

A Casa Grande e a Senzala ali reproduzida mesmo que em escala reduzida, estavam presentes como a nos chamar a atenção para um ranço que inconscientemente carregávamos e, por que não, carregamos até hoje.

Sentados à mesa, estavam o Sr. Avani e o Dr. Laerte, dois dos frequentadores mais antigos que embora não fossem moradores da pensão, ali faziam as suas refeições diárias. O Sr. Avani era um homem alto e forte, com ares de aristocrata, dono de uma postura extremamente elegante.  Os seus cabelos já grisalhos, cobriam-lhe apenas as laterais da cabeça, deixando exposta a sua reluzente calvície.

Costumava vestir camisas de linho branco, alvíssimas e extremamente bem passadas e tinha por hábito sentar-se sempre à cabeceira principal da mesa, a que ficava próxima à janela.  Do seu lado direito estava sentado, também como de costume, o Dr. Laerte, dentista da família. Diferentemente do Sr. Avani, ele era um sujeito baixo, de rosto pequeno e os seus cabelos pretos lhes conferiam um ar de jovialidade e confiança, embora já não fosse tão novo assim.

Eu e o meu amigo SC sentamos do lado oposto da mesa e enquanto jantávamos, Felipe, que acabara de chegar da faculdade, cumprimentou a todos com o seu jeito sempre descontraído e bem humorado e em seguida sentou-se próximo a nós. Ele estudava filosofia na Fafire, Faculdade de Filosofia do Recife, e era uma exceção já que a grande maioria dos alunos que costumavam se hospedar conosco era normalmente composta por rapazes que estavam cursando medicina ou engenharia.  Vez por outra tínhamos um estudante de Direito, mas filosofia, era a primeira vez.  Antes mesmo que pudéssemos dizer qualquer coisa, ele foi logo falando sobre aula que tinha assistido naquele dia. Estava entusiasmado com as ideias do grande filósofo alemão Friedrich Nietzsche e foi sobre ele discorreu durante todo o jantar.  Eu e SC ficamos escutando atentamente a tudo que ele narrava, embora fôssemos completamente leigos em filosofia, e sobre Nietzsche, então, conhecíamos menos ainda. Ouvimos com atenção Felipe discorrer sobre um dos seus conceitos fundamentais: o Niilismo (do latim nihil, nada), palavra essa que nunca havíamos escutado antes.

Consideramos o niilismo positivo, disse ele, quando pela crítica desmascaramos a terrível ausência de cada fundamento, verdade, critérios absolutos e universais e, assim sendo, acabamos sendo convocados diante da nossa própria liberdade e responsabilidade, que agora já não estão mais garantidas.

Nietzsche, continuou Felipe,  pensa que todos os ideais, seja quais forem, possuem a mesma estrutura, a mesma finalidade: fundamentalmente eles partem de uma estrutura teológica, já que se trata sempre de inventar um além melhor do que este mundo, de imaginar valores pretensamente superiores e exteriores à vida ou, no jargão dos filósofos, de valores “transcendentes”. Ora, para Nietzsche, tal invenção é sempre secretamente, é claro, motivada por “más intenções”

Diz Nietzsche: “Seu verdadeiro objetivo não é ajudar a humanidade, mas apenas conseguir julgar e finalmente condenar a própria vida, negar o verdadeiro real em nome de falsas realidades, em lugar de assumi-la e aceitá-la tal como é.” É essa negação do real em nome de um ideal que Nietzsche chama de “niilismo", sacaram?

O Dr. Laerte, que havia escutado as palavras do nosso querido filósofo, o olhou com um sorriso bastante enigmático, misto de estranheza e fascínio, demonstrando uma certa vontade de interpelá-lo sobre aquele assunto, que, pela sua expressão, pareceu-me interessá-lo, quer fosse de um modo ou de outro.  Entretanto, o divertido diálogo que estava tecendo com o Sr. Avani, o fez desistir e juntos eles continuaram de onde haviam quase parado.

Fazendo uma pequena pausa, na verdade, os dois estavam conversando sobre um assunto que inicialmente chamou tanto a minha atenção quanto a do SC pela sua bizarrice mas como o Felipe havia chegado justamente naquele instante e sentou-se próximo a nós, resolvemos dedicar-lhe a nossa atenção.  

O Dr. Laerte, que era um sujeito extremamente espirituoso, falava naquele exato momento da chegada do nosso querido filósofo, sobre um tema bastante inusitado: ele se referia aos mais de setenta nomes que existiam para se designar uma coisa tão pequena que é o CU.  O Sr. Avani - dava pra ver pela sua expressão - o ouvia um tanto surpreso até porque era provável que aquele assunto o deixasse um pouco constrangido, digo isso pela forma como ele se colocava no mundo tentando passar uma imagem de homem sério e respeitador e ainda por cima carregado de  traços e comportamentos típicos de um nobre, e ademais, haveríamos de convir, que tanto o momento quanto o local talvez não fossem devidamente apropriados para um tema como aquele. 

O Dr. Laerte, que lembrava muito o músico Miltinho (Miltinho era um cantor muito conhecido nos anos 1960 e uma de suas músicas mais conhecidas era Palhaçada), dizia cheio de gracejos: 

- Avani, como pode uma coisa tão pequena ter mais de setenta nomes para designá-la? 

- Veja - continuou ele - temos furico, fiofó, rabicó, roseleta, rabiola, rosca, roscof,  tutu, fueiro, foba, viegas, fiote e por ai vai. 

Embora aquele assunto também tivesse chamado a nossa atenção, o que eu não fazia ideia era o quanto aquela simples palavrinha iria estar no centro da nossa atenção naquela noite.


 
Felipe percebeu um certo interesse por partes dos digníssimos cavalheiros ali presentes assim que ele proferiu suas primeiras palavras sobre o grande filósofo Nietzsche, mas como eles se voltaram um para o outro e continuaram a debater aquela questão tão engraçada, imediatamente concentrou a sua atenção apenas em nós dois, continuando do ponto onde a conversa tinha sido momentaneamente interrompida.

Diferentemente do que muitos pensavam, prosseguiu em seu discurso, Nietzsche não era a favor do niilismo, muito pelo contrário.  Para Nietzsche, o niilismo seria um “anseio do vazio”, que na verdade era  uma manifestação dos seres doentes que se conformam e idealizam o vazio e não um verdadeiro estado de força. É que para o pensamento nietzschiano, não existe essa transcendência, e que "todo juízo é um sintoma, uma emanação da vida que faz parte da vida e nunca se situa fora dela.”

Hei de convir de que naquela noite tanto eu como o meu amigo SC, fomos agraciados por uma aula e tanto de Filosofia.  Além de discursar sobre o niilismo, o nosso querido palestrante nos fez conhecer também alguns livros escritos por este grande filósofo que ficou conhecido como sendo um daqueles que na História da Filosofia se encarregaram de fazer uma arqueologia do saber, ou seja: ele, assim como Marx e Freud, procurou encontrar aquilo que se esconde por trás das aparências das coisas, e foi além, disse o nosso amigo profeta: Nietzsche tornou-se um demolidor de ideias.

Felipe comentou brevemente alguns livros dele, como Ecce homo, Gaia Ciência, Para além do Bem e do Mal e Assim falou Zaratustra, que contém aquela famosa frase: “Na morte de Deus, a aurora do Homem." Só para lembrar, Also sprach Zarathustra foi nome do poema sinfônico composto pelo músico austríaco Richard Strauss, contemporâneo de Nietzsche, que foi inclusive o tema de abertura do filme 2001 uma Odisseia no Espaço. Ficamos ali confabulando por um bom tempo e acho que fomos presenteados por um início de noite permeado por momentos não só bastante didáticos como também tremendamente agradáveis, muito embora, confesso, pouco tenhamos conseguido entender sobre o que o nosso querido amigo tão apaixonadamente desejou nos transmitir.

Ainda que tivesse saído do jantar certo de que pouquíssimas coisas haviam sido absorvidas das palavras proferidas pelo nosso digníssimo filósofo, no fundo tive a sensação de que alguma centelha havia sido despertada em mim. Mais uma, eu diria. Resolvi então, que estava na hora de dar uma trégua ao festival de ideias, lucubrações e inquietações que haviam acometido o meu ser naquele dia.

– Chega, agora eu quero é descontrair! – confidenciei a SC enquanto nos preparávamos para voltar à nossa adorada esquina Sete.

Assim que descemos - eu morava no último andar de um prédio de dois andares que ficava bem no meio da pequenina Rua Martins Júnior, rua esta que fica entre as Ruas Do Hospício e Sete de Setembro,  paralela à Av. Conde da Boa Vista, região central da cidade – encontramos M-mentiroso e Jo saindo naquele instante do Ed. Amazonas, prédio que ficava defronte ao meu e local onde também residia SC.

-    Eu estava indo agora mesmo na tua casa – falou Jo dirigindo-se a mim.

-    Queria saber o que vocês vão fazer – completou.

-    Nós estamos indo lá pra esquina da Sete – respondi.

-    Vamo nessa! – respondeu ele de bate pronto.

Do lado do Ed. Amazonas, ficava a entrada do estacionamento do Ed. Mandacaru, entrada esta que pelo fato de ficar com o seu portão sempre aberto, acabava servindo de atalho e passagem para os transeuntes que se dirigiam à Rua Sete de Setembro, ou que dela estavam vindo.  Margeada por dois muros, um do Ed. Amazonas e outro da casa de um famoso desembargador, esta entrada perfazia um corredor estreito e curto que acabava saindo na parte de trás do edifício.

Assim que contornamos o prédio, que em seu andar térreo era repleta de pequenas lojas, saímos bem no meio da Rua Sete de Setembro, do lado da mansão do nosso amigo Joca.  Ao cruzarmos toda a extensão frontal da mansão, encontramos C-Linho, C-Zinho, T-Ninho e P-Zinho sentados no muro de um estacionamento que ficava logo depois, encostado à casa, o famoso 'murinho', nosso local preferido para as grandes reuniões que costumavam acontecer sempre à noite e onde geralmente todos rapazes do bairro se encontravam. Eles estavam se divertindo ao flertarem com as moças que por ali circulavam.

-    O que estão fazendo aí Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse? – perguntou SC com um largo sorriso no rosto.

-    Tamo paquerando as mina, mermão! – respondeu C-Zinho com seu ainda incipiente bigode.

Sentamos todos ali enfileirados e apenas C-Linho e M-Mentiroso ficaram em pé, recostados no muro. Naquele momento,  descendo a rua em direção à avenida, François, uma bicha desvairada que circulava por aquelas bandas, passou em seu fusca vermelho e nos cumprimentou.

-    Olá meus gostosos, como vocês estão? – gritou ele acenando com o seu braço esquerdo dependurado para fora da janela do carro.

-    Vai tomar no seu cu, seu viado – rebateu P-Linho sorrindo.

-    Deus te ouça...  Deus te ouça! – respondeu François com um enorme sorriso.

-    Olha aí moçada, quero fazer um convite!  Quem quiser conhecer os meus trabalhos, passa lá em casa mais tarde – completou ele.

-    Sei que você mora na Rua Imperatriz, só não sei onde – gritei alto pois um carro que estava parado atrás do seu buzinou pedindo passagem.

-    O SC sabe onde moro. Vai lá!  Estou esperando por vocês com o ânus bem aberto – respondeu dando gargalhadas enquanto acelerava rapidamente o seu fusca.

-    Êta bicha depravada! – falou M-Mentiroso sorrindo e tentando disfarçar um certo mal estar.

-    Vamo, vamo nessa!  Vamos conhecer a casa desse fresco, - falou Jo repleto de curiosidade.

François era um sujeito  de feições delicadas, alto e esguio e que andava sempre muito alinhado. Tinha apenas vinte e dois anos - eu acreditava que ele fosse mais velho -  e seus modos refinados lhe conferiam um certo ar burguês.  Com seus olhos claros, sua barba sempre bem feita e seus cabelos loiros, podíamos dizer que aquele indivíduo era um belo exemplar do gênero masculino, muito embora suas preferências sexuais fossem outras. – “Taí um belo desperdício de homem”, - disse-me certa vez So, irmã de um dos rapazes.

Depois que François partiu, os meninos mais novos, como C-Zinho, C-Linho, T-Ninho falaram que tinham compromissos enquanto P-Zinho disse que teria que ir pra casa pois estava cheio de deveres escolares.   Ficamos ali por mais algum tempo e por volta das nove da noite, decidimos dar um pulo na casa do François afinal de contas ele morava a poucos metros dali num daqueles sobrados antigos da Rua Imperatriz.  Embora o François fosse um pintor que já gozava de um certo prestígio na cidade, nem eu, nem os meus amigos, conhecíamos o seu trabalho.  Aquela noite, não sabíamos, nos reservaria uma tremenda e divertidíssima surpresa.




Capítulo II
A descoberta do segredo

Foi um tempo em que Mequinho era manchete e a gente ouvia muito falar em  Richard Nixon, Leonid Brejnev, Mao Tsé-Tung, Ling Piao e vietcongues. Época de Salvador Allende, Emerson Fittipaldi, de Maurice Chevalier, de temporais em Bangladesh e de chamas ardendo no edifício Andraus. Estávamos em 1972, o ano em que eu completaria os meus tão esperados dezoito anos.  Se eu tivesse a mínima noção de como o tempo passa rápido, teria deixado esta idade demorar mais para chegar.

Manoel de Barros não gostava que botassem datas na existência. Para ele, a data maior era o quando. 

 "Quem é 'quando' criança, a natureza nos mistura com as suas árvores, com as sua águas, com o olho azul do céu. 'Quando' criança, a gente sorri dos galanteios que a vida nos presenteia todos os dias. 'Quando criança', de tudo se pode sorrir e quando a gente ri, a vida nos confraterniza com as suas descobertas e o tempo estanca", escreveu ele. Naquela noite, eu ainda não sabia mas o que estava prestes a descobrir iria me fazer rir como nunca mais ri na vida, coisas que o só o quando criança é capaz de entender.

Do outro lado da rua onde ficava o nosso querido ‘murinho’, também conhecido como nosso quartel general, existia uma biblioteca pública. Na verdade, tratava-se de um dos escritórios da antiga Sudene, um prédio modesto, com apenas dois andares, com um pequeno recuo que servia de estacionamento para alguns poucos veículos.

Esse tipo de construção era comum nos prédios públicos que tinham suas portas recuadas da calçada e o teto alto, normalmente compreendendo a altura de um andar.  O Seu Antônio ficava ali todos os dias, meio que escondidinho, a observar a movimentação dos transeuntes. Ele chegava por volta das vinte horas, pegava uma velha cadeira de palha e se colocava a ouvir o seu inseparável radinho de pilha. Era o vigia encarregado por zelar por aquele edifício e por alguns carros de moradores da região que o confiavam aos seus cuidados. Do local onde se sentava, observava sempre sorridente as nossas estripulias e se divertia com elas.

Assim que descemos do muro com o objetivo de seguir para a casa do François, como de costume, atravessamos a rua e caminhamos em sua direção para cumprimentá-lo e também para saber das alvíssaras que por ventura haviam chegado pelo seu pequeno rádio.  Ele nos falou sobre os boatos de um possível escândalo que rondava a Casa Branca e que envolviam o nome do então presidente americano, Richard Nixon. Segundo o Sr. Antônio nos relatou, o Washington Post tinha noticiado em sua primeira página um assalto à sede do Comitê Nacional Democrata, no chamado Complexo Watergate, na capital dos Estados Unidos.

Confesso que aquelas e outras notícias meio que entravam e saiam por nossos ouvidos sem que lhes déssemos muita atenção. Contudo, aquele caso em especial narrado pelo Sr. Antônio tinha algo de grave e lembro de ter ficado ruminando com isso por algum tempo em minha cabeça, tanto, que, dois anos depois, por causa daquele incidente e do que ele acabou trazendo à tona, o presidente terminou não resistindo e renunciou ao cargo. Foi a primeira vez que um fato como este acontecera na história americana.

Nos despedimos do nosso amigo vigia e lá fomos nós, eu, SC, M-Mentiroso e Jo, todos com o ‘pau-na-mão’ em direção à casa do nosso querido amigo François. É que embora não tivéssemos nos falado abertamente com relação à esta questão em particular, nós tínhamos um certo receio de encontrá-lo em seus domínios. Naqueles tempos, em que não se tinha muita informação e o mundo não era tão aberto como o de hoje, as coisas resguardavam um certo ar de mistério. Uma bicha era, para nós, um ser estranho e uma certa distância deveria ser preservada.

Perguntei a SC se ele realmente sabia o endereço correto, ao que nos revelou não ter muita certeza, mas que, pelo que lembrava, o nosso amigo artista morava num sobrado na esquina da Rua Imperatriz com a Bulhões Marques, bem ao lado da Confeitaria Confiança.

Poucos carros passavam pela rua à aquela hora e por onde chegamos pudemos observar através das janelas daquele antigo casario, alguns telas dependuradas nas paredes de uma sala, que até onde era possível perceber, parecia ser bem ampla.

Paramos em frente à porta de número 272 e tocamos a campainha. François apareceu na varanda para espreitar quem era e ao nos ver, disparou um enorme sorriso.  A porta foi aberta através de uma corda que pendia do primeiro andar até o térreo, e assim que ela se abriu nós subimos enfileirados por uma escada que era bastante estreita, escura e íngreme.

Galgamos aqueles degraus lentamente porque os estalos que se faziam ouvir a cada passo nosso, dava-nos a sensação de que a qualquer momento aquelas madeiras poderiam se partir.

Assim que atingimos o platô do primeiro andar, fomos recebidos com uma imensa alegria pelo nosso anfitrião que chegou a dar alguns rodopios de tanta felicidade. Entreolhamo-nos e mesmo sem nos falarmos absolutamente nada, fomos capazes de entender o que cada um estava pensando.

–  Nossa Senhora!  A bicha está parecendo uma libélula de tão feliz – acho que todos pensamos mais-ou-menos a mesma coisa.

Também convenhamos, tratava-se de algo realmente considerável. Aquele indivíduo, que parecia ser tremendamente solitário, estava recebendo em seus aposentos quatro jovens rapazes cheios de espinhas e hormônios. Era natural que aquele acontecimento tão inesperado e inusitado - nós nunca havíamos o visitado antes -,  tanto lhe alegrasse e o enchesse de excitação.  Acredito que ele mesmo achava aquilo muito improvável, afinal de contas várias outras vezes havia nos convidado sem que nunca nos dispuséssemos para tal.

- Meus lindos, ai que felicidade! A presença de vocês aqui fez arrepiar até os pelos do meu relógio – falou François assim que adentramos o seu ateliê.
 
Vestindo um avental amarelo-ouro todo sujo de tinta, ele evitou nos abraçar e na sequência pediu para que entrássemos e ficássemos à vontade. Segurava uma taça de vinho em uma das mãos e um pincel na outra.

-  Venham e não pensem que estão me atrapalhando, tá?  Eu estou trabalhando naquele quadro pois tenho um prazo até o final da semana para entregá-lo – completou toda feliz com um trejeito um tanto afetado, enquanto caminhava em direção à uma grande tela que estava sobre um cavalete, mais ao fundo da sala.

Até aquela data, embora morasse uma quadra acima, eu nunca havia entrado em um daqueles imensos sobrados construídos no início do século, alguns até mais antigos, datando do final do Século XIX. O apartamento que o François residia parecia-se muito com aquilo que hoje chamamos de loft, tal era a amplitude daquela sala, repleta de enormes janelas avarandadas e ostentando um teto bastante alto. O seu piso, todo em madeira de lei, era formado por grandes tábuas que corriam na diagonal, além de estarem maravilhosamente enceradas com um brilho de dar gosto.  Estava repleta de tapetes, com alguns que pareciam ser persas, e que espalhados aqui e ali, conferiam a aquele local ares bastantes requintados.

Confesso que fui surpreendido ao me deparar com o estado daquela sala, que além de elegante, encontrava-se bastante iluminada por lustres que pendiam do teto cheios de lâmpadas.

Nunca imaginei ser possível que casas antigas como aquela pudessem ter salas tão amplas. Eu, bem como os meus amigos ali presentes, acreditávamos que iríamos encontrar um ambiente pequeno, escuro e, provavelmente, com cheiro de mofo. François, lá pelas tantas, nos contou que realmente o lugar era muito apertado quando ele o alugou, mas, conversando com o seu senhorio, recebeu autorização para proceder as mudanças que julgasse necessárias. Foi aos poucos, derrubando uma parede aqui, outra ali, que acabou resultando naquele espaço que estávamos presenciando.

-      Venham aqui meus meninos, venham conhecer as telas do grande mestre François Hold – falou levantando levemente o queixo e soltando um sorriso ao mesmo tempo histriônico e afetado.

A mão direita que ainda continuava segurando um pincel, acompanhou aquele gesto cheio de delicadezas fazendo um movimento de baixo pra cima como o de alguém que acabara de tirar um lenço do bolso do paletó e desejasse estendê-lo para alguma dama.

SC, gozador como sempre, soltou um sorriso um tanto escrachado, e ao vê-lo fazer aquilo, para não sorrir, procurei me esconder atrás de M-Mentiroso porque imediatamente me veio à cabeça as cenas onde ele, SC, costumava imitar uma bicha.  Sempre que assim se manifestava, ele, com gestos afetados, repetia a mesma frase onde dizia: “Vamos Christóvão, eles não nos querem aqui!”.  Christóvão provavelmente era uma outra bicha que funcionava como seu alterego nessas ocasiões. Fizera isso uma vez no cinema quando um guarda o expulsou por estar fazendo baderna. Por pouco o meganha não perdeu a estribeira e lhe encheu de bolachas, tal o seu cinismo.

François, que continuava todo animado, dirigiu-se ao fundo da sala onde havia um pequeno corredor que dava para outros aposentos, e perguntou se desejaríamos tomar uma taça de vinho.

-      Venham aqui, venham! Deixa eu mostrar minha humilde morada pra vocês – falou enquanto caminhava em direção aos fundos da casa onde havia um estreito corredor que dava para uma pequena cozinha, um banheiro e, na parte de trás, um pequeno quarto.

Entrando na cozinha, dirigiu-se à uma mesa onde havia uma garrafa de vinho que pousava sobre um suporte de madeira, ao mesmo tempo em que foi falando com cada um de nós para que pegássemos uma taça na cristaleira e nos servíssemos.  M-Mentiroso e SC não se fizeram de rogados e prontamente trataram de seguir o seu conselho. Eu e Jo, que éramos mais recatados, talvez a palavra certa fosse timidez, preferimos não aceitar.

-      Olha! – falou François jogando as pupilas dos seus olhos para cima... – eu, se fosse vocês, experimentava esse vinho da região da Borgonha. É divino! – completou.

-    Eu o ganhei de presente de um homem muito rico, dono de uma grande empresa daqui que me presenteou assim que lhe entreguei um quadro que ele havia encomendado – concluiu.

Ao voltarmos para a sala, fomos apresentados a cada uma das suas telas ali presentes, algumas bastante coloridas retratando a natureza e tendo o caju como carro-chefe. Muitas estavam penduradas nas paredes e outras sobre cavaletes, e num canto, encostadas num móvel antigo cheio de tintas, se encontravam pelo menos mais umas seis, meio que esquecidas, ou talvez não. É bem provável que estivessem ali por pura falta de espaço. M-Mentiroso, com a sua pose habitual de sempre, detinha-se diante de cada tela e com ares de entendido tecia argumentos que sei lá de onde vinham, enaltecendo cada obra. Eu e Jo, que gozávamos de uma certa cumplicidade já bem antiga, entreolhávamo-nos como se disséssemos...  “vê se pode uma coisa dessas!”

Naquele momento, enquanto eles estavam ocupados discutindo aqueles temas que o François ia pouco a pouco lhes apresentando, eu, que não estava muito interessado naqueles assuntos, me virei e ao perceber aquelas enormes janelas que davam para a rua, aproximei-me com uma certa curiosidade, afinal de contas nunca tinha visto a Rua Imperatriz por aquele ângulo, ou seja, de cima. Chamei o Jo para me acompanhar e durante algum tempo ficamos conversando sobre como lugares velhos nos pareciam totalmente diferentes visto sob um novo prisma.

Só que naquele instante em que nos deixávamos divagar por aqueles devaneios, François gritou lá de trás pedindo para que Jo fosse até lá ver uma porção de telas que ainda não estavam emolduradas e que repousavam juntas a uma grande mesa apoiada sobre cavaletes. Naquela época, Jo era considerado o galã do grupo e é bem provável que por este motivo tenha se tornado o alvo predileto do nosso amigo pintor.

-      Vem cá, Josinho, vem!  Gritou ele cheio de insinuações para o nosso querido Humphrey Bogart, que ficou todo desconjuntado de tanta vergonha.

Caímos todos numa gargalhada só. Também pudera, não estávamos no lugar dele.  Enquanto Jo se afastava indo atender aos chamados do nosso adorado pintor, percebi que no canto esquerdo, próximo à porta de entrada da casa, havia uma pequena sala.  Aproveitei a distração de todos e me aproximei para ver o que tinha naquele lugar.

Tratava-se de um pequeno escritório que estava abarrotado de livros por todos os cantos, pelo chão, numa estante ao fundo, sobre uma cadeira, em cima de um pequeno criado, enfim, por tudo o que é lado.  Logo na entrada, sobre uma escrivaninha antiga, encontrava-se uma máquina de escrever Remington e dentro dela havia uma página que mostrava um texto ainda incompleto.  Do seu lado, tinha uma porção de pequenos livros, desses chamados de ‘pocket books’.  Ao me deparar com aquele ambiente, imediatamente uma enorme interrogação invadiu a minha cabeça: - será que François também é escritor? - Eu não fazia ideia, mas estava diante, talvez, do seu grande segredo. Contudo, o segredo não estava apenas no fato dele escrever, mas sobre o que escrevia.


Capítulo III
Os segredos de François

Ainda um tanto perplexo com algumas coisas que consegui enxergar naquele primeiro momento, e, confesso, até um pouco assustado, mesmo porque havia adentrado em um espaço para o qual não tinha sido convidado, resolvi voltar para a sala e com os olhos um tanto arregalados fiz um movimento em direção aos rapazes. Ocorre, porém, que como eles se encontravam bastante entretidos numa deliciosa conversa sobre quadros e vinhos, resolvi ficar um pouco afastado para ver se alguém percebia algum movimento estranho em mim.

No meio daquela conversa animada, François disparou: - Meus meninos, que coisa feia estou fazendo com vocês, meus ilustres convidados!

M-Mentiroso, que àquela altura mais parecia um entendido marchand, tamanha era sua desenvoltura, rebateu: - Que coisa feia.... que coisa feia que nada, François! Você está sendo um anfitrião fantástico.

-      Ai Meu Deus, mas que falso!  Pensei sorrindo entre os dentes... – ...acho que o sujeito está atacado, - concluí.

-    Mas que bom ouvir isso meu fofinho! (M-Mentiroso era um rapaz moreno e forte, para não dizer gordinho) – respondeu François, resposta esta que o deixou todo enrubescido.

-      Venham! Acompanhem-me até a cozinha. Quero lhes servir uns queijos, franceses também, tá! – convidou na sequência.

-    François, vou ficar um pouco aqui olhando da janela, tá? Achei muito legal a visão da rua vista daqui de cima, respondi.

-    Legal! Fique à vontade, meu querido – respondeu ele.

Foi a minha deixa. Aproveitei a debandada deles e rapidamente me dirigi ao escritório, pois, cheio de curiosidade, queria ver que tipo de livros iria encontrar ali.

Em cima da mesa, além da máquina de escrever e de várias folhas já escritas que estavam ao seu lado com a frente voltada para baixo, havia uma carta de um tal de Jean-Pierre Valentin endereçada a François junto a alguns pequenos livros colocados uns sobre os outros. Na parte de trás da mesa, havia uma estante composta por  algumas poucas prateleiras onde encontravam-se alguns objetos decorativos, como um pequeno vaso de flores, uma estátua do Buda e algumas bijuterias, e, para meu espanto, um pênis dourado que estava em pé apoiado sobre uma base de madeira onde havia a seguinte inscrição: “Prêmio - 'O Pinto de Ouro’ 1969 – O último pingo em Paris.”

A princípio, não entendi do que se tratava mas logo em seguida avistei, num canto na parte superior da mesa, um livro com o mesmo título que estava gravado naquele que logo deduzi ser, um troféu. Retirei o livro da prateleira e vi o nome do autor: François Hold, Editora Gai.  Só muito mais tarde é que fui atentar para a palavra Gai, que em francês tem o mesmo significado que Gay em inglês. O problema, é que a palavra Gay, que em inglês significa 'alegre, jovial', e que é proveniente do francês medieval gai,  não tinha àquela época a mesma conotação que possui hoje.

-      Ah! entendi.  Ele ganhou esse prêmio por causa do seu livro O último pingo em Paris, - pensei falando para mim mesmo, baixinho.

-    O cara também é escritor, caramba! - concluí um tanto surpreso.

A partir daquele momento, aquela nuvem que pairava sobre a minha cabeça começou a se dissipar e as descobertas que fiz na sequência foram me fazendo entender melhor o  panorama que se desenrolava à minha frente. Encontrei aquele livro premiado e na sua contracapa pude ler o depoimento de um jornalista. Nas palavras deste jornalista, aquele romance era magistral e, segundo ele, em alguns aspectos até se assemelhava ao famoso livro Ulisses de James Joice pela forma como descreve os personagens e seus dramas e pelo fato de que a história se passa em apenas uma única semana, em Paris, mais-ou-menos como no livro de Joice em que toda a trama acontece em apenas um único dia na cidade de Dublin.

O Último Pingo, narra a história de dois jovens gays, Di Lulu e Gui Lalá, que se apaixonam perdidamente e por uma semana vivem um intenso e ardente romance. A história acaba quando Di Lulu descobre que o seu novo parceiro  já vivia uma relação estável há mais de dez anos com um argelino de nome estranho, (Fi Fifi era o nome dele), que era, inclusive, um homem bem mais velho que ele. No final, Gui Lalá fala para o seu amante que apesar de ter se apaixonado loucamente, não poderá acompanhá-lo de volta ao seu país de origem pois ainda ama o seu companheiro. Na cena final, descrita como magistral por este jornalista, Di Lulu resolve voltar ao Brasil e enquanto esperava pelo seu voo ainda no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, no momento em que foi ao toilette para urinar, percebeu na saída do último pingo de sua urina - que por mais que tivesse balançado, não caíra no mictório - até porque como diz o ditado, não adianta balançar, o último pingo sempre será o da cueca -, e que embora aquele instante íntimo e singelo estivesse relacionado a um fato real presente no ato da micção, podia muito bem ser considerado bastante simbólico pois tratava-se de um gesto que definitivamente colocava um ponto final naquela grande paixão. A moral da história parecia nos dizer que até mesmo grandes amores podem acabar saindo pela urina.  Fiquei por alguns momentos refletindo sobre aquelas palavras mas logo lembrei que muito havia a ser descoberto. 


Curioso, resolvi abrir rapidamente aquele livro e caí justamente numa página que narrava que uma das razões pelas quais Gui Lalá desistira de acompanhar seu novo amor, fora que ele tinha consciência de que dificilmente iria conseguir se separar do seu amante argelino já que vivia uma relação um tanto doentia, que era um misto de veneração e medo ao mesmo tempo, num processo onde parecia imperar uma total submissão a este sujeito.  Dizia, inclusive, que essa admiração de Gui Lalá pelo seu amante era tão grande, que no dia-a-dia ele se dirigia a ele quase que rastejando. A forma como ele o chamava, diz tudo. Quem conviveu com eles, relatou que Gui Lalá sempre o chamava de um modo em que ficava muito claro essa sua relação de submissão. Gui, todas as vezes que se dirigia a Fifi, costumava chamá-lo assim:

-      -  Fi Fifiiii, Fi  Fifiiii, au, au, au!!!
-     
Nesse momento, eu quase tive uma síncope e falei com meus botões:


-       Vai ser bicha assim na puta que te pariu!



A mesa estava repleta de pequenos livros, todos do François, e os títulos, ah! os títulos, eram cada um mais inusitado que o outro.  Eu não conseguia acreditar em todas aquelas novidades que estavam se fazendo revelar perante meus olhos atônitos.

Naquele instante, a minha curiosidade que já havia se mostrado enorme desde que adentrei aquele ambiente, se aguçou de uma maneira assustadora. Eu não sairia dali sem saber exatamente em que solo estava pisando.

Certo de que para poder me inteirar de todas aquelas descobertas que estavam começando a se delinear diante de mim eu iria precisar de um bom tempo, comecei a elaborar estratégias que me fizessem atuar de forma mais focada e logo comecei a bisbilhotar todo aquele material de uma maneira que me permitisse agilizar as minhas buscas. Ocorre, que, ao mesmo tempo, percebi que estava ficando tremendamente receoso de que François a qualquer momento voltasse da cozinha e me flagrasse ali. Naquele instante, comecei a suar frio e a minha respiração começou a ofegar de tal forma que precisei me conter para não perder o controle, pois, ciente das minhas fragilidades, sobretudo a maior delas, que era o fato de ser asmático e que em situações de estresse ou emoção mais exacerbada acabava ficando bastante aflito e sem ar, precisei parar um pouco e assim resolvi me dirigir à varanda da sala para poder conter toda aquela ansiedade. Mas não demorei nem um minuto, tamanha era a vontade de saber mais acerca de todo aquele universo que se descortinava à minha frente.

Puxei aleatoriamente um outro livro da prateleira de baixo e diante do inusitado título, arregalei os olhos de tal forma que foi difícil fazê-los voltar ao normal tamanho foi o meu espanto.  O Homem que caga, e ri era o título deste outro livro, também tendo o François como autor e publicação feita pela mesma editora do anterior, a Gai. Fiquei tão perplexo diante daquela inscrição que, por incrível que pareça, não consegui sequer rir, tal era o meu estupor. Abri meio que a esmo e, um tanto inquieto e louco para descobrir o seu conteúdo, pois, a julgar pelo título, parecia tratar-se de um ensaio filosófico, fui logo tentando ler a primeira página que se descortinasse à minha frente.  E esse foi o trecho escolhido.

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Capítulo I - Alucinante frenesi
(Passando de mão em mão)

Alternando entre um conto e outro, Moli Colino ia deixando a sua verve fluir num ritmo alucinante. Normalmente, ele, que já possuía um temperamento muito irrequieto, ficava ainda mais elétrico quando estava escrevendo. Era tanta a quantidade de eventos simultâneos que se digladiavam em sua mente que dificilmente ele conseguia escrever um livro só. Naquele exato momento,  encontrava-se trabalhando em três romances, todos quase que ao mesmo tempo. Quando sentia que engasgava em algum deles, imediatamente saltava para outro, e isso num ritmo frenético. Lembram do Marquês de Sade? Pois é! Moli, neste sentido, era muito parecido com o marquês. Não lembram do Marquês? Não sabem de quem estou falando? Não? Esquece!


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Naquele ponto em que parei, logo percebi o tom debochado do, agora revelado, escritor François, e a relação que ele parecia estabelecer com o seu leitor.  Seria aquele conto algo semelhante a um romance autobiográfico?  Pensei naquele exato instante mas a minha curiosidade falou mais alto. Retomei a leitura para ver se conseguia capturar um pouco mais do imaginário deste ilustre desconhecido.

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A tarde caía lentamente. Parado diante de sua máquina de datilografar, Moli Colino escrevia mais um de seus contos. Ele fitava a página, mas não era para ela que ele parecia estar olhando. O seu olhar ia muito além daquela folha de papel. Ele estava alhures e um pouco angustiado, embora não soubesse exatamente o porquê. Como andava sem inspiração, parara para refletir sobre a explosão demográfica que presenciara ao longo dos seus cinquenta anos de vida. Aquilo já estava ruminando em sua cabeça fazia algum tempo. Ficava lembrando como tinha pouca gente no mundo nos seus tempos de infância.

Há até uma frase de um historiador britânico, Ernst Gombrich, que ilustra bem isso que Moli estava pensando. Ele disse, referindo-se ao século passado: "A principal característica do século XX, é a terrível multiplicação da população no mundo. É uma catástrofe, uma tragédia. Não sabemos o que fazer a respeito". Moli Colino lembrava da sua infância recordando que não importava onde estivesse, parecia sempre que havia muitos espaços sobrando por todos os lados. Eram lugares amplos, distantes, desérticos, ou com uma quantidade de pessoas que não o incomodavam. Nesse momento, sentiu uma triste sensação que parecia calar bem fundo. Era a de que a cada ano que se passava os natais pareciam estar ficando, além de mais próximos um do outro, também piores. Bem, eram esses os pensamentos que vagueavam pelo seu ser naquele momento.

Havia três dias que estava sozinho em casa escrevendo os seus contos sem que uma viva alma tivesse aparecido para visitá-lo, ou ao menos lhe telefonado. Sequer o seu vizinho havia aportado em sua casa para pedir-lhe alguma coisa. E olha, vou te falar...   gente com esse perfil costuma ser um sério candidato a suicida, não é mesmo? Bem, deixa isso pra lá. Isso não é da nossa conta. Vamos continuar com a nossa história.

Moli Colino levou a sua mão à testa sentindo-se um tanto amargurado pela solidão. Normalmente ele convivia bem com a solidão. Naquele dia, entretanto, sentia-se um pouco angustiado com isso. Por alguns instantes, pensou em sair de casa, caminhar um pouco, ver gente. Mas lembrou-se da sensação desagradável quando saíra pela última vez. Na verdade, ele se sentiu bastante invadido pela enorme quantidade de pessoas nas ruas, nas praças, nos cinemas, nas lojas. “Como tinha gente no mundo!”, pensara. Sobre Isso, havia escrito em tom de brincadeira, um pequeno poema parodiando o original 'No meio do caminho', do poeta Carlos Drummond de Andrade. Pegou essas anotações que havia escrito algum tempo atrás, e as leu novamente.

Leiam...



Everywhere (em todos os lugares)
Everybody (todo mundo)

No meio do caminho tinha uma porrada de gente.
No meio só, não. No início, no meio e no fim.
Everywhere!

Como tem gente nesse mundo, meu Deus!
Tem tanta gente, que o mundo já não é mais...
“vasto mundo”.

Mundo, mundo, pequeno mundo,
se eu me chamasse Raimundo
mandava todo mundo para a
puta que pariu.




Para dizer a verdade, ele havia parado de trabalhar nos três romances que estava escrevendo pela manhã para dedicar-se agora a um outro projeto.

Tratava-se de um conto que iria abordar o tema do envelhecimento, mas como a inspiração parecia tê-lo abandonado, releu aquele brado contra a terrível explosão demográfica no planeta. Naquele instante, foi tomado por um certo desconforto, na verdade, um incômodo em suas narinas, levando-o a fazer um gesto brusco de enfiar o seu dedo anelar no nariz. E aí, pensou com os seus botões:

- Há todo um trabalho a ser feito aqui!, - E ali ficou por um longo tempo tirando as suas melecas, “noninhas”, como ele costumava chamar.

O tempo passava lentamente, como se imitasse aquela sonolenta tarde, e Moli Colino, pensativo e alhures, continuava com a sua tour às suas cavidades nasais. Ficou tanto tempo naquela atividade que alguém poderia tranquilamente sugerir que ele colocasse em sua frente uma placa com os dizeres: “Man at work”. O tempo passava e Moli não parava de tirar suas sujeiras. A cada uma que tirava, ele bradava um gemido de prazer. 

– Ah! Que delícia! - era uma de suas expressões. 

Uma outra expressão que adorava, era um chamado que fazia para o seu cãozinho de nome Helinho.

Helinho era um cão vira-lata extremamente dócil e quieto. Ficava horas deitado em sua caminha ou perto do seu dono. Havia, porém, alguns momentos em que fugia dele como o diabo foge da cruz. Um desses momentos, era quando Moli ia ao banheiro para defecar. Helinho o acompanhou uma única vez. No momento em que sentiu o mal cheiro das suas fezes, correu para debaixo do guarda-roupa, colocando suas patinhas sobre o seu pequenino e negro nariz. Não houve Cristo que o tirasse dali. Não, claro, enquanto seu adorado senhor não terminasse de fazer suas necessidades. Aí, vagarosamente ele retornava para o lugar de onde havia saído.

Muitas vezes, lá no banheiro, Moli gritava: 

- Helinhoooô, vem ver como esse é grande e lindo, olha! - gritava ele, referindo-se às fezes que havia evacuado. 

Em outras ocasiões, ele dizia: - Helinhooooô, esse tá difícil de sair; vem aqui me ajudar! - Helinho, calado estava e calado continuava, lá, embaixo do guarda-roupa, seu local preferido de fuga nessas horas.

Aquele dócil cãozinho, era muito apegado ao seu dono e ao seu lado ficava quase que todo o tempo, até na horas em que ia dormir. Havia, porém, três ocasiões que Helinho se afastava e não havia ninguém que o fizesse voltar. Esses momentos aconteciam em algumas situações bem pontuais: 1 - quando Moli começava a soltar seus fétidos peidos; 2 - quando ele ia ao banheiro para evacuar, como foi relatado acima, e; 3 - quando ele começava a retirar suas melecas do nariz.

Helinho lembrava da vez em que, ainda inocente, estava ao seu lado quando numa dessas "petelecadas" disparadas pelo seu dono, uma daquelas melecas acabou atingindo seu pelo. Ainda estava em sua memória como foi difícil se livrar dela e por isso, sempre que ele começava com essas tours às suas cavidades nasais, Helinho, que não era bobo nem nada, corria pra bem longe.

Moli, absorto, prosseguia avidamente em sua jornada. Quando o seu dedo anelar, ou o “seu vizinho”, como o dedo anelar é popularmente conhecido, não estava dentro do nariz, ele o levava ao encontro do dedo polegar e num movimento circular fazia pequenos bolinhos com as “catotinhas” que retirava. Na sequência, transferia o bolinho para o dedo médio e fazia o movimento como se estivesse dando pequenos “petelecos” para jogar fora as melecas extraídas. Isso levava algum tempo, pois nem sempre elas eram expelidas com rapidez. Algumas delas, ao contrário, insistiam em não querer sair de forma alguma. Lógico, que depois de passado algum tempo, pouco restasse a ser retirado. O que ficava, era apenas aquelas que poderíamos chamar de "poeirinha cósmica", que são aquelas pequenas "catotinhas"residuais que se acumulam na ponta dos dedos. 

Por isso, lembrou de acessar as que ficavam escondidas na 'contra-capa' do nariz, a parte posterior das cavidades nasais, pois ali costumavam ficar aquelas sujeiras que são conhecidas como 'As esquecidas', visto que muitas vezes não atentamos para elas. Pouco minutos antes, uma dessas esquecidas tinha saído presa à sua unha e assim que ele olhou para aquele exemplar, que era fino e comprido, teve a impressão de que um filme muito antigo começara a passar bem à sua frente, pois recordou que quando ainda era garoto, ele, seu irmão caçula, e Gina, sua amiguinha de infância, também conhecida como 'a garota da catota', costumavam fazer campeonatos para ver quem conseguia tirar a maior de todas. Eles haviam construído no quintal da casa onde moravam, um espaço que deram o singelo nome de 'Mural Melecográfico', nome difícil para um garoto em tão tenra idade, convenhamos, mas que lhe fora sugerido pelo fato do seu pai ser um cartógrafo e de que ele sempre vivera envolto por inúmeros mapas cartográficos. Esse mural, era o local onde ficavam expostas todas aquelas sujeiras que haviam sido eleitas como sendo especiais, e vez por outra, ele e o seu irmão faziam uma reunião para escolher a campeã. Aquela doce lembrança o envolveu em um sentimento de ternura e ele se sentiu como se estivesse sendo acolhido por aquelas recordações do passado.

Pensou consigo mesmo, sorrindo: - A vida de um homem pode muito bem ser contada pelas melecas que retira. 


De mão em mão

Naquela sua incursão às suas cavidades nasais, em um determinado momento, ele se deparou com uma que considerou como sendo tremendamente renitente.

Ela estava em uma região de difícil acesso, lá onde a coruja faz o ninho, diria, e por mais que tentasse, não estava conseguindo lograr êxito. Pensou consigo mesmo e em voz alta bradou:

- Helinhooooô, vou ter que apelar para o serviço de um profissional – falou sorrindo.

Depois de um longa batalha, enfim, conseguiu resgatá-la. Só que a luta não parou por aí, pois esta encalacrada “catotinha” - que faz parte daquele grupo conhecido como “as rebeldes”, que são aquelas que insistem em não se separar dos seus donos - continuou resistentemente presa ao seu dedo, rolando de um lado para o outro sem querer se desgarrar. Neste exato instante em que vivenciava este embate cruel, Moli Colino ouviu o soar da sua campainha que tocou nervosamente. Levantou-se e caminhou em direção à porta, enquanto lutava para se desgarrar daquela “catotinha” teimosa. Olhou pelo olho mágico e viu que quem chegara tinha sido o seu primo Moli Caluno. Relutou em abrir a porta tentando desesperadamente se livrar daquela meleca. Como ela insistiu em não se desgrudar do seu dedo, ele não titubeou: levou a mão à sua calça numa última tentativa de dela se livrar.

Nada disso, porém, adiantou. A teimosinha continuou em sua mão. Abriu a porta e assim que Moli Caluno o viu, imediatamente disparou-lhe um largo um sorriso, estendendo-lhe a mão para cumprimentá-lo. Ele não teve dúvida: retribuiu-lhe o gesto. Só que neste exato momento e sem que se desse conta, a sua “catotinha” teimosa acabou indo parar na mão do seu querido e adorado primo.

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Naquele instante, acabei me assustando pois ao fundo enormes gargalhadas vindas da cozinha começavam a ser ouvidas  num tom cada vez mais alto. O vinho parecia começar a fazer o seu efeito regenerativo trazendo de volta a felicidade esquecida, pensei. Fechei o livro rapidamente pois estava um pouco incomodado com um sentimento que tomava corpo dentro de mim pelo fato de me sentir como que invadindo a vida alheia, e para tentar dissipar um pouco essa sensação, novamente me dirigi para a varanda tentando digerir o que acabara de ler.

Um estado de estupor me invadiu de tal forma que eu não conseguia exprimir os sentimentos que à aquela altura tomavam conta do meu ser.  Só que antes mesmo que conseguisse interpretar aquele texto, os nomes dos personagens do livro se apossaram da minha mente de tal forma que mais se assemelhavam a um transtorno obsessivo-compulsivo, pois aquilo ficou repercutindo em minha cabeça repetidas vezes sem que eu tivesse controle sobre o que estava se sucedendo.

-    Moli Colino, Moli Caluno, Moli Colino, Moli Caluno, Moli Colino, Moli Caluno...  para, caramba!, - bradei internamente no momento em que comecei a rir meio sem controle.

Voltei ao escritório, não sem antes procurar ver a quantas andavam as animadas conversas que sopravam lá da cozinha.

Quis me certificar de que poderia continuar com as minhas investidas. A primeira coisa que peguei para ler foi a carta que um tal de Valentin havia escrito para François. Ela se encontrava aberta próximo a um envelope dos Correios, ao lado da máquina de escrever, e nele pude ver que a mesma havia sido enviada do Senegal, África. Mesmo tendo me ocorrido que ler correspondência alheia é crime, não tive como resistir e quando percebi ali estava com uma carta de um estranho nas mãos sentindo um enorme impulso para descobrir o seu conteúdo. Comecei, a princípio, a fazer uma leitura diagonal da mesma, mas, lá pelas tantas, algo me surpreendeu e a minha atenção, que até aquele momento andava um pouco dispersa, se aguçou.  Valentin narrava as suas aventuras no meio da África na busca por modelos negras que iriam fazer parte do seu novo ensaio fotográfico, a princípio com o título provisório de O Ânus Negro.

–    Ânus Negro???  O que é isso? – minha imaginação explodiu de tanta curiosidade.

Não demorou muito para que eu começasse a entender de quem se tratava aquele personagem.  Pude ver que Valentin trabalhava como fotógrafo de uma revista masculina que na França era publicada com o nome de Jouergarçon, similar à Playboy americana, e que pertencia ao mesmo grupo da editora que editava os livros de François, o Le Trois, no jargão de hoje, diríamos tratar-se de uma holding que controlava a Gai.  Ele narrava, naquela carta, os países que visitara até então e os trabalhos que redundaram de suas incursões pela Europa e pela África.  Do Egito, teria publicado um ensaio que recebera o título de A roseleta púrpura do Cairo, trabalho este que segundo pude ler, ele enviara de presente para o amigo, inclusive perguntava se ele já havia recebido. Acho que foi a partir do título desse seu livro que Woody Allen teve a inspiração para filmar A rosa púrpura do Cairo, em 1985. Das viagens que fez pela Finlândia, Noruega e Escandinávia, nasceu L'anus Rose  (O Ânus Rosa), este só publicado na França.

Quase enlouqueci de tanta curiosidade e a primeira coisa que me ocorreu naquele momento foi o de verificar, ali no escritório, se aquele livro ao qual Valentin havia feito menção em sua carta, de fato teria chegado. Só que antes de avistar este Book, a minha atenção foi desviada para três pequenos livros coloridos, um verde, um azul e outro vermelho que se encontravam no canto inferior esquerdo da escrivaninha. Os seus títulos eram bem sugestivos e completamente inusitados. No primeiro deles, pude ler a seguinte inscrição:    Como peidar – Profissões – Volume I.

-    Meu Deus, que troço é esse? – minha cabeça deu um nó.

Abri na página de índices e lá estavam a lista de capítulos onde podia-se ler:

-     Como peidar como um Bombeiro;
-     Como peidar como um Escudeiro;
-     Como peidar como um Armeiro
-     Como peidar como um Pedreiro
-     Como peidar como um Escoteiro;
-     Como peidar como um Livreiro;
-     Como peidar como um Tesoureiro;
-     Como peidar como um Cozinheiro;
-     Como peidar como um Santo Padroeiro...

Fui obrigado a parar de ler tal foi o espanto e a vontade de rir a que fui acometido naquele instante.  Fechei o livro e peguei rapidamente o que estava logo abaixo dele. No título podia-se ler: Como Peidar – Profissões – Volume II

Novamente, abri aquele pequeno livro na página de índices e mais surpresas saltaram aos meus olhos. Lá pude ler...

-     Como peidar como um Psicólogo;
-     Como peidar como um Podólogo;
-     Como peidar como um Biólogo;
-     Como peidar como um Ornitólogo;
-     Como peidar como um Museólogo;
-     Como peidar como um Sociólogo;
-     Como peidar como um Paleontólogo.

Fui acometido por uma explosão incontida de risos e tive que me segurar para não ser ouvido.  Corri novamente em direção à varanda e lá quase caí no chão de tanto rir.

-    Meu Deus, não estou acreditando no que estou vendo!  - falei meio que em voz alta tamanho era o meu estupor.

Voltei o mais rápido que pude para o escritório e peguei o terceiro livreto que estava junto ao anterior, e lá pude ler em seu título a seguinte inscrição: Como peidar – Ambientes – Volume I.  Não encontrei o volume dois para este título. Talvez ainda estivesse por ser escrito.

Mais uma vez abri a página de índices e a minha estupefação não diminuiu em nada, muito pelo contrário, só aumentou.  Os capítulos eram os seguintes:

-     Como peidar em um Conservatório;
-     Como peidar em um Laboratório;
-     Como peidar em um Consultório;
-     Como peidar em um Ambulatório;
-     Como peidar em um Escritório;
-     Como peidar em um Parlatório;
-     Como peidar em um Reservatório (Cuidado com o eco!).

Dessa vez, eu não consegui me segurar e explodi numa gargalhada incontrolável.  Segurei minhas bochechas procurando me conter o máximo possível pois fiquei preocupado que lá da cozinha as pessoas pudessem me ouvir.

Atrás deste livro, um outro com título não menos interessante e tão engraçado quanto, me saltou aos olhos. O título?  Como peidar no Toilete sem que te ouçam no Outlet.  A essa altura, quem olhasse para o meu rosto acharia que eu era o Coringa, arqui-inimigo  do Batman, pois o meu sorriso estava escancarado de lado a lado de forma permanente e dificilmente eu iria conseguir fazê-lo voltar ao normal. Este livro era um pouco maior que aqueles três coloridos que acabei de descrever. Ao seu lado, havia um outro, maior, já com a aparência de ser um romance.  Eu o retirei da estante e novamente, para a minha surpresa, pude me deparar com título pra lá de inusitado: Quando o ânus coça, o sujeito perde a bossa.


-  Ué!!!   - falei pra mim mesmo soltando um grito de espanto.
  
-  Eu já vi esse livro – pensei, só que naquele momento sem ainda lembrar de onde o havia lido, ou visto.

   -  Ah! já sei.  Este foi o livro que o baixinho AT, lá nas nossas peladas da Rua da Saudade, falou que gostaria de escrever um dia.

 - Caramba! – pensei, assustado.

 - Será que o baixinho já conhecia os talentos do François como escritor?

Por alguns instantes, aquilo me deixou um tanto paralisado, com a mente repleta de inquietações, que só vieram a se somar àquelas tantas que eu já estava sendo acometido.  Virei o livro e na parte de trás pude ler os comentários feitos por algumas pessoas, críticos e artistas, pelo que pude entender.

Logo no primeiro deles, fui apresentado ao resumo daquela obra. Nos seus dizeres, assinado por um tal de Astrud Wilson, estavam escritas as seguintes palavras: “Mais uma vez o escritor, romancista, artista e poeta François Hold nos surpreende com uma história cativante. O seu personagem principal nos leva a fazer uma reflexão profunda sobre a condição humana, traduzindo de forma tocante os desencontros que nos são impostos pelo destino e a maneira como lidamos com ele, já que muitas vezes, numa constante e desesperada tentativa de acertar, acabamos errando muito mais do que aceitamos que errem conosco. Talvez seja preciso lembrar que na vida, poucas vezes as coisas acontecem como gostaríamos que fossem.”  Astrud Wilson.

       - Cara, o sujeito não é fraco, não! – falei como se estivesse dirigindo aquelas palavras a mim mesmo fitando-me em um espelho.

Desejando ter uma ideia daquele livro, que, pelo parecer de alguém, que eu não conhecia, parecia tratar-se de um romance bem escrito e profundo, abri-o a esmo e imediatamente comecei a ler um trecho do mesmo.

 
  ---------------------------------- X -----------------------------------

Fiofó Resende saíra de casa um tanto amargurado e com tantas questões a decidir diante das adversidades que a vida havia colocado em seu caminho, buscou auxílio em seu primo, Furico Teixeira, que naquele momento julgou poder ajudá-lo, sobretudo pelo fato de ser mais velho e mais experiente que ele. Sempre que se sentia sem chão, era nele que buscava refúgio. Acreditava que talvez pudesse fazê-lo refletir melhor sobre quais rumos tomar pois as notícias que acabara de receber não eram nada animadoras e a confusão que se instalara em sua mente o estavam deixando terrivelmente desorientado. Haviam marcado de tomar um café na Vestal, local que frequentavam há muitos anos e que considerava ser um ambiente tranquilo para poderem conversar.

Fiofó segurava em uma de suas mãos um exemplar do livro Flatulum Deo (que numa tradução livre significava "O peido de Deus"), do filósofo greco-romano Flatulus Maximus Meteorídios, aquele que havia cunhado aquela célebre frase que dizia: "Se te desprezam, flatos neles˜. Este pequeno livro vinha sendo já algum tempo. um guia a nortear a sua vazia existência.

Andava apressado, às vezes quase esbarrando nos demais transeuntes, tal era a sua aflição, e diante daquela exasperação que a princípio era só de natureza emocional, uma outra, talvez até como sintoma desse seu estado alterado, fez-se mostrar externamente numa enorme coceira que se instalou em seu rabo, ao mesmo tempo em que sentiu uma enorme vontade de peidar.  Estava cheio de flatos e meteoritos desde que acordara pela manhã, resultado de alguma coisa ainda não definida que comera no dia anterior.  Só que não se tratavam de pequenos e silenciosos meteoritos. Para soltá-los, sempre que sentia vontade, precisava fazer força para os expelir, o que acabava resultando em algo sonoro, por isso o seu cuidado em contê-los.

Procurou apressar o passo para ver se encontrava algum espaço onde não houvesse alguém por perto.  Assim que se desvencilhou de um grupo grande e barulhento de mulheres, pensou estar livre para poder executar o seu ato. Neste instante, repentinamente uma porta se abriu e dois senhores que conversavam animadamente, se colocaram em seu caminho. Atravessou rapidamente para o outro lado da rua e quando acreditou estar livre, a porta de um carro que estava estacionado próximo à calçada abriu-se e uma senhora morena acenou educadamente para ele. Voltou rapidamente para calçada do outro lado e assim que a alcançou, uma mulher, que sabe-se lá de onde saíra, gordamente se interpôs em seu caminho.

Voltou a atravessar a rua e ao passar por uma viela, que naquele momento poderia ser a solução para os seus problemas, pois normalmente era mais desabitada, para sua decepção, avistou Altolá George, um velho conhecido seu, agarrando e bolinando uma jovem de forma um tanto desrespeitosa, algo que costumava fazer desde pequeno. Na verdade, ele sempre fora muito, como diriam alguns, saidinho. Não foi à toa que ganhara aquele apelido, Alto lá!, ou Altolá, pois aquela expressão de tanto ser usada já tinha se transformado em nome.

Passou por alguns momentos de grande aflição tentando encontrar, sem sucesso, um espaço livre onde fosse possível coçar a sua bunda e soltar o seu peido. Por algumas vezes, tentou saciar-se da coceira fazendo roçar uma nádega sobre a outra, mas isso de nada adiantara.

      -  Se ao menos eu conseguisse soltar este peido, talvez a própria saída dos gases, roçando o ânus, conseguisse efetuar o ato de coçar – pensou consigo mesmo, angustiado.

Correu e mais para frente avistou uma outra viela que normalmente sempre tinha pouquíssimo movimento, até pelo fato de ser estreita e suja, fazendo com que as pessoas a evitassem.  Assim que conseguiu chegar até ela, sentiu-se tomado por um sentimento de alívio pois não havia ninguém trafegando naquela hora.  Andou alguns passos mais para dentro da rua, deu mais uma olhada e certo de estar sozinho, coçou acintosamente o seu rabo e na sequência disparou um sonoro peido.

Ocorre, que no alto de um dos daqueles antigos casarios que margeava a rua, havia uma pequena janela que pela sua localização deveria fazer parte do sótão daquele prédio, e nela, sem que Fiofó tivesse percebido, pois só olhara apenas para os lados e não para cima, até porque naqueles antigos sobrados não era comum existirem janelas laterais, lá estava um senhor negro que se encontrava sossegadamente fumando o seu cachimbo.  Ao presenciar aquela cena e ouvir aquele peido, sorridente, e em alto e bom som, disparou: - Pelo som dessa buzina, esse carro já parou em minha oficina!!!

Assim que olhou para cima e percebeu aquela inesperada figura sorridente e sinistra, Fiofó gritou, emputecido: 

- Vai pra puta que te pariu, preto do caralho!!!


     -------------------------------- X -----------------------------------


Eu tive que me segurar na estante que estava atrás de mim, tamanha foi gargalhada que soltei.  Corri novamente para a varanda e daquela vez ri tanto que quase urinei nas calças. Chorei de tanto rir deixando que as lágrimas escorressem copiosamente pelo meu rosto sem que conseguisse fazer nada para impedi-las.



Um outro conto chamou bastante a minha atenção. Como os demais encontrados por mim até aquele momento, ele tinha um título que além de inusitado, era muito peculiar porque aquela expressão que nomeava aquele pequeno livro (era um livro de bolso da Coleção Primeiros Passos) não era habitual.


Nome do livreto: “Mamãe, quero peido!”.  Vejam, o estranho daquele título era porque normalmente, quando alguém emite uma frase desta, ela diz: “Mamãe, quero PEIDAR!”, e não “Mamãe, quero PEIDO!”.  


Observem que é uma expressão não usual, porque alguém substituiu o verbo Peidar, a ação de peidar, pelo substantivo masculino, Peido, ou seja, por algo concreto; uma coisa. Gente, isso é filosófico pra caralho! Reflitam sobre isso.



E diante daquilo título inesperado e sui generis, não deu outra: tive que abrir aquele pequenino livro para ver o que tinha dentro. Na página que abri a esmo, pude ler a seguinte passagem:



Nicanozinho era um garoto bem alvinho de feições delicadas que lhe conferiam a aparência de um anjo.  Tinha apenas oito anos. 


(…) Certo dia, ele virou-se para a sua mãe, Dona Gertrudes - uma mulher ainda jovem mas que pelos anos difíceis que enfrentara em sua juventude, já ostentava um semblante envelhecido e pesado -, e disse-lhe com um ar circunspecto: "Mamãe, quero peido!", ao que ela respondeu:


  • Por que não peida, Nicanino?  O que está lhe impedindo?


Uma ressalva. Ela tinha tanto amor pelos animais, sobretudo pelos cães, que adotou, de forma carinhosa, o nome Nicanino para o seu pequeno fedelho. Tratava-o quase como se fosse um cãozinho.


Continuando...  


Após ter respondido para o seu filho que ele estava autorizado a peidar, o garoto, sem cerimônia, disparou um pequeno flato que de tão baixinho soou como se fosse um apito: Fuíiiiiiinnnn… 


Ao sentir o cheiro forte e fétido daquele gás, ela vociferou…


  • Puta que o pariu, Nicanino!  Que peido fedorento da porra!
  • Mas mamãe, a senhora não falou que eu podia fazer peido?
  • Sim, falei.  Mas precisava ser tão fedido assim, cacete?  
  • Mamãe, eu não sabia que seria assim.
  • É, mas foi.  Santo Padre!  Senhor, tende piedade de nós. Eu te suplico: Clemência Senhor!


Muito antes que a Dona Gertrudes pudesse assimilar aquele fedor, Nicanozinho disparou:

  • Mamãe, quero peido de novo!
  • Nããããooooo!  Gritou desesperada sua adorada mãezinha.


E em seguida, saiu correndo desembestada.





Eu que já havia tido antes algumas quase crises de riso, naquele momento fechei o livro e sorri tão desesperadamente que cheguei a me urinar nas calças.  E mais uma vez, para controlar aquela risada incontrolável, corri para a varanda e lá respirei profundamente. 



Tive vontade de voltar ao escritório para continuar a espreitar todos aqueles livros certo de que iria acabar efetuando novas e divertidas descobertas. Antes, porém, me ocorreu que já havia passado tempo demais longe de todos e talvez isso pudesse levantar alguma suspeita.

Dirigi-me à cozinha, e ao me verem, os rapazes, quase que todos ao mesmo tempo, falaram para que eu ali permanecesse e fizesse parte da grupo, afinal de contas aquela minha ausência estava soando como um certo desrespeito ao nosso anfitrião.

-      Acho que vou acompanhá-los numa taça de vinho.

-    Posso François? – perguntei dirigindo-me a ele que agora, já mais à vontade, parecia ainda mais solto.  Na minha cabeça, não sei se pelo álcool ou pela nossa presença, ou até pela soma dos dois, parecia flutuar de tão feliz.

-      Claro, meu lindo!  - Respondeu ele, todo alegre.

-   Pegue uma taça ali e encha o seu copo. Ah! Pegue um pedaço de queijo, também. Junte-se a nós – concluiu.

Aquela sua última fala não me caiu muito bem já que em minha cabeça eu precisaria voltar ao seu escritório para fazer novas incursões. Dei um tempo entre eles, fiz alguns comentários, verdade seja dita, não muito pertinentes já que estava com o pensamento totalmente voltado para outro assunto, fato este que acabou chamando a atenção de todos tal o grau de estranhamento das minhas colocações.

-      Acho que o Carlinhos andou tomando xarope demais! – retrucou SC, percebendo um certo mal estar nas minhas palavras.

-   Álcool com certeza não foi, pois o cara nem tomou uma taça de vinho ainda!  - completou M-Mentiroso. No seu semblante percebi um certo ar irritado já que ele estava se esforçando para parecer cordial.

Evitei fazer novos comentários, me limitando apenas a sorrir e acenar positivamente para o que estava sendo dito tendo com o objetivo ficar ou parecer transparente.  Falo de transparência no sentido de invisibilidade. Eu precisava me tornar invisível, ou não percebido, para poder ter uma nova chance de voltar ao escritório. Queria parecer  assim para ver se conseguia novamente me desvencilhar do grupo. Como a minha mente estava envolta num turbilhão de curiosidade, acabei tendo a ideia de falar para o Jo que gostaria que ele visse uma imagem que havia chamado a minha atenção.

-    Jo, vem cá um minuto… deixa eu te mostrar uma coisa interessante que percebi lá da varanda! – falei, ao mesmo tempo em que sutilmente pisquei-lhe o olho tentando ver se  ele percebia a minha intenção.

Ele, que àquela altura demonstrava um certo ar de tédio, até mesmo porque não estava bebendo, e talvez até por isso não estivesse conseguindo entrar no clima, acabou de certa forma se sentindo um tanto aliviado pelo fato de estar sendo tirando dali.

-      Cara, eu descobri algo fantástico!

-    O que é? – respondeu ele já mais animado.

-      Mermão, o François é escritor.

-   Como assim, escritor?

-      Escritor, cara! O cara escreve livros. Além de artista plástico, ele também é escritor, desses que publica livros, sabe?

-      E daí? – Perguntou ele sem dar a devida importância às minhas palavras.

-   O negócio, não é só o fato dele escrever, mas sobre o que escreve. Cara, estou me mijando de tanto rir. Tu precisa me ajudar.

-      Ajudar, como? – perguntou ele, agora já cheio de curiosidade.

-    Eu vou novamente me afastar do grupo para poder continuar vendo as coisas que ele escreve. O que vi até agora…   cara… tu não faz a menor ideia.  Depois te conto.

-      O que você quer?  - respondeu ele com cara de tédio.

-    Que você fique de olho, vigiando se os caras vão vir pra cá! Não quero ser pego com a mão na massa, invadindo o escritório do cara, sacou?  - falei de forma mais incisiva numa tentativa meio desesperada de conseguir o seu apoio.

-    Vai nessa! – respondeu ele, agora já mais empolgado.

Deixei-o ali do lado vigiando e me debrucei sobre aqueles escritos com uma voracidade como há tempos eu não vivenciava. Olhei por cima da escrivaninha, para a estante que se encontrava logo atrás, e rapidamente fiz uma varredura dos livros ali empilhados.  A princípio, não avistei nenhum que fosse da autoria do François. Muitos eram de poesia, principalmente dos chamados poetas malditos, como Paul Verlaine, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, além de T.S.Elliot, Hemingway, Bakunin, entre outros.  Mas não era nisso que estava interessado.

Àquela altura, eu até havia esquecido de procurar o livro do Valentin, tamanha foi a curiosidade que se abateu sobre mim depois de ter folheado algumas obras do François.

Era em outros livros que eu estava interessado.  Vasculhei, ora por um lado, ora por outro, sem que nada encontrasse. Até que, de repente, na parte superior da estante avistei vários com o nome do François. Olhei para o Jo, que continuava ali ao lado, vigilante, só assistindo à minha aflição, e  para que não ficasse totalmente fora do assunto, pedi para que se aproximasse um pouco e lhe mostrei os três pequenos livros coloridos.

-    Dá uma olhada nisso!  É só pra você ter uma ideia do que estou descobrindo – sussurrei para ele.

Assim que ele começou a ler os títulos e folhear os índices, seus olhos imediatamente se encheram de espanto.

-      O que é isso, Carlinhos? – perguntou ele, cheio de excitação.

Elevei o meu dedo indicador à boca como se tivesse lhe fazendo um gesto para fazer silêncio pois precisava continuar bisbilhotando aqueles livros.

-    Depois eu te mostro mais… guenta aí! – falei pra ele, baixinho.

Olhando atentamente para aquela parte da estante onde se encontravam uma série de livros escritos pelo François, percebi que eles estavam agrupados por categorias e que cada grupo estava separado um do outro por cartolinas coloridas que continham abas indicativas separando os diversos títulos.  Naquela varredura inicial, pude observar tratar-se de um autor que parecia navegar com facilidade por todos os gêneros visto existirem livros de toda espécie ali empilhados.

Haviam Contos Infantis, Romances, Ficção, Aventura e suspense, livros de Auto-Ajuda, livros de Gestão, Faroeste e Ensaios Filosóficos.

-      Meu Deus! O homem é uma sumidade! – falei baixinho olhando para o Jo que não estava entendendo nada.

Puxei um livro da categoria Romance pois o seu título, para variar, me chamou muito a atenção. Assim que o retirei da estante, não resisti e imediatamente o mostrei para o Jo, que tal qual um trabalhador incansável e obediente ali continuava prostrado e atento.

-   Olha, olha!, olha só o título desse livro!!! – falei para ele todo empolgado.

-   O que é isso?  Deixa eu fazer cocô com você!  Que diabo é isso? Caraca! – respondeu me olhando tremendamente espantado.

-    Pois te digo...  este é um conto romântico, acredita?

-    Puta que o pariu! Muito romântico. – respondeu ele sorrindo mas sem ainda conseguir entender o que de fato estava se passando ali. 

Também não era pra menos. Um livro com um título desses, Deixa eu fazer cocô com você! não é todos os dias que a gente encontra por aí.

-    Cara, guenta aí pois eu vou ler um trecho aqui desse livro, ok? – falei com vistas a que ele ficasse ainda mais atento a qualquer movimentação vinda da cozinha.

Trecho:
 

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Dominique La Matro era um sujeito bastante reservado, extremamente discreto e com modos bastante refinados. Dificilmente alguém poderia registrar um gesto indelicado de sua parte. Vê-lo alterado ou falando em um tom de voz mais elevado, era quase impossível.  Ele, do alto dos seus trinta e quatro anos, já havia desenvolvido uma nítida habilidade de viver cada momento da vida, deixando as coisas acontecerem, ao invés de tentar controlá-las.

Entretanto, se existia algum acontecimento ou alguma pessoa capaz de tirá-lo do sério, essa era a sua irmã mais velha, a primogênita da família, Monique La Matro. Ela e sua outra irmã, Kilaká La Matro, também mais velha que ele, quando juntas,  transformavam a sua vida num verdadeiro martírio, e isso desde que eram crianças.  As duas, que eram inseparáveis, costumavam infernizar a sua vida aproveitando-se do fato dele ter sido um garoto extremamente sensível, terrivelmente sistemático, e que ainda por cima ser o caçula e o xodó da sua mãe, o que provocava enormes ciúmes nas duas.

Mesmo já adulta, Monique, que desde menina sempre tivera um espírito perverso, ainda se comprazia em tripudiá-lo e todas as vezes que se encontravam, ela, caso tivesse alguma oportunidade, não conseguia esconder o seu indisfarçável cinismo, sobretudo quando se deparava diante de opiniões que conflitavam com as delas. Verdade seja dita, dificilmente ela concordava com quem quer que fosse e esse seu modo de ser já havia lhe rendido diversas dificuldades ao longo da vida, quer fossem na escola, quando ainda era jovem ou mesmo nos lugares por onde havia trabalhado.

Relacionamentos, então, nunca lhe renderam bons frutos e dificilmente ela ficava com alguém por mais de um ano. Da união com um de seus últimos companheiros, relação esta que desde o início apresentou sinais de alta instabilidade, ela acabara engravidando e essa gravidez resultou no nascimento de uma criança que hoje estava com quase oito anos de idade.

A julgar pela mãe, que mesmo do alto dos seus trinta e sete anos ainda permanecia tremendamente desajustada, longe dos padrões ideais de um comportamento dito aceitável, era de se esperar que esta criança fosse ter sérios problemas de temperamento.  E não deu outra. Adamastorzinho, como a sua avó carinhosamente o chamava, era um garoto de um gênio terrível que vivia criando problemas na escola. Dominique não o suportava pois todas as vezes que vinha visitá-lo, acabava sempre quebrando alguma coisa, e ele, sistemático como era, detestava que mexessem em seus pertences.

Passava das cinco da tarde quando mãe, filha e neto aportaram em sua casa. Chegaram sem avisar, fato este que fez com que ele, que normalmente já não gostava de receber visitas, ficasse ainda mais irritado. Assim que abriu a porta, Adamastorzinho entrou correndo e foi logo pulando em cima do seu sofá. Monique, cínica como de costume, disparou-lhe um falso sorriso dizendo-lhe:

-      Oi querido irmãozinho, como tu tá?

-      O que vocês estão fazendo aqui à essa hora? – respondeu ele sem conseguir esconder sua insatisfação.

-      Ah!, a gente foi na cidade resolver umas coisas e na volta, como era caminho, resolvemos passar aqui para tomar um café e comer aqueles seus biscoitinhos deliciosos que só você sabe fazer, né mãe? – respondeu-lhe Monique com a sua habitual cara de sonsa.

-      Puxa vida!  Vocês podiam ter avisado, né?  Eu estou cheio de afazeres aqui - respondeu Dominique, já se dirigindo ao seu sobrinho pedindo-lhe para que tirasse os pés de cima do sofá.

O que o deixou  ainda mais incomodado foi que justo naquela hora ele estava se preparando para ir ao banheiro, pois sentira uma enorme vontade de evacuar.  Fazia vários dias que não defecava e naquela hora fora acometido abruptamente por uma vontade extrema que pedia urgência em ser atendida.

Para tentar afastar a todos, pediu para a sua mãe ir passando um café enquanto ele iria terminar de engomar umas roupas, pois havia deixado o ferro ligado. Esquivou-se rapidamente já que naquele momento não estava mais conseguindo se segurar de tão apertado que se encontrava. Preocupado com a criança, que inadvertidamente corria pela sala, repreendeu-lhe, chamando também a atenção da sua irmã para que não permitisse que o garoto assim se comportasse pois poderia acabar se machucando ou causando algum acidente. No fundo, temia que ele quebrasse alguma coisa.

Correu para o quarto pois a sua vontade de evacuar tinha aumentado ainda mais e daquela forma dificilmente teria como se controlar. Andava de um lado para o outro como se estivesse peidando pelos cotovelos e por mais que se segurasse, não conseguia mais conter os pequenos meteoritos que vinham sendo disparados. E o pior, é que no início, esses gases que até então estavam sendo expelidos de forma silenciosa, agora já começavam a se fazer ouvir, e por esta razão, obrigatoriamente ele precisaria se afastar. Além da preocupação com aquela gente indesejada dentro da sua casa, ele tinha receios de que se fosse ao banheiro, que ficava num pequeno corredor próximo à sala, as pessoas pudessem escutar os ruídos que seriam provocados quando estivesse defecando.  Deu mais uma espiada da porta do quarto e como pareceu-lhe que a aquela altura todos tinham ido para a cozinha, correu para a privada e quase sem conseguir se conter, rapidamente baixou as calças e sentou-se ao vaso.

Naquele momento, uma série de gases foram expelidos emitindo um som que lembrava o de uma lambreta que acabara de engatar uma segunda marcha, saindo em disparada. Foi necessário um enorme esforço para conter toda aquela enxurrada flatulenta. Como percebeu que se fizesse força, ruídos barulhentos poderiam ser ouvidos, deixou apenas alguns escaparem, tomando todo cuidado possível diante daquele enorme turbilhão. 

Continuou assim por alguns segundos e tão logo sentiu uma de suas primeiras fezes apontar em seu ânus, imaginou que a partir daquele instante poderia deixar a coisa fluir pois era bem provável que daquele ponto para frente apenas massa fecal fosse ser evacuada.  Ledo engano. Aquela merda que começou a sair, era apenas uma merda-satélite que havia se desgarrado da merda-mãe. Entre as duas, se formara uma enorme e explosiva quantidade de gases, e no exato momento em que aquele primeiro e pequeno cocô acabou de ser expelido, um sonoro peido soou aos quatro cantos da casa. Sua irmã, que havia voltado da cozinha para pegar a sua bolsa na sala, ao ouvir aquele estrondo gritou…. – Mãaaannnhê, temos música nesta casa!


     -------------------------------- X -----------------------------------


-      Puta que o pariu, mermão!  Puta que o pariu! – falei pro Jo tentando me segurar para não explodir de rir.

-      O que foi, caráio!

-      Meu irmão, esse cara é hilário... hilário, manja?

-      Porra, me fala o que tu leu aí, cacete!

-      Cara, depois te falo. Segura as pontas aí pois vou tentar ler mais coisas.  Não sai daí.  Fica atento!

-      Mermão, é bom tu se apressar porque já faz muito tempo que a gente está aqui. Esses caras vão sair logo.

-      Tá certo!  Vou me apressar. Mas fica ligado aí. Se perceber qualquer movimento que eles estão vindo, me fala.

Voltei com o objetivo de continuar vasculhando outros livros porque a minha curiosidade em conhecer aqueles trabalhos havia aumentado ainda mais, principalmente depois daqueles textos totalmente fora do padrão, e que além de engraçados eram completamente inusitados. Confesso, eu não era um leitor habitual mas livros como aqueles, repletos de passagens chocantes e tremendamente bem humoradas, eu jamais tinha me deparado. O que mais chamava a minha atenção, era o fato de que, pelo menos aqueles que havia lido até agora, apresentarem num primeiro momento, uma característica de textos que poderiam muito bem serem considerados sérios visto estarem repletos de reflexões, ao meu ver, profundas e que narravam histórias de personagens densos, só que, de uma hora para outra, descambavam para situações totalmente inesperadas, além de muito escrachadas e terrivelmente divertidas.

Coloquei aquele livro junto de onde se encontravam os demais, e na sequência comecei, agora já premido pelo tempo, como o Jo havia me alertado, procurando ser o mais objetivo possível, agindo com o foco naquelas obras mais estranhas.

Ocorre, que não havia um que chamasse mais a atenção que o outro, pois todos tinham seus títulos bastante sugestivos.  Entretanto, naquele momento, foram os livros infantis que despertaram minha curiosidade. Peguei três deles de uma vez só e os coloquei em cima da mesa para analisá-los. Logo no primeiro que folheei, pude ler o título: As aventuras de Ultrapeido. Abri o livro e na contracapa estava escrito: “Nesta história, Ultrapeido e seu fiel escudeiro, o monge shaolin, Ku Soto Pun Fuun, vão enfrentar o seu maior inimigo: “Nariz entupido”.  Quase urinei de tanto rir.

-      Jo, é foda!  O cara é foda, velho! Caráio!

-      Fala, fala, fala! – respondeu ele querendo saber do que se tratava.

-      Cara, num dá, num dá.  Guenta aí, guenta aí!  - Respondi todo excitado e voltei para os demais livros.

O que estava logo abaixo também era outro desse herói juvenil, que pelos depoimentos que li na contracapa daquele primeiro que folheara, parecia ser adorado pela crianças. Dessa vez o subtítulo dizia: Ultrapeido contra os Incas VenusiÂnus. Fui acometido por um ataque de riso e tive que sentar na cadeira para não cair. Os Incas Venusianos eram o maior inimigo do National Kid, série japonesa exibida em nossas TVs nos anos 1960.

-      Que foi, mermão…  o que é que tu tá rindo? – pergunto Jo, cheio de curiosidade.

Virei o livro, aberto em sua direção, e assim que leu o título os seus olhos se arregalaram como se duvidassem do que estavam vendo.  Ele também precisou se segurar para não sorrir alto. Peguei os demais livros que pertenciam à aquela coleção de livros juvenis e neles pude ler os seguintes títulos: As aventuras de João Peidão e Kid Ninho, e O cocozinho matreiro. Naquele instante, lembrei de um ditado popular que dizia que quando a gente muito sorri num dia, é porque no outro vamos chorar. “Que se dane esse ditado, pois hoje irei rir até morrer”, pensei silenciosamente.

Imediatamente devolvi aqueles livrinhos ao lugar onde se encontravam e ao fazer uma varredura geral nos demais ali enfileirados, fui arrebatado por quatro pequenos volumes que estavam na sessão de livros de Gestão.

Tirei-os da estante e os coloquei sobre a mesa para ler o que continham. O título do primeiro deles, como todos os demais, era tão inusitado que dificilmente um ser humano considerado normal conseguiria acreditar que aquilo fosse real. Eis a relação dos quatro livros que peguei em minhas mãos:

Desculpem-me, soltei um peidinho!;
Hoje eu fiz um cocozão;
Quem cheirou meu peido?
Não frite um bacon no cu.


Procurei ver o que estava escrito na contracapa do primeiro deles e para a minha surpresa acabei me deparando com o depoimento de um diretor de uma grande empresa francesa e o que li encheu-me ainda mais de espanto.

De acordo com  as palavras deste executivo, era de suma importância que os novos líderes tivessem acesso a aquele livro, pois segundo relatava, muitos deles, sobretudo os mais jovens, julgando-se não serem passíveis de cometer falhas, acabavam se distanciando dos seus verdadeiros objetivos organizacionais, e que a melhor forma de evitarem cair neste erro, que considerava desastroso, era que todos deveriam amadurecer a ponto de serem capazes de admitir perante seus comandados e a si mesmos, que também eram falíveis.

Assim sendo, para aquele executivo, que eu não fazia a menor ideia de quem era, a leitura daquela obra - Desculpem-me, soltei um peidinho -, "era vital pois deveria servir de exemplo para que todos nós, e não apenas os líderes, seguíssemos os seus conselhos, pois ao admitirmos que também somos vulneráveis, não estamos demonstrando sinal de fraqueza, muito pelo contrário. Na verdade, isso nos torna ainda mais fortes visto que ao nos despirmos da nossa armadura, aquela que nos protege mas também nos enclausura, ficamos de fato mais livres para podermos estabelecer conexões realmente autênticas com o outro e é justamente isso que nos capacita a construir relações verdadeiramente significativas".

-      Cara, olha esse livro aqui! – Mostrei pro Jo.

-      Caraca, o que é isso? – perguntou ele, sem entender nada.

-      Mermão, há um paradoxo aqui. Uma contradição fudida.

-      Como?

-      Lendo o título, a gente não consegue fazer ideia da seriedade dele. O depoimento que está escrito aqui atrás parece ser verdadeiro.

Voltei-me para o outro, o do título Hoje eu fiz um cocozão, e pelo que pude verificar, tratava-se de um livro que narrava histórias de grandes fracassos empresariais fruto de terríveis erros estratégicos que foram cometidos por presidentes de grandes corporações.

Além destes acima citados, eu ainda encontrei mais um livro sobre Gestão. O seu título não fugia à regra e era tão inusitado quanto os demais:  É peidando que a gente se entende. Ele discorria sobre a importância da convivencialidade e do diálogo.

Certo de que o meu tempo estava cada vez mais curto, recoloquei aqueles livros todos de volta ao local onde se encontravam e comecei agora, de forma aleatória a pegar um aqui, outro ali, passando uma vista rápida e superficial por cima de cada um deles para tentar absorver o máximo que fosse possível.  Em um dos que folheei, que era um faroeste de título O ânus furado, num trecho aleatório que abri, estava escrito:

                         

  -------------------------------- X -----------------------------------

Ney era um pistoleiro terrivelmente desalmado. Reza a lenda, que ele matava suas vítimas disparando um tiro de sua Colt 45 bem no meio dos seus ânus. Entretanto, a grande verdade que este valente cowboy escondia, era o fato dele ser veado.  Como não aceitava essa sua vocação homossexual, nutria um ódio por todos aqueles que dele caçoavam o chamando de "o grande descascador de macaxeiras".  

Nas ocasiões em que adentrava aos Salllons, por mais medo que provocasse nos outros cowboys - afinal de contas era um impiedoso e temido caçador de recompensas -, podia-se perceber aqueles intrépidos forasteiros ali presentes se entreolhando e sussurrando uns para os outros algo do tipo: "Cuidado, a bichona raivosa chegou!"     

Como sempre 'negou' sua homossexualidade, Ney acabou ficando conhecido, à boca miúda, obviamente, como Ney Gay. Era assim que os outros maldosamente o chamavam, ou, para ser mais exato, o conheciam, porque se assim o chamassem, era bem provável que ele ficasse muito bravo, a ponto de ser capaz de desafiar este meliante para um duelo, fosse quem fosse.  

Além dessa sua particularidade, conta a lenda que ele também era cheio de manias e uma delas era aquela em que costumava dar nome às suas cagadas. Sempre que terminava de evacuar, olhava para o formato e o tamanho das suas fezes para imediatamente colocar-lhes nomes. Uma outra mania, era a de contar nos dedos o tempo em que uma merda levava para ser expelida. Assim que a sua massa fecal começava a sair, ele iniciava a sua contagem, acreditando que a cada dedo que contasse equivalia a um segundo de tempo, ou ao seu tamanho em centímetros.  Dizem que numa dessas ocasiões, ele chegou a contar trinta e três segundos de evacuação. Antes de obrar, devemos ressaltar que ele estava se sentido apertado já fazia algum tempo. Como se encontrava em um local muito perigoso, buscou um lugar mais seguro para fazer as suas necessidades. E isso levou algum tempo. Para piorar, ele nem estava podendo se aliviar daquelas fortes cólicas soltando um peidinho que fosse. É que naquela ocasião em especial, ele se encontrava naqueles dias em que o sujeito se é acometido pelos chamados "peidos-que-cagam.'. Para quem não sabe o que isso significa, "peidos-que-cagam' são aqueles que quando o indivíduo faz Pum...    ...Tum! a merda sai junto.  

Depois que encontrou um lugar considerado adequado e pode enfim se aliviar, ficou impressionado com o tamanho daquelas fezes. Na verdade, nem se podia chamar aquilo de 'fezes' pois o que evacuou foi um único e gigantesco tolete.  Segundo ele lembrava, era bem provável que aquela pudesse ser considerada a maior cagada na história de sua existência. Também, haveremos de considerar: uma massa fecal com trinta e três centímetros, evacuada de uma "lapada" só, não é pra qualquer um. Talvez aquele fosse um recorde digno de ser registrado no Guiness Book, se ele existisse àquela época*. 

Dizem ainda, que no dia em que evacuou esta histórica cagada ao final dela ficara tão feliz que saiu pululando de alegria dizendo coisas do tipo...

- Gente, gente, gente, que cagada diferente!;
- Gente, gente, gente, como era grande essa serpente!;
- Gente, gente, gente, quando a gente caga a vida se esclarece na mente!;
-  Gente, gente, gente, como estou flutuando levemente!;
- Gente, gente, gente, que alegria, que felicidade... como estou contente!

E assim, rodeado por esses sentimentos ele saiu andando alegremente.

Com relação ao fato de gostar de dar nome às suas cagadas, a título de ilustração, todas as vezes que a sua massa fecal era fina e comprida, ele tinha por hábito dar-lhes o sugestivo nome de Luiz Finório, rótulo este que era alusivo ao pior bandido que já havia enfrentado.

Este conto, segundo percebi, teria se passado nas caatingas do sertão Nordestino nos idos dos anos 1930.

 
  --------------------------------- X -----------------------------------


Naquela hora, eu que me encontrava sentado à mesa, tive um ataque de riso tão grande que quase caí da cadeira. De pé, ao meu lado, um pouco mais adiante, Jo a tudo observava com um sorriso que ia de canto a canto, só que, obviamente, sem nada entender e morto de curiosidade.

-      Tu vai ter que me contar tudo o que você tá lendo, Filho da Puta!

-      Vou, sim, cara!  Pode deixar, falei-lhe com os meus olhos que se esvaíam em lágrimas de tanto que eu sorria.

Peguei um da sessão de "Livros de Guerra" com o título Os peidões de Navarone. Fiquei intrigado com este exemplar porque naquela época eu adorava filmes de guerra e havia um clássico de 1961, a qual este livro fazia referência, com um título semelhante. Tratava-se de Os canhões de Navarone, filme que tinha em seu elenco os grandes atores Gregory Peck, David Niven e Antony Quinn.  Este clássico do cinema, contava uma passagem durante a Segunda Guerra Mundial mostrando os esforços de um comando aliado para destruir um forte alemão que ameaçava suas operações navais. Com um monte de indagações na cabeça e querendo saber do que aquele livro tratava, resolvi abri-lo a esmo em uma página qualquer, e cheio de curiosidade comecei a ler um trecho do mesmo.

     -------------------------------- X -----------------------------------

O Sr. Feliciano Rabão, um general do exército aposentado que havia lutado no Front durante a Segunda Guerra Mundial e integrara o grupo que ficou conhecido como Pracinhas, sofria muito com problemas de flatulência. 

Ele era um sujeito extremamente forte e bastante atarracado, dono de um rabo enorme, muito embora o nome
 Rabão não fizesse referência à essa sua particularidade nem tampouco se referisse a algum apelido. Tratava-se, de fato, do seu sobrenome. Este honorável senhor, costumava peidar o dia inteiro, não fazendo distinção de horas. Verdade seja dita, o fato é que ao liberar seus poderosos gases, ele se sentia muito bem representado e internamente tinha a sensação de como se ainda estivesse na ativa. Ocorre que esses flatos, geralmente nem sempre eram expelidos de forma tão acintosa e não eram todos que faziam barulho, como também nem todos eram inodoros. 

Diferentemente do que acontecia à noite, principalmente quando ele acordava. Nessas ocasiões, costumava disparar uma série fortíssima. Sua esposa, Dona Adalgisa, embora não gostasse, já havia se acostumado àquela situação, tanto que fora ideia dela colocar nome nos gases do marido. Para ela, que vivia com o Seu Feliciano há mais de 20 anos, era como se a guerra ainda não houvesse acabado. Normalmente ao acordar, este excelentíssimo senhor soltava pelo menos cinco estrondosos peidos e para esta série inicial, ela dera o nome de 'Os Estupendos', de tão altos e poderosos que eram. E tinha mais.  Para cada um daqueles cinco primeiros flatos, ela havia dado um nome, em particular. 

O primeiro se chamava 'O Fabuloso'. Na sequência, vinham 'O Majestoso', depois dele, 'O Glorioso', 'O Maravilhoso'
 e por último, 'O Tenebroso'.  Convém dizer, que não eram apenas cinco os gases que o general disparava. Às vezes eles chegavam a dez. Só que do sexto em diante, normalmente já não saiam mais com tanta impetuosidade e era natural que fossem ficando mais fracos à medida que o tempo passasse.  Tanto que a Dona Adalgisa já tinha também até dado nomes a esses mais fracos. 

Além dos acima citados, existiam ainda, 'O Espalhafatoso', 'O Escandaloso' e 'O Miraculoso', visto que, depois do sétimo gás exalado, haveremos de convir que é muito difícil um sujeito conseguir expelir um oitavo flato e ele ainda por cima ser forte. Aos olhos da mulher, só podia ser fruto de um milagre. Uma outra explicação, talvez seja pelo fato de ele ter sido um general.


Foi, entretanto, numa semana santa, que este grande herói se superou. Na madrugada do sábado de Aleluia, Aleluia!...    o honorável combatente soltou três rojões como nunca antes ousara em sua vida. Sua senhora, católica fervorosa que era, tão espantada ficou, que para esta pequena série, em especial, resolveu nomeá-las de uma outra maneira.  Por terem sido 'fortíssimos', elas os chamou de 'Os esplendorosos', e como foram três, resolveu denominá-los de 'A Fortíssima Trindade', sendo o primeiro deles, obviamente chamado de 'Pai'.  Na sequência, como acontece com a Santíssima Trindade, vieram o Filho e o Espírito Santo.

-  Cruz credo, o Sr. meu marido, tem realmente um rabo santificado! - foi o que ela respondeu ao presenciar aquele memorável dia.

Como haveremos de convir, viver com aquele magnânimo soldado, não era uma tarefa muito fácil. Aquela mulher merece todo nosso respeito. 

Aquele excelentíssimo General tinha gases para todas as horas do dia, e para cada um desses momentos, claro, existiam nomes que foram previamente catalogados pela sua digníssima senhora. Além dos "estupendos", que eram aqueles disparados logo ao amanhecer, tínhamos também aquelas bufas que eram expelidas na hora do almoço e do jantar e para as quais a Dona Adalgisa havia denominado de Jesus, alegria dos homens, que eram peidos fortíssimos que o Sr. Feliciano deflagrava assim que terminava de fazer suas refeições. 

Assim que ele despertava da sua cesta, ele soltava outro sonoro peido que ficou conhecido como  "Jesus, alegria dos homens - A festa continua! Mais para o meio da tarde, havia uma outra série que foi denominada de "Os Acadêmicos do Salgueiro. Dona Adagilsa os chamava assim por eles serem mais swingados e festivos. 

Tínhamos ainda as "Bufas ao cair da tarde", que eram aqueles flatos que o Sr. Feliciano soltava no chá das cinco, e mais tarde, na hora do jantar, tinha um outro grupo que ela denominou de "Adivinhe quem vem para o jantar".  Perto da hora do nosso querido general se recolher, existam "Os quatro Cavaleiros do Apocalipse", ou "As Trombetas de Gideão", nome este que ela tinha retirado da famosa série O Túnel do Tempo, que era o nome de um seriado de TV realizado por Irwin Allen nos anos 1960, que mostrava as viagens no tempo de dois cientistas, Robert Colbert, como Doug Phillips, e James Darren, como Tony Newman.  

Para finalizar, tínhamos ainda o Boa noite Cinderela, que era aquele estrondoso gás que ele emitia pouco antes de dormir. Assim que a Dona Adalgisa ouvia este último e magnânimo peido, que sempre acontecia por volta das 22:00hs, ela imediatamente gritava: "Boa noite, Senhor meu marido!"

Desse ponto em diante, um silêncio brutal invadia aquela casa, silêncio este que só seria interrompido com o rufar dos tambores e o soar dos clarins pelos soldados que faziam a segurança do general, todos os dias, religiosamente às cinco horas da manhã. 

Eventualmente, o General despertava no meio da noite para urinar.  Nesses dias, ao levantar, ele soltava duas belas bufas. A sua senhora, por sinal, também as havia nomeado. "Dois perdidos numa notei suja", foi a forma que ela escolheu para nomeá-las. 

Pela manhã, logo ao acordar, o que se ouvia logo depois, como já foi dito antes, eram aquelas poderosas bufas que ficaram conhecidas como Os Estupendos.

Contam que uma bela noite, a Dona Adalgisa foi surpreendida, mais uma vez, pelo alto som emitido pelo seu companheiro. Acordou tremendamente assustada, tamanho tinha sido o estrondo provocado pela flatulência que o Sr. Feliciano havia deixado escapar.  Ainda atordoada, virou-se para ele e perguntou:

-    Nossa!  Que alto!  Qual foi esse?  O Esplendoroso? Meu Deus, que cheiro de pólvora! A bem dizer, você, meu marido, não tem um cu, mas sim um canhão nesse seu enorme rabo - falou sorrindo.

-     Nossa muié, esse foi fortíssimo, né? Eu diria que não foi nenhum nem outro. Pra mim, ele foi mesmo…  Horroroso, e também, de certa forma, Falacioso.

-    Horroso, deu pra perceber que foi. Foi tão forte que acabei acordando. Agora, só não estou entendendo o porquê do falacioso a que você se referiu.

-      Digo que foi falacioso porque não foi só um peido.

-      Não?

-      Não!

-      E por que, então?

-      Peido pesa?


-      Claro que não!

-      Então acho que caguei.



   -------------------------------- X -----------------------------------


Antes mesmo que pudesse esboçar alguma reação ao ler aquele trecho, fui alertado pelo Jo visto que ele percebera uma movimentação vinda da cozinha.

-      Carlinhos!  Acho que eles estão vindo – falou ele, preocupado.

-      Vou sair!

Levantei e ali ficamos como se estivéssemos discutindo sobre uma enorme tela que estava no cavalete que se encontrava no centro da sala.  Como aparentemente, parecia que eles ainda iriam continuar algum tempo por lá, falei para o Jo ficar novamente atento pois iria dar uma última olhada.  Dessa vez, procurei fazer uma leitura global de todos os livros de autoria do François para ver se conseguiria fazer ter um apanhado geral de suas obras.

Folheei aleatoriamente um livro aqui, outro acolá, às vezes procurando ler algum trecho, agora já mais curtos, em função do tempo que estava se esgotando. Às vezes, apenas me detinha sobre o título certo de que não teria mais tempo hábil para fazer uma investigação mais profunda.

Dos trechos que li, procurei absorver o máximo que conseguia objetivando fazer um inventário completo para os rapazes quando saíssemos dali. Ainda cheguei a folhear alguns livros e quando me preparava para sair, percebi uma folha de papel onde estavam escritos todos os títulos que François havia publicado.

Eis a relação!

Faroeste – Só peidando por cima do meu cadáver; O ânus furado.

Auto-ajuda e comportamento (Comédia) – Como peidar, Profissões, volumes I e II; Como peidar, Ambientes – Volume I; Como peidar no Toilette sem que te ouçam no Outlet; Como peidar com elegância e discrição nas recepções do embaixador (Inspirado no livro A arte de peidar escrito em 1751 pelo escritor e historiador francês Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut); As bufas do sofá.

Guerra – Os peidões de Navarone; O ânus sujou; A águia peidou.

Contos infantis – As aventuras de Ultrapeido (dois livros, um, onde ele enfrenta os Incas Venusiânus, e o outro contra Nariz entupido); O cocozinho matreiro; As aventuras de João Peidão e Kid Ninho; O Samurai peidorreiro.

Suspense e Aventura – 7 homens e um novo segredo: quem peidou?

Policial - Os subterrâneos do Vaticânus.

Gestão – Desculpem-me, soltei um peidinho; Hoje eu fiz um cocozão; Não frite um bacon no cú; Quem cheirou meu peido; É peidando que a gente se entende

Terror – Bufas do além túmulo; O morro dos peidos uivantes.

Ensaios filosóficos – O Homem que caga e ri; Peidar é humano, demasiado humano; Quando o ânus coça o sujeito perde a bossa.

Românticos – Me peida;  Deixa eu fazer cocô com você?;  O último pingo em Paris;  Peidiciana, a megera dos mil peidos; Amores duros e cocôs empedrados, passam quase sem deixar marcas; Peidão Capelo e as gaivotas; Dez ânus depois e Duas belas Bufas.

Épico – As bufas de Avalon.

Ficção  O último ânus sobre a terra.

Roteiro para novela – A força de um Dejeto; Depois daquele peido.

Saúde – As doces e sutis diferenças entre traques, puns, bufas e peidos; O 2 nosso de cada dia.

Ensaio Político  Botando a Rosca no Trombone; Peide agora ou cale-se para sempre.


Como percebi que havia muita informação a ser coletada, procurei por alguma folha em branco para fazer as minhas anotações. Achei um pedaço de papel em uma lixeira de madeira que estava ao lado da mesa e peguei um lápis que se encontrava dentro de um pequeno vaso onde ficavam guardadas várias canetas.

Procurei anotar alguns fragmentos e frases que em minha memória pudessem funcionar como índices e dessa forma, ao lê-los posteriormente, me fosse possível resgatar tudo aquilo que estava sendo visualizado naquele momento.

Registrei o máximo que consegui, escrevendo com tanta rapidez que fiquei com dúvidas se depois conseguiria ler as minha anotações visto que a pressa acabou fazendo com que as letras virassem verdadeiros garranchos, praticamente ilegíveis.

Ao lado deste vaso onde peguei o lápis, havia uma folha de papel pequena, quase toda amassada onde se encontrava escrito, à mão, a letra de uma marchinha de frevo. A letra, que estava incompleta, dizia mais-ou-menos assim:

Se eu peidar você me dá?
Dou, dou, dou...
Então já vou detonar...
Pô, pô, pô...

Mas se eu peidar você me dá?
Dou, dou, dou
Então já vou detonar...
Pô, pô, pô...

O velho gagá gagueja...
peidando no trem da Central...


A parti daquele ponto, a letra se encontrava interrompida. Junto a aquele pedaço de papel, havia um outro também escrito à mão, com o refrão de uma outra música de título "Penico estreito", e este pequeno trecho, que também parecia estar incompleto dizia mais-ou-menos assim:

Ai, ai!
Que boca estreita o penico tem
Quando se caga
O pau fica de fora
Quando se mija
O cu fica também.


Eu não sabia se ria ou se chorava diante de mais essa descoberta. Com muita pressa, pois percebi que o meu tempo estava se esvaindo, peguei mais um livro na prateleira fazendo uma rápida leitura na diagonal, mas não pude continuar porque fui chamado pelo Jo, que ao perceber a movimentação dos rapazes saindo da cozinha, ficou bastante aflito. O fato que há que de se lamentar, é que só tive aquela ideia de anotar o que estava lendo, tarde demais.

Ao sair, percebi um pequeno papel pendurado na escrivaninha com os seguintes dizeres: Frase do dia: “Merdas cagadas não voltam ao cu.” Repentina e desavisadamente, as minhas bochechas inflaram imitando as do grande mestre “Satchmo”, Louis Armstrong, quando soprava o seu trompete, e por pouco elas não explodiram numa enorme gargalhada tal foi o meu arrebatamento diante daquela frase tão inusitada.

Saí do escritório correndo e imediatamente puxei o Jo para a varanda tentando me segurar para não deixar escapar mais uma explosão de risos que àquela altura não era mais possível de ser controlada.




Capítulo IV
As exuberantes bundas Valentianas


Continuei rindo sem parar quando François, SC e M-Mentiroso se aproximaram querendo saber o motivo de tanto riso. Tergiversamos dizendo que tínhamos presenciado uma cena muito engraçada com um sujeito que havia tropeçado e em função desse tropeço acabou se chocando contra um poste. Desconcertado, saiu rapidamente e dobrou a esquina tentando escapar daquela cena ridícula que havia se envolvido.

-      E aí pessoal, vamos embora? – perguntou SC se dirigindo a nós.

-      Meus meninos, vocês não vão embora enquanto eu não mostrar uma coisa que tenho certeza que vocês irão adorar.

-      O que é, François? - Perguntou M-Mentiroso que continuava todo solícito.

-      Venham cá!  Acompanhem-me! – falou François todo saltitante.

Ele entrou no escritório dirigindo-se até o fundo da pequena sala e depois de revirar alguns livros, pegou um outro maior, desses  grandes geralmente dedicados à arte e à fotografia, e com ele nas mãos voltou-se para nós todo sorridente.

-      Rapazes, eu quero apresentar a vocês um amigo querido. Ele é  um fotógrafo profissional conhecido no mundo todo pelos seus trabalhos com ensaios de nus femininos.

-      Nus femininos… como assim?  - perguntou SC todo assanhado sentindo que o seu pênis já começava a ficar levemente arqueado.

-      Ele, até pouco tempo atrás – continuou François, - era apenas um excelente profissional que fotografava modelos nuas para uma revista masculina que é publicada lá na França. Como as fotos que ele tirava para esta revista costumavam receber muitos elogios da crítica especializada, ele acabou decidindo viajar por diversos países com o objetivo de publicar Books com Nus femininos do mundo inteiro.

-      Caráio, mostra logo isso François! – falei todo excitado, ainda mais porque aquele era o livro que eu tinha a intenção de procurar e que acabei esquecendo.

Antes de nos mostrar o livro, ele o virou para baixo para que não víssemos a capa, e na sequência contou-nos a história de Valentin.

Fotógrafo profissional, ele também é muito conhecido em sua área de atuação por ter verdadeira obsessão por bundas. Nessa peregrinação que decidiu fazer por países dos quatros cantos do planeta, contou-nos François, ele já passou pelo México e países da América Central, Estados Unidos, e na Europa visitou a Itália, os países nórdicos e por último, aí já na África, o Egito, origem daquele enorme livro que François segurava em suas mãos.  De suas andanças pelos países da América Central, resultou o livro que recebera o título de El Culo, onde se podia ver lindas mexicanas, guatemaltecas e caribenhas nuas e em poses pra lá de sensuais.

Nos EUA, ele publicou Ass wide open, que numa tradução livre significaria De ânus bem aberto. Dos países nórdicos, ele lançou L`anus rose (O ânus rosa), na Itália ele publicou L`ano rosso (O ânus vermelho) e no Egito ele havia lançado A roseleta púrpura do Cairo, que tinha sido o único livro até o momento lançado no Brasil, e era justamente ele que François segurava em suas mãos enquanto ia nos contando a história desse seu adorado amigo. Naquele exato momento, nos confidenciou François, Valentin encontrava-se na África reunindo modelos para seu mais novo trabalho, fato este que pude comprovar pois havia lido na carta que se encontrava em cima da sua mesa.  Segundo François nos relatou, este novo livro iria receber o título de O Ânus Negro, fato que também pude comprovar.


Este ensaio fotográfico ainda não havia sido finalizado porque o próprio Valentin havia lhe confidenciado que estava com dificuldades para fotografar as modelos já elegidas em virtude de um certo trauma que carregava desde a infância, trauma este que o fez procurar um terapeuta para poder aprender a lidar. E o pior, nos falou também François, foi que quando o Valentin falou em uma de suas terapias sobre essa sua dificuldade em lidar com o ânus negro, recebeu como resposta do seu terapeuta que ele, o terapeuta, também enfrentava este mesmo problema.

Ambos, Valentin e o seu analista, tinham um sonho recorrente em que estavam prestes a comer o ânus de uma mulher negra quando de repente este ânus começava a crescer de tal forma que chegava a engoli-los, e aí, obviamente, neste momento, eles acabavam acordando apavorados.  Rimos todos, a bem dizer um tanto perplexos, dessa situação inusitada que nos foi contada por François.

Ele também nos contou, que conheceu Valentin quando de sua última viagem à Paris. Ambos, ele e Valentin, trabalhavam para o mesmo grupo editorial.  Mais para frente, ele nos confidenciou que o próprio Valentin já havia vivido por um bom tempo no Brasil quando ainda era rapaz e falava muito bem o português.  Isso acabou ajudando para que eles se tornassem amigos.

- Meninos! - exclamou François querendo chamar a nossa atenção - esse Valentin é um daqueles indivíduos que poderíamos dizer, foi abençoado pelo criador. Todo homem, tenho certeza, gostaria de ser um Valentin na vida.

- Por que, François? – Perguntou SC

- Deixa eu contar uma história pra vocês – respondeu ele com um enorme sorriso no rosto.

- Diz logo, cacete! – completei.

- É o seguinte: o cara é um tarado por bundas, como falei ainda há pouco, não é verdade? Mais precisamente, por rabicós, que ele chama carinhosamente de Dioninho – sorrimos todos juntos.

- Dioninho? Que porra é essa? – perguntou SC sorrindo e sem entender nada.

- Pois é – continuou François. – ele chama o cu das minas de Dioninho. O cara é tão fissurado por fiofós, que até mandou fazer uma flâmula onde aparece escrito a frase  I Love Dioninho – voltamos a gargalhar juntos.

- Meninos – prosseguiu mais uma vez François falando sobre o Valentin.

- Como as modelos sabem que ele é um fotógrafo famoso, geralmente não é ele quem as procura. Elas é que vão atrás dele oferecendo os seus fiofós, querendo submetê-los à sua apreciação, como se fosse um currículo, manja? - falou sorrindo.

- Nossa Senhora! – exclamou Jo.

- Pois é, meus filhos. O cara fica em casa e são as meninas que vão até ele oferecer os seus dioninhos, porque se ele, Valentin, aprovar, a carreira delas decola.

- E vou te dizer mais! – Prosseguiu ele.

- Como ele, o Valentin, é um enólogo, ou seja, um ótimo conhecedor de vinhos, o cara não é um sujeito comum, não. Muito pelo contrário: ele é bem sofisticado. Todas as vezes que acaba de comer um roscof, ele faz uma analogia como se tivesse degustado um vinho.

- Como assim? – perguntei, rindo a valer pela forma como o François narrava as manias do seu amigo.

- Ele diz assim pra mina, ó!:  "Querida, você tem um ânus maravilhoso, com complexos e sedutores aromas em que se destacam as ameixas vermelhas e bem lá no fundo, fundo mesmo, discretíssimo toque amadeirado." – Nessa hora, M-Mentiroso desabou numa enorme gargalhada, que, obviamente, foi seguida por todos nós.

- Quando as modelos levam o seus rabos, ou currículos, como você falou, à sua apreciação, ele faz uma análise realmente bem profunda, não é mesmo? - perguntou Jo com ares de preocupado, embora tudo não passasse de uma encenação. Podíamos claramente perceber um certo sarcasmo em suas palavras.

- Profundíssima – concordou François, sorrindo enquanto jogava sua mecha de cabelos loiros para trás, num gesto um tanto delicado.

- O sujeito... - continuou François - no fundo, é um verdadeiro apreciador de vinhos e dioninhos - falou às gargalhadas.

- Cara, já pensou tu, lá em casa, sem nada pra fazer e de repente vem a gostosa da Fátima Antunes oferecer o dioninho dela pra você apreciar? - falou Jo dirigindo-se a SC.

Fátima Antunes, era uma linda mulher que encantava a todos nós naqueles tempos. Oriunda de uma família tradicional, ela residia no Ed. Ouro, que ficava localizado na esquina da Rua Sete de Setembro com a Av. Conde da Boa Vista, lugar onde eu havia morado por algum tempo durante a minha infância e onde residiam os meus tios.

Era a nossa musa inspiradora, bem diferente de outras duas Fátimas que foram nossas contemporâneas. Uma delas, a quem chamávamos de Fátima Urubu, era uma graciosa menina negra, ainda muito jovem, que morava num sobrado que ficava na própria Rua Sete de Setembro, quase esquina com a Rua Martins Jr., sobrado este que ficava bem ao lado do Ed. Mandacaru, prédio onde residia uma outra Fátima, a quem havíamos apelidado carinhosamente de Fátima Boi, que talvez por ter um cinturinha mais redonda e estar um pouco acima do peso, deva ter recebido esse infeliz apelido.


- Pra esse aí... - falou M-Mentiroso dando continuidade às palavras inicialmente proferidas por Jo - ...quem vai levar o dioninho dela vai ser a Fátima Urubu, ou quando muito, a Fátima Boi.

- Realmente M, pra ele, só se for uma dessas mesmo - falei tentando colocar ainda mais lenha naquela fogueira.

- Olha quem fala? - respondeu ele procurando me rebater.

- Fiquei sabendo que um dia desses a Fátima Boi te deu o maior beijão lá no elevador do Ed. Amazonas, num foi Jo?  - respondeu ele lembrando de um fato que realmente tinha acontecido comigo.

- E o cara ficou caidão - respondeu Jo procurando dar uma força às palavras de SC.

- Agora, meninos… - interrompeu-nos François, talvez até para dar uma fim àquela nossa interminável conversa - …mantenham o pintinho de vocês presos na gaiola porque o que vou mostrar neste momento é simplesmente maravilhoso - completou mostrando-nos aquele livro que há tempos segurava em suas mãos.

-  Ahhhh! O que é isso? – Perguntou SC todo excitado, e nós, também, não ficamos atrás.

-  Caráio, mostra logo esse livro aí François! – completou M-Mentiroso que daquele momento em diante esqueceu completamente o papel que vinha representando.

O livro que François começou a folhear diante de nós, estava repleto de fotos de belas mulheres nuas, nas posições mais ousadas e excitantes. Naquela idade, se um livro daqueles caísse em nossas mãos, era provável que entrássemos num estado de masturbação permanente.

Aquilo para nós, era completamente novo. Fotos de mulheres peladas, nós nunca tínhamos visto. A única coisa que conhecíamos, eram aquelas revistinhas repletas de histórias eróticas mas que não apresentavam fotos, e sim, desenhos livres, feitos à mão.

Ficamos ali nos espremendo, com um querendo passar por cima do outro tal era o desespero diante daquelas maravilhosas fotos, a maioria em preto-e-branco, com mulheres exibindo suas bundas torneadas e sempre em posições tremendamente sensuais.

-      Para de babar em cima de mim, seu filho da puta! – falou SC para M-Mentiroso.

-   Tira essa porra desse caráio daqui, véio! – Falou M-Mentiroso dirigindo-se ao Jo que estava se apoiando sobre ele querendo encontrar um melhor ângulo para ver aquelas fotos.

Por algum tempo permanecemos completamente entretidos com aquelas lindas mulheres que estavam desfilando perante nossos olhos perplexos, enquanto François ria-se a valer tamanho era nosso estado de excitação.

-      François, onde que vende um livro desses? – perguntou M-Mentiroso.

-      Olha, acho que vocês podem encontrar na Livro 7.

A Livro 7 era uma livraria que existia na Rua Sete de Setembro, na quadra seguinte àquela onde ficava o nosso ponto de encontro. Ela foi fundada em 1970 numa pequena loja de pouco mais de 20 metros quadrados e mudou-se em 1978 para um enorme galpão, na mesma rua, com o objetivo de se tornar a maior livraria pernambucana. Com os seus cavaletes e estantes ocupando um espaço de 1.200 m2, acabou de fato, entre os anos 1970 e 1980, tornando-se a maior livraria do Brasil em número de títulos e extensão de prateleiras, segundo o Guinness Book.

Era o orgulho de todo pernambucano e com o tempo, dizem que passou a ser uma espécie de Academia Pernambucana de Letras, na qual ter o seu retrato exposto acima das estantes significava um reconhecimento e uma certa imortalidade para a sociedade literária recifense. Não foram poucos os intelectuais, escritores e poetas, que doaram seus retratos para ali ficarem expostos, entre eles podemos citar Gilberto Freyre, Ariano Suassuna, César Leal e João Cabral de Mello Neto, e muitos deles, inclusive, costumavam fazer o lançamento dos seus novos livros naquele espaço tão badalado.

É lógico que iríamos à Livro 7 para ver se conseguiríamos encontrar aquele livro. Posteriormente, discutindo esta possibilidade, chegamos à conclusão que dificilmente aquilo poderia se tornar viável por causa de algumas questões básicas, dentre elas o seu custo, que para ser adquirido iria se fazer necessário que fizéssemos uma angariação de fundos, ou seja, ele não iria pertencer a um só, e por último, dificilmente conseguiríamos transitar por nossas casas com um livro daquele tamanho sem que nossos pais não percebessem. Depois de um bom tempo folheando aquelas páginas desconcertantes, o François fechou o livro e falou:

-      Chega meninos, vamos parar por aqui!  Não quero ejaculações precoces em minha sala – Foi uma gargalhada geral entre o grupo.

-    Antes de vocês irem embora, deixa eu mostrar mais umas coisinhas.

Foi novamente ao escritório, guardou cuidadosamente o livro do Valentin e pegou outros dois menores, do tamanho de um romance comum.

-      Olha, esse livro aqui foi escrito por uma modelo brasileira, que hoje é muito famosa e que foi descoberta pelo nosso querido fotógrafo. O nome que ela assina no livro é Glorinha Kibunda, embora esse não seja o seu verdadeiro nome. É apenas um pseudônimo.

François acabou nos contando que aquela modelo ainda era virgem quando Valentin a fotografou nua pela primeira vez, e que eles acabaram se relacionando por algum tempo. Ela, que nunca havia tido relações antes, além de ter sido desvirginada por ele, ainda passou a fazer sexo anal quase que diariamente, visto ser essa a grande tara do mestre da fotografia. Ela ficou tão apaixonada por essa forma de fazer sexo, que anos depois resolveu publicar um pequeno livro autobiográfico onde contava um pouco da sua história. O nome do livro que ela escreveu em homenagem ao seu descobridor vinha bem a calhar. O título?  Este rabo é todo teu, Zé Bedeu.

Mais uma vez, nós que ficamos totalmente pasmos diante de um título tão inusitado, caímos os quatro, numa gargalhada só, risos estes também seguidos por François.  Na sequência, eles nos falou que Valentin era um apaixonado pela obra do escritor brasileiro Machado de Assis e por causa dessa paixão ele resolvera se lançar também como escritor. Mas que belo cu, Capitu!  fora o nome que havia escolhido para o seu primeiro romance. Eu e os rapazes quase explodimos de tanto rir e rimos ainda mais quando ficamos sabendo que de lá do Senegal este fotógrafo que agora começava a dar os seus passos como romancista, estava prestes a concluir mais um livro que iria ser publicado com o insólito título de... Garçom, me veja dois ânus bem passados, por favor!   Quantas surpresas mais eu iria me deparar naquela noite? Esta foi a pergunta que me fiz naquele momento, sem saber que outras tantas, talvez muito mais inesperadas, ainda estavam por vir. 

 -    Tem mais uma última coisa que queria mostrar pra vocês antes de irem embora. - Ele caminhou mais uma vez até o seu quarto retornando em seguida com um pequeno estojo transparente em suas mãos.

-        Vocês estão vendo este estojo aqui?

-        Sim! – respondemos quase que todos ao mesmo tempo.

-        O que é isso, François? – perguntou M-Mentiroso.

-        Vou contar a história desse estojinho pra vocês – respondeu François.

-        Quando eu estive em Paris, no verão de 1967, certa vez Valentin me convidou para irmos a um balneário que ficava no Sul da França, chamado Calanque d’En-vau, uma praia localizada no distrito de Cassis, próximo de Marselha, cidade onde moravam seus pais.  Considerada a praia mais escondida da França, ela era adorada pela elite francesa, justamente por ser bastante desconhecida e reservada.

-        Cara, eu não sabia que você já tinha ido para a França. Ainda há pouco, ouvi quando você falou que já havia ido pra lá, não foi mesmo?  – falou SC um tanto surpreso com a revelação de François.

-        Pois é!  Eu estive, sim. Falei isso agora há pouco, como você mesmo lembrou, quando comentei onde tinha conhecido o Valentin, lembra? – respondeu ele, embora só bem mais tarde fôssemos descobrir que esse era o seu grande sonho, mas a verdade é que nunca estivera lá.

-        Verdade! - Respondeu SC

-        E aí, o que aconteceu lá – perguntei, e o que ele contou provavelmente deve ter ficado sabendo pelo próprio Valentim, pois como falei acima, nunca estivera em Paris e menos ainda em Marselha. É possível que tenha nos contado tudo isso que vou relatar agora, até para dar mais veracidade ao que de fato ocorreu.

Eis o seu relato:

"Quando nós chegamos à casa dos pais do Valentin e ele falou que iria me levar no final de semana para conhecer este balneário, o pai dele nos revelou um fato curioso: a praia estava imprópria para banho.   “Como?”, perguntou Valentin intrigado e ele recebeu como resposta que este fato estava realmente intrigando os sanitaristas já que aquela praia ficava totalmente deserta na maior parte do ano e também porque na região não existiam casas por perto que pudessem estar, por exemplo, descarregando esgoto não tratado. Valentin perguntou se eles já haviam descoberto o motivo, ao que seu pai lhe respondeu que ainda não. O certo, é que os sanitaristas haviam feitos testes com a qualidade da água chegando à conclusão que ela apresentava alto grau de coliformes fecais."

-        Para encurtar a história, meninos, vou dizer o seguinte: - completou François.

Ele nos contou que Valentin, após receber esta notícia do seu pai, havia lembrado que um amigo seu de infância trabalhava na vigilância sanitária de Marselha e depois de conversar com este seu amigo, descobriu que a conclusão a que os estudiosos haviam chegado, era que o alto teor de coliformes fecais só poderia estar ocorrendo por um motivo, e este motivo, segundo os sanitarista, era simplesmente inusitado. A água estava contaminada porque os franceses, que não costumam tomar banho regularmente, estavam despejando nas águas daquela pequenina praia dejetos que eram oriundos do fato das pessoas não estarem fazendo suas higienes íntimas de forma adequada. 

Foi aí que Valentin teve uma ideia, ao mesmo tempo genial e inimaginável.  Ele sugeriu ao seu amigo que a Vigilância Sanitária adotasse um programa visando sanar aquele problema. A este programa, foi dado o sugestivo nome de "Opération anus propre, plage propre", traduzindo, Operação ânus limpo, praia limpa.  Em que consistia esta operação?  Segundo nos confidenciou François, os sanitaristas construíram na entrada do balneário, instalações onde as pessoas deveriam se dirigir antes de adentrarem ao mar.  Havia uma casa para as mulheres e outra para os homens, e nessas instalações era feito o seguinte procedimento: o banhista era obrigado a limpar a sua região anal com um pedaço de papel higiênico, em frente a um dos instrutores. Se este ficasse sujo, ele receberia um Kit Ânus, em francês Le trousse anus, sendo encaminhada, em seguida, para uma pequena cabine onde existia um bidê com água quente e ali elas deveriam fazer sua higiene anal, utilizando, obviamente, os apetrechos constantes daquela sacola. E era justamente esse estojo, ou Kit Ânus, que o François segurava em suas mãos. Dentro dele, haviam uma pequena toalha, um pequeno tubo com sabonete líquido e neutro, uma esponja e uma pequena bisnaga contendo Xilocaína.

-        Vocês não estão acreditando em mim, não é meninos? – perguntou François olhando para cada um de nós.

-        Não é questão de acreditar ou não. É que essa história que você nos contou é meio inacreditável... – rebateu M-Mentiroso esboçando um leve sorriso em seu rosto.

-        Mas é verdade, meninos!  Olhem aqui – abrindo o estojo para nos provar

-        Por que tem Xilocaína, François? – perguntou Jo.

-        É o seguinte... – respondeu François, preparando-se para contar algo que sabia iria nos deixar perplexos.

-        O sabão neutro e a Xilocaína foram pensados pelos médicos e sanitaristas, levando em conta ser aquela praia muito frequentada por homossexuais. Além disso, embora a gente saiba que a pílula anticoncepcional foi inventada em 1960, neste ano em que a operação foi implementada, ainda não era fácil ser encontrada, sobretudo na França.

-        Não estou entendendo aonde você quer chegar – falou SC um tanto curioso.

-        Então! – continuou François.

-        Como a pílula anticoncepcional ainda não era muito utilizada pelas mulheres francesas, elas, para não engravidarem, preferiam fazer sexo anal... Ui! que delícia!!! – falou François em tom de deboche.

-     Então as francesas daquela época eram todas bundeiras? – perguntou Jo em tom de sarcasmo.  Rimos todos juntos.
     
-        Ah! quer dizer que elas davam a 'roseleta'? - perguntei sorrindo.

-        Púrpura do Cairo... - respondeu François de bate-pronto, fazendo referência ao ensaio fotográfico de Valentin que ele havia acabado de nos mostrar. E na sequência, explicou melhor a escolha da Xilocaína pelos médicos sanitarista.

-     Os médicos decidiram colocar sabão neutro e Xilocaína justamente temendo que aquela higienização que estava sendo recomendada, pudesse ser desconfortável, procurando evitar que as bichas e as bundeiras, como você falou, Jo, sentissem dor no momento em que fossem efetuar a sua higiene anal.  É bem provável que os aninhos deles estivessem feridos – completou François sorrindo copiosamente.

-      Só completando... - prosseguiu François - esta operação obteve pleno sucesso. A praia voltou, depois de um tempo, a ficar própria para banho. Entretanto, ela acabou sendo desativada algum tempo depois, embora a higiene continuasse sendo obrigatória, porque os franceses reclamaram que estavam se sentindo constrangidos por ter que efetuar a limpeza dos seus adorados aninhos na frente de estranhos.  Só sei que depois, mesmo a operação tendo sido abandonada, as águas daquela deliciosa praia nunca mais ficaram impróprias. As pessoas se conscientizaram e passaram a fazer suas higienes íntimas com mais regularidade e eficiência de forma que elas já chegavam às casas de inspeção bem mais asseadas.


Passamos o estojo de mão em mão, olhando para o mesmo um tanto desconfiados. Havia, além da curiosidade natural, um certo constrangimento desfilava de forma tênue, embora perceptível, pelos nossos semblantes. 

Aquilo tudo era muito novo e inesperado para nós. Ainda surpresos com aquela última revelação que François nos fizera, fomos mais uma vez surpreendidos quando repentinamente ele nos falou:

-      Chega por hoje meus queridos! – falou François tentando segurar a nossa excitação, que àquela altura já estava passando da conta. Também pudera, havíamos sido bombardeados por muita coisa nova em tão curto espaço de tempo.

-    Olha! – continuou ele – Da próxima que vocês vierem aqui, que eu sei que vão voltar, tá certo?... eu vou contar um segredo pra vocês, ok?

-    Mais um? Dá uma pista, pelo menos – falou SC todo cheio de curiosidade.

-   Nesse momento, a única coisa que posso falar é que além de artista plástico eu também sou escritor. Só que os meus livros são voltados para o público, como eu posso dizer? ...das meninas, assim como eu - respondeu François revirando seus olhos para cima e com um sorriso totalmente afetado.

-    Como, escritor? – perguntei a ele com a cara mais lavada e cínica do mundo.

-    Conto outro dia! – respondeu ele, tentando por um ponto final na conversa.

-    Mas onde esses livros são vendidos? - insistiu SC.

-    Olha, esses livros são meio apócrifos, ou seja, você não encontra em qualquer lugar, não.

-    Tipo aquelas revistinhas pornográficas que a gente só acha em algumas bancas de jornais lá do Recife antigo? - perguntou Jo.

-     Isso mesmo Josinho! Você só vai achá-los em alguns lugares bem específicos. Lá perto da Universidade Católica tem uma livraria onde esses livros podem ser encontrados. Mas os frescos de Recife sabem muito bem onde encontrá-los, da mesma forma que vocês meninos, sabem onde comprar essas revistinhas de sacanagem - respondeu sorrindo.

-     Está bem, François!  Da próxima vez você nos conta este seu segredo - Respondeu M-Mentiroso, fechando aquela nossa conversa.

Nunca mais voltamos à sua casa e assim ficamos sem saber o que aqueles livros de fato continham, que para serem realmente compreendidos ou até mesmo apreciados seria necessário, obviamente, que fossem lidos, ou, pelo menos, relatados pelo próprio autor. Com o tempo, acabamos nos esquecendo daquilo que havíamos descoberto naquele dia e como não tínhamos o hábito de frequentar livrarias, ficamos sem ter a possibilidade de verificar se eles podiam ser de fato encontrados à venda e em que locais. Lembro apenas de ter visto, numa ocasião em que estive na Livro 7 procurando por um livro que havia sido recomendado pela minha escola, um único exemplar, justamente aquele que fora premiado.

Saímos da casa de François cheios de excitação diante de tudo o que havíamos vivenciado naquelas pouco mais de duas horas que ali passamos. Contudo, a nossa divertida noite ainda estava longe de acabar. Eu tinha toda uma história para compartilhar com os rapazes e eles não faziam a menor ideia do presente que iriam receber.




  Capítulo V
   Existem risadas que ecoam pela eternidade

Descemos os estreitos degraus da escada daquele velho sobrado completamente eufóricos e radiantes de felicidade. Lá embaixo, já na rua, acenamos para François que se encontrava recostado na varanda para uma última despedida, e assim que entramos na Sete de Setembro,  fora portanto do seu alcance visual, aquele estado de excitação que até aquele momento se encontrava contido, seguro por nossas rédeas, explodiu num turbilhão de risos e gritos enlouquecidos. A sorte é que não éramos baderneiros, pois do contrário, alegres como estávamos, é bem provável que saíssemos chutando algumas latas de lixo ou batendo nas portas de ferro das lojas para desopilar aquela explosão de alegria que havia tomado conta de todos nós.

-    Caráio, o que foi aquilo? – perguntou SC.

-    Meu Deus, eu precisava de um livro daqueles! – respondeu M-Mentiroso.

-    Só você? – perguntei para ele.

-   Cacete, eu com livro daqueles lá em casa, ia morrer de tanta bronha! – respondeu SC.

-   Eu mesmo vou bater uma hoje à noite antes de dormir – falou Jo com a cara que tinha um sorriso de lado a lado.

-      Mermão, tu vistes aquela foto que era toda em preto-e-branco com apenas os olhos da mulher em cores e onde ela estava com a bunda toda abertinha refletida num espelho? – Perguntei.

-   Aquela da posição ‘Seu Entrêncio”?  - perguntou SC. Foi uma gargalhada só.

-      Eu preferi o daquela mina que foi fotografada perto das pirâmides, aquela que está com aqueles trajes de dança do ventre – disse Jo.

-   Aquela com trajes de Odalisca, né? – perguntou M-Mentiroso.

-      Ela mesma, a da posição “Seu Enterrêncio”- respondeu SC, com mais uma gargalhada geral no grupo.

-    Cara, e ainda tem mais! Vocês não viram nada – falou Jo para ele.

-      Como assim? Me conta isso direito... - respondeu SC.

-   Tinha outros livros além daquele? – quis saber, ele que àquela altura estava ainda mais eufórico.

-      Não, não estou falando disso – respondeu Jo.

-   É! Por falar nisso, o que é que vocês estavam fazendo enquanto a gente estava tomando vinho lá na cozinha? – perguntou M-Mentiroso meio bravo.

-      Cara, você não faz a menor ideia do que a gente descobriu. A gente, não. Carlinhos – falou Jô, dirigindo-se a ele.

-    Vai Carlinhos, fala logo, cacete!  O que tu descobriu? – disparou SC.

-       Você ouviu o François falar no final que ele também é escritor, não ouviu?

-    Sim, realmente, lembro disso, mas...   e daí, por acaso você descobriu alguma coisa a mais sobre isso?

-       Cara, eu não fiquei lá na cozinha com vocês, pois enquanto tava todo mundo conversando, eu aproveitei para entrar no escritório do cara e o que descobri, vocês não vão acreditar. Pergunta pro jô, né Jô? – respondi voltando-me para ele, solicitando o seu aparte.

-    É verdade! – respondeu confirmando as minhas palavras.

-       O que Carlinhos descobriu é sensacional. Digo isso porque fiquei ao lado dele vigiando com medo que vocês de repente voltassem da cozinha.

-    E que foi que ele descobriu? Você chegou também a ver alguma coisa? – Perguntou SC.

-    Vi, sim!  Eu fiquei ali do lado, fora do escritório, mas Carlinhos foi me mostrando alguns livros que ele ia lendo, só que àquela altura, ele já havia descoberto muito mais coisas.

-    Conta, caráio!  Falou SC, todo excitado.

-    Vamos fazer o seguinte... – falei para eles.

-   Vamos lá pro nosso local de reunião noturno que eu conto tudo. – respondi, sugerindo que fôssemos para um lugar onde pudéssemos sentar e conversar à vontade.

Esse lugar ao qual me referi, ficava no corredor do Ed. Amazonas, prédio onde moravam SC, M-Mentiroso e Jô.

Caminhamos uns cinquenta metros e assim que entramos na Rua Martins Júnior, que era a rua onde morávamos, ao percebermos que ela estava completamente deserta, diminuímos um pouco o barulho que vínhamos fazendo pois aquela pequenina via costumava mesclar lojas com prédios residenciais e como passava das 23:00hs não queríamos que alguém aparecesse na janela para chamar a nossa atenção.

Era tanta a euforia em que nos encontrávamos quando a entramos, que do alto da varanda de casa a minha avó ouviu as nossas animadas conversas e de bate-pronto foi logo chamando a minha atenção.

-   CarMarino, que barulho é esse, menino? Vocês estão parecendo maloqueiros – bradou ela lá do alto da varanda que ficava no segundo andar do prédio onde eu morava, prédio este que ficava defronte ao Ed. Amazonas, residência dos meus amigos.

Fiquei, como de costume, tremendamente envergonhado por ter sido chamado a atenção na frente dos rapazes pois sempre que isso acontecia, eu virava alvo de inúmeras gozações.

-      Vovozinha tá brigando com o netinho mimado. Fica quietinho, viu nenezinho! – falou Jô me tirando sarro.

-    Vai se foder, fi da puta! – bradei emputecido.

Entramos no edifício e subimos para o único andar servido pelo único elevador do prédio.  Aquela comprida edificação, construída no início dos anos 1960, tinha a altura de três andares e tomava metade do quarteirão. Assim que saíamos do elevador, havia um espaço de aproximadamente uns doze metros quadrados na forma de um triângulo onde a porta do elevador funcionava como sendo a ponta deste triângulo. Em sua base, do lado esquerdo, encontrava-se um espaço vazio, que era o local onde costumávamos nos reunir. Aquele lugar, na verdade, tratava-se de um espaço praticamente morto por onde ninguém transitava. Do lado direito, começava aquele enorme corredor que atendia a todos apartamentos ali existentes. Caminhando a partir daquele ponto em direção aos apartamentos, tínhamos do lado esquerdo, blocos vazados de onde se podia observar a rua e isso permitia que aquele local ficasse iluminado durante todo o dia.

Daquele nível em que nos encontrávamos, tinha-se acesso às entradas dos apartamentos do segundo andar, que eram duplex, com o primeiro pavimento composto por sala e cozinha, e em cima ficavam os quartos e o banheiro. Ao lado dessas portas, existiam escadas que serviam aos apartamentos que ficavam no andar de baixo, o primeiro andar, e que eram menores, com apenas um quarto, cozinha integrada com a sala e o banheiro entre os dois. Todos os apartamentos que existiam naquele comprido edifício só podiam ser acessados através  daquele extenso corredor.

A única coisa que me incomodava um pouco naquele lugar onde fazíamos as nossas reuniões noturnas, era que ele ficava exatamente de frente e no mesmo nível da varanda da minha casa, e ali, todas as noites a minha avó colocava uma cadeira e ficava espreitando a rua, tendo ao seu lado a companhia inseparável da Têca, que era a nossa cozinheira e que morava conosco desde o meu nascimento. Dali de onde se encontravam, elas conseguiam ouvir perfeitamente todas as nossas conversas e por isso era necessário que falássemos baixo, mesmo porque não era permitido fazer barulho àquela hora da noite.

Assim que sentamos, ainda cheios de excitação, SC virou-se pra mim e falou quase que num tom de ordem: - Fi da puta! Agora tu vai ter que contar pra gente tudo o que descobriu.

Se eu achava que já tinha sorrido tudo o que tinha direito, estava completamente enganado. O que sorrimos juntos naquele dia, está repercutindo na minha vida até hoje.


------------------------- X --------------------------


Recostados sobre os blocos vazados e de costas para a rua, sentamos eu e SC, e à nossa direita, também recostados sobre os mesmos blocos vazados, mas do lado oposto  e de costas para a entrada do Ed. Mandacaru, ficaram M-Mentiroso e Jo.

-   Gente, foi o seguinte.... – comecei falando para os rapazes.

-    Assim que vocês foram lá pra a cozinha, eu percebi que a porta do escritório estava entreaberta e por curiosidade, para ver o que tinha ali, resolvi dar um bisoiada  - completei.

-    Mas fala dos livros que vocês encontraram, cacete! Vocês não pararam de rir até agora. O que foi de tão escroto que vocês viram? – perguntou, M-Mentiroso, que doravante vou chamar apenas de M.

-    Mermão, como descobri que ele era escritor?

-    Assim que entrei no escritório dele, vi uma máquina de datilografar e do lado dela havia diversas folhas já escritas. De repente eu me assustei quando vi na parte de cima da escrivaninha um pênis dourado apoiado sobre uma base de madeira. Tratava-se de um troféu que François havia recebido por um dos seus livros, intitulado O último pingo em Paris.

-    O último pingo em Paris, que porra é essa? E aí? – perguntou SC.

-    Cara, esse pênis dourado era, na verdade, um troféu que o François havia recebido por causa deste livro que ele escreveu, entendeu?

-    Um pênis mesmo?

-    Sim, um pênis dourado que estava apoiado sobre uma base de madeira, como te falei!

-    Cara, a partir dali,  - continuei -  depois de ter visto este troféu, fui descobrindo, um atrás do outro, os livros que ele escrevera e os títulos... vocês não vão acreditar.

Fui narrando, um por um procurando seguir a sequência em que havia efetuado as descobertas, até para poder lembra-las mais facilmente, tentando ser o mais fiel possível, tendo dificuldade, obviamente, apenas com relação aos trechos que havia lido a esmo. Vez por outra, recorria ao pequeno pedaço de papel onde havia efetuado algumas anotações para auxiliar a minha memória.

Procurei me ater à moral de cada história, pois seria impossível resgatar todos os textos, até por causa da extensão dos mesmos. Chamei a atenção dos rapazes para a bizarrice dos títulos, que eram os mais inusitados possíveis, a fenomenal capacidade que ele, François, tinha de escrever sobre diversos gêneros literários, que iam de contos infantis até ensaios filosóficos, lembrando também dos depoimentos que estavam escritos nas contracapas e orelhas dos livros, visto que estes conferiam-lhe uma autenticidade que de certa forma era inimaginável, a julgar pelos títulos, ao mesmo tempo em que procurei descrever um pouco daquilo que julguei ser o seu estilo.

Busquei também, transmitir o meu estado de espírito à cada texto curioso que lia e as inúmeras vezes que precisei deixar o escritório de tanto que ria. A cada relato que fazia, mais crescia a excitação e a curiosidade dos rapazes e a partir dali eles começaram a entender porque eu estava rindo daquela forma.

Acho que fui conseguindo recuperar boa parte daquele meu estado de ânimo inicial pois percebia-se visivelmente um crescente aumento na taxa de humor dos meus amigos. Em alguns momentos, chegávamos a rir tanto, que por várias vezes, nós, que nos encontrávamos sentados, deitávamos no chão de tanto que sorriamos.  Os nossos olhos inchados, mostravam bem o estado contagiante de uma alegria crescente que se apossava de todos nós. Chorávamos copiosamente, algumas vezes, sem conseguir parar. Do outro lado da rua, lá da varanda de casa, a minha querida ama-de-leite, Têca, falou que se continuássemos sorrindo daquela maneira, era bem possível que no dia seguinte fôssemos chorar.

Isso era típico do catolicismo, ainda muito forte naqueles tempos. Um outro dito popular, muito comum lá no Nordeste, era aquele que dizia que é muito bom comermos coisas doces pois de amarga já basta a vida. Percebe-se nessas expressões, um traço gritante do sentimento de culpa presente na Religião, sobretudo a católica. Para o catolicismo, por mais que os indivíduos expurguem os seus pecados, eles nunca estarão isentos da Culpa Original, que é aquela que carregam desde os primórdios da humanidade por terem tido a ousadia de comer do fruto proibido. Os cristãos acreditam que devem trabalhar a vida inteira, mas nunca poderão gozar do direito de se tornarem ricos. Mesmo Calvino tendo feito uma releitura dos textos sagrados permitindo que os homens pudessem enriquecer sem culpa, já que o trabalho para ele seria digno se útil ao próximo, os católicos tradicionais nunca conseguiram se livrar desse mal.

Esta situação só começou a mudar com o advento do Liberalismo. Até então, o sujeito neurótico de Freud precisava aprender a controlar os seus instintos para poder viver em sociedade. Segundo nos ensinou o pai da Psicanálise, era através do processo de simbolização que os sujeitos acabavam sublimando os seus desejos mais torpes de maneira a levar a um outro ato que fosse aceito e valorizado por todos. Com a expansão do fordismo, fazia-se necessário liberar os indivíduos, que até então levavam uma vida frugal, para que eles passassem a comprar tudo aquilo que se produzia. Era necessário libertar o sujeito neurótico, que vivia amordaçado pelas proibições, para que ele se tornasse um sujeito desejante, típico do capitalismo. O sujeito psicótico de Deleuze deu conta disso visto que o esquizo, como ele assim o definiu, está aberto a todos os ventos. Desprovidos do processo da construção simbólica, o esquizo se liga aos objetos de forma sígnica, ou seja, ele faz um apontamento direto para aquilo que lhe dizem ser o que agora os tornará feliz. E ele passará a persegui-los vorazmente.  Só que dentro desse grupo, existem muitos católicos, sobretudo no Brasil, um país que naquela época, ainda era tradicionalmente católico-apostólico-romano. Ora, o capitalismo nos diz que a felicidade está no ato de consumir. Contraditoriamente, a Igreja nos diz justamente o contrário, ou seja: que não temos direito à felicidade. Se o Cristo veio a este mundo para sofrer e redimir os homens dos seus pecados, como nós, meros mortais, ousaríamos desejar ter esse direito?  Então, a Têca estava certa ao me lembrar daquele velho ditado popular: cuidado com o que rides hoje, pois amanhã podereis chorar. De lá da varanda, ela gritou:

-       Gente! Se vocês continuarem sorrindo assim, amanhã vocês irão chorar.

-    Têca, nós já estamos chorando hoje – falei balbuciando de tanto rir.

-    Pessoal, o que mais chamou a minha atenção nos trechos que li, é que eles começavam sérios, mas depois descambavam numa baixaria de dar dó e o cara chega a descrever cenas íntimas das pessoas, essas coisas que a gente não fala pra ninguém – completei.

-    Carlinhos, pelo que tu me descrevestes, tratam-se de passagens literalmente escatológicas, né? – perguntou M.

-    Isso mesmo! – respondi.

 -   E tem mais... - continuou M - você tem que levar em conta que você só leu alguns trechos, e não os livros todos, né?

-   Verdade, - concordei com ele.

-   Por exemplo....  - insistiu M - você não sabe qual é o problema do Fiofó - falou já desabando de tanto sorrir.

-    Que fiofó? - perguntei.

-    O Resende, cacete!- e ele, M, rolou no chão rindo desenfreadamente.

-    E você, Carlinhos, também não sabe o que aconteceu...  DEPOIS DAQUELE PEIDO... - falou Jo com voz de narrador de novela e também desabou no chão de tanto rir.

-    Nem também o que aconteceu DEZ ÂNUS DEPOIS - completou SN também desabando de tanto rir.

-      Conta mais, conta mais! – falou Jo, que da missa tinha visto apenas a metade.

-      Cara, teve um livro lá que li, agora já nem vou lembrar mais o nome, que tinha um personagem hilário, como todos os que eu vi.

-      Hilário, como? - Perguntou novamente M.

-    Além daqueles nomes que falei pra vocês, Fiofó Resende, Furico Teixeira, lembra? Tinha uma tal de Joana Sassa Sá e outro que se chamava Massaranduba Cornélius.

-     Joana Sassa Sá... que porra é essa? – disparou SC voltando a deitar no chão de que tanto que ria.

-      Esse tal de Sassa Sá, não lembro bem agora, é uma bichinha que quando era criança foi apaixonado por uma garota chamada Lana. Só que essa tal de Lana, não sei porque, acabou morrendo num acidente. Dizia na história, que ele acabou virando viado por causa dessa grande decepção que teve na vida e aí ele adotou esse nome. Antes de virar bicha, o nome dele era Waldecy – concluí.

-     E aí??? – Jo quis saber mais.

-      E aí que esse cara, já adulto, tinha ficado com um tal de TOC, transtorno obsessivo compulsivo, não é isso? – perguntei, olhando para M, pois o julgava ser o mais sábio do nosso grupo.

-     Isso mesmo! – respondeu ele.

-       Pois bem! Essa bichinha vivia repetindo ao léu algumas frases que ficaram gravadas em sua mente, do tipo...  “Eu sei que fui com Lana”, ou... “Me digas Lana por que te quero Shana”.

-     Shana?  O que é isso? – quis saber SC.

-     Shana é Buceta, cacete! – respondeu-lhe Jo, de forma curta e grossa.

-    Não saquei a do cara... qual que é? – perguntou SC.

 -   Cara, ele fala isso, me parece, porque não se conforma dela nunca ter dado pra ele, acho! - respondi, e na sequência, completei.

 -   Além disso - continuei - essa coisa dele ficar falando o tempo todo 'eu sei que fui   com Lana', mostra o tamanho da sua solidão e a dor provocada pela falta dela em sua alma; ele fica falando isso como se tivesse tentando se auto-enganar, ou até preencher esse imenso vazio, falando o tempo todo que saiu com alguém, quando na verdade, não saiu nem está saindo com quem quer que seja.

-    Mermão - continuei, - o François, pelo que vi, vai fundo na alma dos seus personagens, captando os clamores mais íntimos de cada um, e mesmo quando fala dos tiques, manias, idiossincrasias, loucuras e trejeitos a ideia dele, pelo que me pareceu, é caracterizar perfeitamente a estrutura emocional dos mesmos, entendeu?

-    Olha o cara, mermão... idiossincrasia, estrutura, trejeito....  neguinho não é fraco, não! – falou Jo tirando uma da minha cara.

-    Mas Jo... – prossegui. – você entendeu? Olha só! Tem um outro cara que também tem uma mania parecida com a do Sassa Sá. Quer saber qual é? – perguntei já sorrindo.

-     Diz logo, caráio! – rebateu SC, já se preparando para rir.

-     Teve um outro personagem, eu ia falar dele, mas me lembrei de um outro agora. Só que também não lembro nem o nome dele, nem o do livro. Deixa eu falar desse cara primeiro antes que me esqueça. Essa história que li, narrava a vida de um cara que tinha uma terrível mania, não sei se a gente poderia chamar a isso de mania ou tique.

-      Um tique nervoso? – quis saber M.

-      Algo parecido.

-      Mas qual era a dele?

-      Mermão, é um negócio muito engraçado e muito esquisito.

-      Conta logo, véio! – insistiu M.

-      Esse cara tinha uma mania de falar tudo três vezes, não lembro agora direito mas era mais-ou-menos assim: se alguém lhe perguntasse uma coisa do tipo... “Onde você foi ontem?”, ele respondia... “Fui lá na Vestal, na Vesdau, na Veslau”.  Os rapazes começaram a rir mesmo sem ainda terem entendido direito as manias daquele personagem.

-     E tem mais! – prossegui. – Podia ser que a palavra a ser repetida tivesse, por exemplo, outras que rimassem com ela mas que de fato existissem. Só que, como falei acima, nem sempre havia uma que fizesse rima, e aí o cara falava qualquer coisa, contanto que completasse as três palavras, e rimassem, claro.

-      Dá um exemplo de palavras que ele pudesse repetir e que sejam palavras reais – perguntou SC.

-     Deixa eu ver se lembro de uma. Podia ser algo do tipo: “Estou precisando tomar um ar, tomar um mar, tomar um lar.”, ou... "Ela foi posar nua, posar crua, posar tua"...  só que na maioria das vezes essas palavras não existem, então ele sai dizendo qualquer coisa, como por exemplo... “Acho que vou tomar um café, um cabé, um dedé", ou... "Essa água é transparente, transpamente, transpadente" - e na sequência deitei-me no chão de tanto rir.

-      Caráio, que coisa louca essa, né gente? – falou M em tom de interrogação.

-     Maluco mesmo. Ele diz lá no livro, que essa coisa desse sujeito falar tudo três vezes era lacaniano, ou seja, que isso, essa sua necessidade de falar repetidamente as coisas, era maior que ele - completei.

-    Mas o que é isso, lacaniano? - quis saber SC.

-   Cara, não sei ao certo o que significa. Ele diz que aquilo era lacaniano porque, para o personagem, aquela necessidade era maior que ele.


Hoje sei que ao afirmar que este personagem tinha essa necessidade de falar tudo três vezes, François estava se referindo ao grande psicanalista francês Jacques Lacan. De Lacan, assim como de Reich, Freud ou Jung, ainda hoje pouco conheço, mas sei que Lacan fez uma releitura de uma famosa frase de Freud que é lida pela Psicologia do Ego e que diz que onde estava o Isso (inconsciente), o Eu deveria advir. Compreendido através deste viés, faz parecer que deveríamos reforçar o nosso Eu em contraposição ao nosso inconsciente.

Entretanto, a psicanálise vai dizer outra coisa: seremos sempre governados pelo Isso, o que levou Lacan a escrever: "Onde estava o Isso (id), deve advir o Eu (ego)". Esse nosso Eu que advém, segundo Lacan, provém do Isso e nunca vai suplanta-lo, e é nesse sentido que existe "algo maior que o Eu, e que está por detrás dele.  Ou seja: esta necessidade que aquele personagem tinha de falar tudo três vezes era algo com a qual ele não tinha como lutar, pois estava inscrita em seu inconsciente e o governava completamente e todas as vezes que ela irrompia, aquilo era muito maior que ele e nada podia ser feito.
 


- Cara, isso aí é bem verdade...  - completou Jo.

- Como assim? - perguntei um tanto surpreso.

- Veja aquele exemplo que o Juca Chaves falou no seu último programa!

- O que foi que ele disse? - eu quis saber, cheio de curiosidade.

- Ele falou que quando a mulher quer dar, meu amigo, não tem quem segure. Se o marido a prender dentro do guarda-roupas, ela o trairá com o cabide.

- Puta merda!...  é verdade. - completou M, sorrindo.



Dando sequência aos meus relatos, voltei às estranhas e estapafúrdias histórias contidas nos livros de François.


 -   Olha, tem um outro personagem dele que se chama Massaranduba Cornélius. Esse era aquele que eu disse que tinha um lance parecido com o do Joana Sassa Sá, lembram?  O coitado nunca se deu bem na vida. Toda mulher que ele arranjava, acabava lhe traindo. Só que existiu uma, que foi aquela que ele mais amou, que se chamava Renê.

-     Renê? – perguntou M.

-     É!, Renê. – respondi.

-      O que tem ela? – ele me perguntou de volta.

-     Esse cara, o Cornélius, foi terrivelmente apaixonado por essa tal de Renê. Ela foi o primeiro amor da vida dele. Eles cresceram juntos com as famílias fazendo votos de que se casariam quando ficassem adultos. Só que quando ela ficou mocinha, se apaixonou perdidamente por um caipira e fugiu de casa com ele.

-      Puta que o pariu! – falou Jo, se compadecendo com o sofrimento do Cornélius.

-     Mas e o que aconteceu? – perguntou M.

-      Cara, o sujeito nunca mais se recuperou, tanto que hoje em dia ele acabou ficando com uma mania, que muito bem poderia ser um TOC, sei lá o que poderia ser.

-     E como era essa mania, essa mandia, essa bibia? – quis saber SC, desabando num riso incontrolável. Caímos todos no chão de tanto que rimos daquela sua sacada ao parodiar o sujeito que falava tudo três vezes.

-      Cara, tudo o que ele faz, se solta um peido, se espirra, se tropeça, se tira uma meleca, se faz alguma coisa errada, sei lá, um monte de coisas....  tudo o que ele faz ou acontece com ele, ele fala... “Ah! Renê.... por que?... Por que, Renê?”, como se na cabeça dele tivesse ficado essa grande pergunta nunca respondida, uma pergunta que não quer calar e que agora ele a carrega por toda sua vida. Não é foda isso? – falei pros rapazes.

-      E tem mais – prossegui.

-      O que achei mais fantástico na narrativa que está sendo feita pelo François, é que ele tem um estilo bem legal de fazer um contato direto com o seu leitor.

-    Como assim, Renê, por que? – perguntou M, novamente caindo de rir. Não estávamos mais nos aguentando de tanto que ríamos. É bem provável que no dia seguinte fôssemos passar mal, como a Têca havia nos alertado. Mas mesmo assim continuei.

-      Tem uma hora lá no texto, que acontece uma coisa com o Cornélius e aí o François, ou seja, o escritor, pergunta para quem está lendo: “E aí, querido leitor?  Como foi mesmo que o Cornélius falou... como foi?”  Aí, ele, François, escreve... “Ah! Renê, por que?”, e na sequência fala de novo para o seu leitor como se estivesse conversando diretamente com aquele que está lendo o seu livro, e repete: “Vamos, vamos agora, todos juntos... Ah! Renê, por que?”, e repete mais uma vez...  “Não ouvi direito, por favor, fale mais alto... Ah! Renê, por que?”, e finaliza dizendo: “Agora sim! É isso aí meu caro amigo. Você entendeu direitinho, parabéns! Percebo que já sacou o nosso querido personagem. Mas voltando à gélida bovina...”

-     Gélida bovina?  O que é isso?  Perguntou Jo.

-     Voltando a vaca fria, cacete! - respondeu M sorrindo.

-      Muito bem sacado, M! - completei.

-     Cara, - voltei ao ponto onde havia parado - ele estabelece uma ponte com quem está lendo, fantástica. Eu nunca tinha visto isso! – completei.

-      Ué, mas você nunca lê! – falou M tirando um sarro da minha cara, mas que no fundo estava coberto de razão.

Aquela era a história de um homem dilacerado pela dor da saudade de sua amada que o abandonara.  Em determinado trecho, ela narra o momento em que o Cornélius, inconsolado, resolveu dirigir-se aos deuses pedindo que a devolvessem e o que obteve como resposta serviu para que criasse e adotasse aquela frase que doravante passaria a acompanhá-lo.

–      A morte é mais forte que nós – responderam os deuses.

–      Não podemos devolver o que a morte levou. Mas podemos por fim ao seu sofrimento.  Podemos fazê-lo esquecer a sua amada. Podemos curá-lo da saudade...

Horrorizado, Cornélius respondeu:

-      Não, mil vezes, não!  Pois é o meu sofrimento que a mantém viva junto de mim. - Por isso aquela expressão, “Ah! Renê, por que?” era tão vital para ele pois a mantinha ligado àquela mulher e esta era uma lembrança que deveria carregar para sempre.



-      Conta mais, Di Lulu! – falou SC.

-      Vai se foder, Gui Lalá... Altolá George! – respondi levantando a voz, e mais uma rodada de risos invadiu o ambiente.

-      No final dessa história da Renê, pude ler que quando o Massaranduba estava no seu leito de morte, um padre foi chamado para lhe fazer a extrema unção e aí esse padre, dirigindo-se ao moribundo, perguntou-lhe: diga agora meu filho, diga a Deus as suas últimas palavras.

-      E o que foi que ele disse? – perguntou SC já se desmanchando em risos, imaginando que algo de muito engraçado estava por vir.

-      Pois bem!  Quando o padre pediu para que o Cornélius proferisse suas últimas palavras, ele fez um gesto pedindo sua aproximação, e tão logo o reverendo o atendeu, o que vocês acham que ele ouviu?

-      Conta logo, caralho!!! – Falou Jo se contorcendo de tanto rir, mesmo ainda sem saber o que ouviria.

-      O Massaranduba, fazendo um esforço extremo, levantou levemente sua cabeça para próximo do ouvido do padre e disse-lhe baixinho: "Ahhhh! Reeeeenê, poooor que?", e depois... Tumba!, caiu morto – Naquele momento, SC disparou um enorme sorriso que ecoou por toda a noite, deitando-se no chão totalmente curvado sobre si mesmo, abraçando a sua própria barriga com os dois braços. Sorriu tanto, que ficou sem ar e foi preciso que o acudíssemos. Ele estava realmente passando mal. Depois que as coisas se acalmaram um pouco, eu continuei, só que antes de prosseguir estranhei quando SC levantou-se e imediatamente perguntei-lhe onde estava indo.

-    Aonde você vai, cara? - perguntei.

-  Acho que vou ali mijar, ali cagar, ali babá... - e ao proferir essas palavras, desabou no chão soltando uma risada que de tão alta, pode ser escutada por todo o prédio.  Vários psius foram ouvidos ao longe pedindo silêncio.

-     Aproveita e leva o Kit ânus... - respondeu Jo, se desmanchando no chão.

-     Leva você, seu fresco,  você que fica dando a roseleta lá nos pátios do Americano Batista! - respondeu SC fazendo alusão ao colégio onde o Jo estudava, importante instituição de ensino que fora fundada em 1906 por um missionário americano e por onde passaram personalidades famosas como Ariano Suassuna e Gilberto Freyre.

-      Cara... espera um pouco, cacete!... – pedi para que me aguardassem pois também não estava mais aguentando do tanto que ria... – Moçada, tem uma outra história que me chamou bastante a atenção pelo nome que tinham os personagens. Eles eram todos iniciados por advérbios, ou adjetivos, sei lá, formados por palavras proparoxítonas.

-   Como eram, Renê? – quis saber M, agora já um pouco mais reconstituído e já incorporando os tiques dos personagens de François.

-      Ó! Anota aí: tinha um que se chamava O Estropiado Pedro e na sequência apareciam o Encafifado Nunes, o Esclerosado Célio, o Abilolado Lúcio, o Empedernido Clésio, o Enciumado Jones e o Emputecido Mauro. Haviam personagens femininas que não obedeciam à esta regra, embora a primeira delas ainda tivesse uma característica semelhante. Eram A Ridícula Lu, também conhecida por Lalu, e a prima dela, que ai fugia totalmente deste modelo, que se chamava Lee Lourdes, e dizia a história que ela ganhara este nome porque só vestia roupas, calças e macacões da marca Lee.

-   Que coisa louca, – retrucou M, sem conseguir inicialmente entender o motivo daqueles nomes. Ele pensou por um tempo e na sequência falou: - Ah! pelo que estou entendendo, o François, ou seja, o autor, teve a ideia de já colocar no nome do personagem uma característica ou particularidade do mesmo. Você lê o nome e já traça previamente um perfil do indivíduo. Genial! – concluiu o seu raciocínio.

-    Tô te falando... o cara é foda, véio!  Eu contei a quantidade de livros que ele escreveu, não foi?  Vocês viram!

-   Isso, sem falar de que ele escreve livros de quase todos os gêneros – falou Jo.

 -   Cara, lembrei de uma outra história agora, muito engraçada - falei.

 -   Conta aí, Renê - respondeu SC, que havia desistido de ir ao banheiro.

 -   Mermão, também não vou lembrar o nome do livro onde li isso, mas se tratava de uma história que falava sobre três bichas de origem libanesa.

 -   E tem bicha libanesa? - perguntou Jo, sorrindo com ar incrédulo.

 -   Sei lá, na história tinha - respondi.

 -   Qual era o lance? - quis saber SC

 -   Eu só li um pedacinho. No livro, dizia assim: "Era uma vez três bichas libanesas que se chamavam Al Ali, Al Aqui e Al Acolá". Então, segundo relatava a história, essas bichas, quando juntas, tornavam-se quase que onipresentes.

-     Lembrei! - continuei de onde havia parado - Esses personagens faziam parte de um conto futurista do François, que não consigo recordar o nome agora, mas que lá pelas tantas dizia que no futuro as bichas iriam tomar conta do mundo.

-   Caráio! Mas como assim, onipresentes? - indagou M.

-   É que quando elas estavam juntas...  - falei já sem conseguir me segurar de tanto rir,  e continuei - ...é como se elas estivessem em toda parte...  Aqui, Ali e Acolá, entendeu? - e deitei novamente no chão me contorcendo do tanto que ria, ao que fui seguido pelos demais.

Nesse momento, lembrei de mais uma passagem que, para variar, depois de tantas coisas que li, e ainda mais de forma apressada, não lembrava ao certo onde ela se encontrava.

-   Olha mais essa! - falei meio sem ar.

-  Diz logo, cacete! - respondeu SC com lágrimas nos olhos de tanto rir.

- Tinha uma outra passagem que contava a história de duas bichinhas que eram irmãos gêmos. Um se chamava Nin Onin Oninho, e o outro Din Odin Odinho, também conhecidos por Ritinho e Cristino - falei um tanto ofegante.

- O cara ter um filho bicha, já é foda. Agora, ter logo dois de uma vez, é de lascar... - retrucou Jo sorrindo.

 -   A última, a última! Tem mais uma que lembrei agora – falei ainda tentando me recuperar do ataque de risos. Olha, tinha um outro que se chamava Rales Silubú e que tinha uma mania também muito esquisita. Contava o livro, a essa hora já nem lembro mais o nome... que esse tal de Silubú, era um sujeito extremamente perfeccionista, daqueles que não admitem cometer nenhum erro, e assim, todas as vezes que fazia algo errado, ele mesmo se autocriticava dizendo: Como você é burro, Manu!!!

-    Manu?  - Perguntou M, curisoso.

-    Sim!  Esse é o nome que ele deu a si mesmo. Então, todas as vezes que ele fazia uma cagada, ele se punia dizendo...   Manu, Manu, Manu, vai tomar no cu! – naquele momento, não só eu, mas todos nós rolamos no chão de tanto rir.

 -   Cara! - me veio à lembrança, mesmo sem parar de rir, do nome do fiel escudeiro do Ultrapeido e já fui caindo novamente no chão de tanto que ria.

 -    Ku Soto Pun Fuun!!! – SC rolou no chão novamente e por pouco não se urinou nas calças.

Não tenho ideia de quanto tempo ainda ficamos ali relembrando as incríveis passagens dos livros de François mas embora não tivéssemos relógio, tomei conhecimento da hora porque fui avisado pela minha querida avó que já se aproximava da meia-noite e que eu deveria ir para casa dormir. Não sem antes tomar a minha gemada noturna, obrigatória.

Esta sua lembrança só aguçou ainda mais a tiração de sarro dos meus amigos em cima de mim. Quando acreditávamos que já tínhamos esgotado todo o assunto, M-Mentiroso, reflexivo como sempre, teve uma sacada genial que fez com que a nossa conversa desse uma guinada de cento e oitenta graus.




Capítulo VI
Desculpem-me os menos letrados, mas filosofar é fundamental


Àquela altura, nós que já estávamos exaustos de tanto rir, começamos a mudar o ritmo da nossa conversa, afinal de contas já nos encontrávamos a altas horas da noite e mesmo sendo jovens, o cansaço do longo dia já mostrava os seus primeiros sinais.

Até aquele momento, apenas rimos ao lembrarmos dos livros e dos temas  nada convencionais escritos pelo agora conhecido, escritor François. Mas a partir daquele instante, a questão levantada por M-Mentiroso fez a conversa tomar um outro rumo, totalmente inesperado. Ele jogou no ar uma constatação pertinente, chamando a nossa atenção para o fato de que o François tinha como ponto central, em todos os seus livros, assuntos ou temas que perfaziam uma abordagem, segundo suas próprias palavras, anal. Excetuando-se ‘O último pingo em Paris’, lembrou M, todos os demais livros tinham em seus títulos, ou trechos, referências a peido, pum, bufa e cu.

-      Não sei... – começou M a expor seu raciocínio – mas parece-me que pelo fato dele ser viado, ou seja...  como ele sofreu uma alteração em seu modo natural de funcionamento...

-    Como assim? – o interpelei, querendo entender melhor aonde queria chegar.

-      É mais ou menos assim... – começou ele novamente a esboçar a ideia que tinha em mente, já que havia sido interrompido.

-    O cara, quer dizer, o homem, o macho, tem a sua zona erógena na parte da frente, na bilola... – voltamos a rir naquela hora.

-      Deixa eu continuar, cacete! – falou ele meio bravo.

-    Fala Renê, por que? – respondi, sorrindo.

-      Então! – prosseguiu ele -  a bicha, sofre de fissura, tara, atrás, no cu, entendeu?

-    Mas onde você quer chegar? – perguntou-lhe Jo.

-      Por ter sofrido essa modificação, da sua zona erógena ter se desviado da frente pra trás, a sua visão de mundo sofreu toda uma alteração.

-    Explica melhor... – falou SC.

-      Como ele tem sua zona erógena no rabo, todo o seu mundo vai girar tendo essa região como ponto de partida, entendeu?

-      Cacete...  esse gordinho tem umas sacadas fudidas! – falei, e na sequência comecei, eu mesmo, a fazer algumas lucubrações.

-      Gordinho é a puta que pariu! - respondeu ele, muito bravo.

-      Calma Renê, por que? E continuei.

-    M, isso me faz lembrar do filme, na verdade, do livro '2001 uma Odisseia no Espaço’, que li pouco tempo atrás.

-      O que é que tem um filme, livro, sei lá, de ficção científica a ver com isso que estamos falando? – perguntou ele meio raivoso.

-    Peraí, Di Luluzinho – respondi, provocando.

-      Vai tomar no seu cu, sua bicha! – respondeu, todo bravo.

-    Deixa eu falar, véio! – interrompi.

-    Fala logo! – ele parecia cada vez mais irritado.

-      Olha, lá no livro... vocês viram o filme, né? – perguntei e todos concordaram.

-   O filme não esclarece bem, mas o livro é bem preciso. Lembra quando os caras descobrem o monólito negro lá na lua, aquele que era igualzinho ao que foi descoberto na Terra há quatro milhões de anos atrás? – Todos me acenaram positivamente.

-      Sabem por que ele foi descoberto?  Porque aquela pedra, ou seja lá o que for, tinha um alto teor de minério de ferro. Foi esse fato que fez com que os cientistas o descobrissem. É que ele alterava profundamente o campo eletromagnético da Lua na região onde se encontrava.

-    Não estou entendendo onde você quer chegar – falou M.

-   Aquele monólito negro, como tinha alta concentração de minério de ferro, provocava no local onde ele estava uma alteração muito grande como falei há pouco, e foi graças à essa alteração que os cientistas chegaram até ele.  A princípio, se imaginou que ali pudesse existir uma enorme reserva de ferro.

-      O local onde ele foi encontrado – prossegui – foi na cratera conhecida por Tycho. Ela recebeu esse nome em homenagem ao astrônomo Tycho Brahe.  Quando os cientistas descobriram aquela enorme pedra encravada na cratera, eles deram o nome de AMT1, que significava Anomalia Magnética de Tycho 1.

-    Ainda não entendi onde você quer chegar, cacete! – retrucou o nervosinho M.

-     Eu estou falando a mesma coisa que você, véio!  Aquela anomalia provocada por aquela pedra no campo eletromagnético da Lua, fazia com que tudo girasse em torno daquele ponto – e completei.

-   Estou querendo dar mais embasamento à sua sacada em que você disse que como a bicha, O François, teve essa alteração, desvio, anomalia, ou seja lá o que for, modificada da parte da frente para trás, toda sua visão de mundo mudou. É como se naquele ponto, existisse um buraco negro que sugasse tudo.

-    Mas o cu é um buraco negro! – falou SC, e novamente caiu no chão rindo a ponto de se contorcer.

-    É por isso que todos os seus livros giram sobre temas anais – completou Jo, voltando a sorrir.

-     Isso mesmo! – concordei com ele.

-    Ah! agora entendi o que você está falando. É que você dá uma volta da porra pra falar uma coisa, cacete! – respondeu M, agora já esboçando um pequeno sorriso.

Por esta fala de M, dá para ver que vem de longe a minha fama de prolixo. Eu mesmo, cheguei a fazer chacota desse meu modo de ser e criei uma divertida frase que usava sempre que alguém me chamava a atenção por esta minha, digamos assim, particularidade. “Carlos, o prolixo – eu demoro mas explico”.

Neste momento, Jo, que até então havia se colocado apenas como um ouvinte atento, lembrou de um fato bastante intrigante e de certa forma pertinente.

-      Gente, isso me fez lembrar de uma coisa que certa vez ouvi minha mãe dizer.

-      Que foi que ela disse? – perguntou SC um tanto curioso.

-      Cara, vocês sabem que a minha mãe tem uma queda pelo espiritismo, não sabem?

-      É, lembro muito bem daquele dia que fomos lá naquela casa assombrada para ver aquela sensitiva baixar uns espíritos – falei demonstrando um certo ar de preocupação.

-      Isso mesmo! Aquele dia que fomos lá e a mulher te chamou na sala e falou que você era médium, lembra? – rebateu Jo, gozando do pavor que eu vivenciara numa certa e fatídica noite de inverno.

-      O que aconteceu? – perguntou SC, curioso.

-     Depois eu conto essa história pra vocês. Foi muito engraçado. O cara se borrou de medo - completou Jo, sorrindo dirigindo-se a mim já que eu fora o protagonista daquela tenebrosa história.

-      Mas diz logo o que você disse que a sua mãe falou, cacete! – interpelou M, agitado.

-     É o seguinte...   Minha mãe falou que quando um espírito encarna diversas vezes como mulher, quando ele encarna como homem, muitas vezes o sujeito acaba não aceitando essa condição e isso o leva à pratica de comportamentos desviantes.

-      Olha o cara...  o sujeito não é fraco, não! – falou SC tirando uma do Jo.

-      Não entendi o que ela quis dizer com ‘comportamentos desviantes’- perguntou M.

-      É que o sujeito, que por diversas outras vidas foi mulher, quando nasce homem, boa parte das vezes ele não se conforma e quer continuar agindo como se mulher fosse, entenderam? – concluiu Jo, com o um ar irônico.

-      Entendi...  o cara nasceu homem mas no fundo continua sendo mulher. Nasceu pra comer, mas só quer saber de dar... – falou SC já rolando no chão de tanto rir.

Rimos todos novamente e assim que nos restabelecemos, continuamos debatendo aquela questão colocada pelo nosso querido nervosinho M, agora reforçada pelas lembranças que o filme 2001 me trouxera, mais as colocações espirituais feitas pelo Jo.  Lá pelas tantas, alguém lembrou que dentro deste contexto, o Valentin acabava funcionando como contraponto à visão do seu amigo François, já que a sua tara por bundas, também provocava um certo desvio em sua conduta, e dessa forma, sua visão de mundo passava a ser perpassada por esta disfunção.

Os dois, Valentin e François, tinham obsessão por ânus, e não importa se eram diametralmente opostos, o fato de viverem obcecados por um aspecto que era importante e central em suas vidas, fazia com que seus comportamentos e até mesmo a maneira como se colocavam no mundo, acabasse sendo regidos por ele.  No fundo, tudo para aqueles dois sujeitos, de certa forma, passava a girar em função disso.  Esse foi o entendimento a que chegamos naquela ocasião, e essas conclusões a que fomos levados, acabaram suscitando novas ideias que fizeram com que começássemos, a partir daquele ponto, a elaborar uma visão de futuro. E essa visão que compartilhamos naquele dia não era nada animadora.



Capítulo VII
O divertido Felipe e suas loucas profecias

Depois de termos chegado àquelas conclusões sobre as idiossincrasias do escritor François e do seu amigo e também escritor e fotógrafo, Valentin, sujeito que até aquele dia sequer conhecíamos, objetivando tentar aprofundar aquelas nossas divagações, procurei trazer à baila algumas palavras que recentemente havia escutado do Felipe, aquele  estudante de filosofia a quem me referi antes, porque levantavam questões que fugiam ao lugar comum. Por ser uma pessoa que tinha um ponto de vista diferente do convencional, muitas vezes ele era ridicularizado pelos seus colegas estudantes de outras disciplinas.

O Felipe passara a ser o alvo preferido dos demais hóspedes, sobretudo pelos assuntos que costumava debater às refeições e pelas posições que defendia.  Os outros integrantes, residentes ou não, daquela nossa hospedaria, eram muito ecléticos. Ali moravam, ou apenas faziam suas refeições, estudantes de medicina, de engenharia ou advocacia, além de um outro grupo de pessoas que exerciam profissões as mais diversas, dentre elas um delegado de polícia, um dentista, o gerente de um grande magazine à época, a loja mais moderna da cidade, a Viana & Leal que ficava na Rua da Palma, e o gerente da sapataria A esquisita, entre outros.

Tratavam-se de pessoas a quem poderíamos chamar de comuns, que não estavam habituadas com as questões levantadas pelo nosso amigo, que carinhosamente, ou não, recebera o apelido de O profeta, por causa da sua mania de predizer o futuro. Não eram raras as ocasiões em que os seus colegas tentavam fazer chacotas das suas ideias, mas, mesmo quando isso acontecia, nem sempre elas logravam êxito dada a riqueza dos seus argumentos que ele contrapunha como resposta e que acabavam provocando um verdadeiro ‘cala-boca’ na grande maioria, embora suas explicações nem sempre soassem muito convincentes pelo fato deles não conseguirem alcançar o seu raciocínio.

Filosofia era uma disciplina normal do ensino médio, assim como fora o Latim, até ser abolida, por motivos óbvios, dos currículos escolares depois do golpe militar de  1964 porque elas faziam pensar, e pensar era algo que os militares não estavam habituados e que não gostavam que ninguém mais o fizesse.

Como eu nunca tinha tido um contato direto com esta disciplina, era natural que sentisse dificuldade sempre que alguém fizesse uma reflexão mais profunda, fosse sobre que assunto fosse, e em se tratando de temas estritamente filosóficos, ainda mais. Entretanto, como sempre fui movido por uma curiosidade extremada, e por estar sendo levado a fazer várias elucubrações em função dos estudos que a Física Quântica estavam me trazendo, sentia os meus sentidos se aguçarem todas as vezes que eventualmente me deparava com alguém que fosse detentor deste conhecimento, para mim, àquela idade, ainda totalmente novo.

Sérgio e Felipe foram as primeiras pessoas com quem tive contato, que me trouxeram discussões e temas abordados pelos mestres da filosofia, além de C-Zinho, amigo da Sete que era apaixonado por Sartre.  Sérgio, era um sujeito tremendamente estranho, cheio de deficiências físicas que chamavam a atenção das pessoas, como um lado da cabeça que era maior que a outra, perna mais comprida que a outra, etc, além de ser bem mais velho que todos nós, garotos que transitavam por aquelas bandas. A esquina da Sete de Setembro fazia parte do percurso que ele fazia da Praça Maciel Pinheiro, ponto inicial dos ônibus da Zona Sul, local onde morava, para a Fafire, faculdade onde ele lecionava filosofia.  De tanto passar por aquela esquina e nos ver ali reunidos, acabou um dia parando e puxando conversa conosco, e não demorou a se tornar mais um elemento daquele imenso grupo.  Através deles, novas reflexões começaram a me ocorrer fazendo descortinar outros horizontes nunca antes imaginados.

Certo dia, à mesa, Felipe, de forma divertida, chocou a todos quando falou que no futuro o mundo ia virar “Gay”.

-      De onde você tirou isso, meu amigo Profeta? – perguntou Humberto, um estudante de medicina. Havia um tom de cinismo em suas palavras.

-    É isso que vocês ouviram! – falou ele sorrindo, se divertindo com o furor que aquela polêmica frase havia causado nos ali presentes.

-      Explica isso pra gente, ó grande Profeta! – perguntou o Dr. Laerte em tom de escárnio, mas mostrando em seu semblante um ar um tanto cético.

-    Vocês me deixariam fazer uma pequena explanação das minhas ideias?

-   Claro! – concordaram todos, até mesmo porque sentiam que alguma coisa de interessante, acreditassem ou não, seria dita por ele.

Vou tentar aqui me ater ao máximo do que lembro dos argumentos colocados por Felipe para defender a afirmação que fizera.

X



No futuro, o mundo vai virar Gay.  As Bichas deixarão de ser exceção para se tornarem regra, e, acreditem-me, vai ser chique ser veado.  A opção sexual não vai depender do sexo que o garoto nasceu, se é  macho ou fêmea, menino ou menina. Essa criança vai escolher se será um ‘penetrando’ ou penetrado’, ou os dois, ainda jovem, e os seus pais irão aceitar isso com naturalidade.  Não pensem na ideia que temos hoje: uma bicha sendo comida por um machão, até mesmo porque esses machões são verdadeiras bichas enrustidas.  Vamos ter bicha com bicha, o casamento entre eles vai se tornar algo natural, e até poderão receber o aval jurídico para adotarem uma criança se assim o desejarem.

Uma menina, quando ainda criança, perguntada pelos pais sobre o que será quando adulta, dirá que desejará ser empresária.  - E em que ramo você irá atuar, minha filha? - Perguntarão os pais.  E ela responderá que desejará montar uma ‘sapataria’. O menino, por sua vez, vai desejar também ser um empresário, só que ele irá preferir administrar uma granja, onde vão existir milhares de ‘pintinhos’.  Sexo, não vai ser uma questão de gênero. Vai ser opção e as pessoas do mesmo sexo poderão se casar e até adotar filhos. Vai ser uma verdadeira ‘putaria Franciscana'.  

Na verdade, no fundo, no fundo, o que vai acontecer, é que o mundo vai sacramentar a putaria, normatizando-a, ou seja, tal qual já vemos no Direito Trabalhista, por exemplo, onde existem Leis para regular a relação entre empregadores e empregados, fazendo-os parecer que eles competem em mesmo pé de igualdade quando de fato apenas estão revestindo de legalidade a Exploração daqueles que são os donos do Capital contra aqueles que nada têm, visto que os que detém os meios de Produção, mesmo quando perdem algum funcionário, podem repô-lo facilmente já que existem milhares de desempregados querendo ocupar aquela vaga e aceitando até valores mais baixos, enquanto um trabalhador, por outro lado, talvez nem consiga encontrar um novo emprego, da mesma forma, a putaria vai acabar sendo legalizada, fazendo com que se instituam normas jurídicas para também revestir de legalidade toda a escrotidão, pois, como sabemos, as sociedades são dinâmicas, mudam o tempo todo, e as leis precisam mudar para se adaptarem à essas mudanças. 


As pessoas vão se irritar se no meio do caminho encontrarem alguém morto e se essa morte a estiver prejudicando, fazendo-a atrasar seus compromissos, por exemplo. Será o ápice da banalização do mal e da violência, como já nos havia dito Hannah Arendt.  No final das contas, o certo é que a sociedade vai 'Civilizar Sodoma e Gomorra'  e aí, meus amigos, a putaria vai estar instituída de vez e assim será aos olhos de todos, considerada normal

O mundo, tal como hoje o conhecemos, vai estar muito diferente daquele que vivemos nos dias atuais. As cidades, ou megalópoles, vão estar tão cheias de gente e as pessoas vão estar tão irritadas umas com as outras pela batalha diária que vão ter que enfrentar pela sobrevivência, que se por acaso alguém for atravessar a rua e uma outra pessoa se interpuser em seu caminho, é bem provável que ela deseje empurrá-la em direção os carros se isso a estiver atrapalhando. Em algumas cidades, iremos ter mais carros que gente, tornando as cidades acolhedoras para os automóveis, mas inteiramente hostis para os seres humanos. Os indivíduos vão passar mais tempo dentro dos seus carros e no trabalho, do que dentro de sua casas com as sua famílias.

Todos os valores serão esquecidos, ou irão mudar substancialmente, e as relações simbólicas desaparecerão.  Os indivíduos irão voltar-se apenas para si mesmos e o espaço público irá desaparecer, pondo fim ao cidadão, sujeito de direitos e também de deveres, e as questões políticas não terão grande relevância. O discurso público vai ser amplamente esvaziado de substância moral e espiritual. 

Contudo, não pensem que eles estarão preocupados, já que os confortos da vida moderna irão entretê-los a ponto de fazerem esquecer da ação dita política. O hiperconsumismo irá se encarregar de atender às suas necessidades, mesmos que essas necessidades não constituam seus verdadeiros desejos.  As suas mentes  vão estar totalmente colonizadas e eles não serão nada mais além de mão de obra docilizada voltada para o mercado de trabalho, e isso, quando tiverem trabalho, pois estes vão estar escassos e aqueles que estiverem empregados, vão estar sob tão fortes pressões competitivas que muitos entrarão em depressão e é possível que os casos de suicídio aumentem.




X 

Aquelas suas palavras soaram como uma verdadeira bomba, inclusive em mim, sobretudo pelo fato de que as julguei tremendamente pertinentes, embora não gozasse de estofo suficiente para poder crê-las como sendo argumentos que pudessem ser considerados coerentes, afinal de contas não tínhamos elementos, acredito, suficientes naquele nosso momento histórico, que fossem capazes de embasar o seu raciocínio. Era bem provável que ele, Felipe, em virtude dos pensadores que estava estudando e até pelas possíveis reflexões que provavelmente alguns dos seus professores houvesse comentado em classe, tivesse razão para fazer uma afirmação daquelas.

-    Isso é um verdadeiro absurdo! – Falou novamente Humberto, em tom de escárnio.

Pude perceber também, até pela forma exasperada como se colocou, um certo ceticismo raivoso em suas palavras, atitude que fora seguida pelos demais que ali se encontravam. As discussões que se seguiram depois daquelas suas, eu diria, proféticas palavras, visto que muito do que foi dito corresponde à realidade que estamos vivenciando hoje,  descambaram para uma verdadeira anarquia com piadas e gozações de todo tipo.

Contei aquela passagem para os rapazes com o objetivo de colocar mais lenha nos questionamentos que inicialmente havíamos levantado sobre a disfunção do François.  Passava da meia-noite e a madrugada dava os seus primeiros passos, e era natural que o cansaço começasse a se fazer visível em todos nós, embora nem por isso houvéssemos abdicado de nos divertir, mesmo diante daqueles temas polêmicos e controversos.

-      Mas de onde esse Felipe tira essas ideias? – perguntaram, quase que ao mesmo tempo, M e Jo.

-      Olha, cara, pelo que eu venho escutando dele quase todos os dias, seja no café da manhã, no almoço ou na hora de jantar, que são os momentos em que todos vão para sala fazer suas refeições, ele tem tirado essas ideias sobre o futuro da humanidade, de que as coisas vão desandar e tudo o mais, das teorias de Hobbes, de Marcuse, cara que ele fala muito, de Foucault, de Malthus, de um tal de Guy Débord, que lançou um livro bombástico agora em 1968 chamado ‘A Sociedade do Espetáculo’, e dos filósofos da Escola de Frankfurt, entre eles Adorno e Benjamin.

-      Mas você conhece essas teorias? Do que ouviu falar? – quis M saber mais a respeito.

-      E esse tal de Hobbes? Eu já ouvi falar – perguntou Jo.

-      Segundo eu ouvi o Felipe comentar, o Thomas Hobbes, autor de um  livro chamado Leviatã, estudando a natureza humana, chegou à conclusão de que cada homem viveria guiado pelo princípio do benefício próprio, e aí ele passaria a ver o outro como objeto de ódio porque este outro estaria sempre se interpondo em seu caminho, lhe atrapalhando, e então, a solução que Hobbes teria encontrado seria a da figura de um Estado artificial que estivesse acima de todos, criando leis e regras que permitissem os homens viverem em sociedade.

-   A lei tem de ser coercitiva senão a gente vai querer invadir o espaço do outro e aí o mundo voltaria à barbárie – falou M com um semblante bem introspectivo e sério, mas não parou por aí.

 -  Olha só: esses dias o meu professor de História falando numa das aulas lá, afirmou que depois do Hobbes veio o John Locke, que foi um filósofo inglês que disse que essa coisa do Leviatã, este ser artificial que está acima dos seres naturais, nós, diga-se de passagem, não estaria assim tão acima do bem e do mal, não. Segundo Locke, contou-nos o meu professor, este Ser, que estaria representado pela figura dos Estados, ou governos, teria um dono e estes sempre seriam a classe dominante de cada época. Só para concluir, lá pelas tantas, esse meu professor nos falou que neste sentido a Democracia é uma ilusão.

-    Caramba M! Uma hora tu vai ter que me falar mais sobre isso – completei e na sequência voltei a aquele discurso que o Felipe tinha feito há alguns dias e que provocou o maior reboliço lá em casa.

-    Olha! Mas não pensem que esse sujeito, o Felipe, é bobo, não! – completei.

-    Como assim? – perguntou SC e na sequência falou:

-    Hoje, por exemplo, Carlinhos, percebi que o cara é um tirador de sarro, mesmo ele falando aquelas coisas lá do tal de Nietzsche que eram bem malucas – completou.

-    Você sacou? – perguntei para SC.

-     Sim! Claro!

-    Pois é!  Nesse dia, depois que todo mundo ficou agitado, pensa que o cara ficou de bobão na história? Ficou nada! Sabe o que ele falou no final para a ira de todos?

-      Diz aí! – quis Jo saber.

-      Ele disse assim: ‘Escreve aí o que estou falando. No futuro, um filho ou neto seu vai ser viado e vai se virar pra você dizendo que quer casar com aquela outra bichinha amiga dele”.

-      Cara, veja bem – falou M com ares introspectivos.

-      O que foi – eu quis saber.

-      Você falou que o Felipe tinha dito que no futuro não teremos mais bicha se relacionando com machões, não foi?

-      Falei, sim! – respondi.

-      Só que estou lembrando agora que isso de certa forma já foi previsto pelo François – completou.

-      Como assim?  Não estou entendendo o que você está querendo dizer – respondi.

-      Cara, você não nos contou de um livro do François que ganhou um prêmio de literatura? – perguntou M.

-      Disse, sim! Por que? - perguntei, curioso.

-      Nesse livro que ele ganhou, sei lá, o Pinto de Ouro, que se chamava O último pingo em Paris, o François já antecipa isso quando narra o romance vivido pelas bichas Di Lulu e Gui Lalá – concluiu M o que tinha em mente. Isso, sem contar aquela outra história que você narrou das bichas libanesas, não  foi mesmo?

-     Verdade, você tem razão! Naquelas histórias já se fala do romance entre duas bichas.  Bem lembrado M – acenei positivamente para ele.

-      Não...  era só isso o que queria dizer - finalizou.

-      Mas pode concluir – ordenou-me.

-      Cara, me diz uma coisa! – falou SC que parecia um tanto intrigado.

-      Fala! – respondi.

-      Como é que funciona a relação de duas bichas? – perguntou ele.

-      Não entendi! - respondi meio perplexo pois não estava compreendendo muito bem a sua pergunta.

-      Quem come quem?  São duas bichas, ora.... – falou ele com a cara mais cínica do mundo.

-      Sei lá, rapaz!  Eles devem fazer sorteinho – respondi já me esborrachando de rir, e depois prossegui.

-      Um deles diz assim...  ontem foi você quem deu, não foi? Então...  hoje sou eu que quero dar – falei com trejeitos afetados para entrar no personagem.

-      Aí um deles diz assim...  só dou se você me contar uma piada suja e pesada – se intrometeu Jo na nossa conversa, e na sequência concluiu.

-      Eu conto, sim, diz a outra bicha... e em seguida fala:  um elefantinho caiu na lama – rimos todos novamente e assim permanecemos por mais um bom tempo.


-      Com essas conversas nós acabamos nos desviando do que você estava falando lá atrás – falou M, e parecendo como se estivesse me dando ordens, falou:

-      Continue!

-      Então... voltei ao lugar de onde tinha parado... – e prossegui – ...lá no final, pra arrebentar os caras, ele, o Felipe, se saiu com a frase de um filósofo alemão, um tal de Fuerbach. Ah!, lembrei. Feu-er-bach, Feuerbach, é isso... onde ele diz...

   "Nosso tempo, sem dúvida, prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser.”

-      Puta que o pariu... ele falou isso? Depois eu queria entender melhor o porquê dele ter dito isso, você sabe? – respondeu SC.

-     Cara, ele disse tudo aquilo e depois se retirou da sala. Na verdade, eu também não compreendi muito bem, pois ele falou isso depois de ter dito um monte de coisas que nem vou lembrar direito agora, mas que pelo que me parece, tinham a ver com o fato de que as coisas estavam sendo substituídas pelas suas imagens e a forma como o olhar das pessoas estava sendo disciplinado para enxergar, não a realidade em si, mas aquilo que estava sendo colocada em seu lugar.  E olhem que o cara, esse tal de Feu-er-bach, disse isso há mais de cem anos atrás.  Ah! Lembrei de mais uma coisa que o Felipe disse antes de se retirar. Ele também falou que no futuro vai existir, aí eu não entendi direito, um tipo de algoritmo computacional que você vai dar, teclar, sei lá, um tipo de indexação que vai fornecer a lista de noventa e nove por cento das bichas.

-      Como assim? – perguntou SC, voltando a sorrir.

–    Cara, isso eu não sei te dizer - respondi.

Sobre esta última afirmação, fazendo uma possível conexão com a realidade de hoje, talvez tenha similaridade com a figura de um hashtag, com algo do tipo... #lulu, ou para aqueles que frequentam as paradas do orgulho gay,  #orgulhosolulu.

-      Te cuida SC! Cuidado com os filhos e os netos que vai ter para não se decepcionar. Já pensou tua neta dizendo pra você que quer fazer aranha-com-aranha? – foi uma gargalhada só.

-      Vai se foder... vai ser a tua que vai dizer isso. Ela vai querer montar uma sapataria com o nome A Esquisitona – e todos nós, que naquele momento já havíamos diminuído o ritmo, voltamos a sorrir desenfreadamente.

-      Bem, pessoal, vocês têm aula amanhã só à tarde. A minha é logo de manhã cedo.  Vou nessa! – falou M, já se levantando.

-      É, tá na hora, vamo nessa! – repetiu SC.

-      Vai tomar sua gemadinha, Moli Colino, vai! – falou Jo, tirando um último sarro da minha cara.

M saiu andando por aquele comprido corredor cantarolando a marchinha de frevo escrita pelo nosso querido François, e quando chegou naquele ponto do refrão em que a canção diz...  "Então já vou detonar / pô, pô, pô...",  ele arqueou a sua bunda gorda e disparou um sonoro, comprido e rasgado peido. 

Aquele seu gesto, teve de nossa parte, uma resposta quase que instantânea. Falamos praticamente todos ao mesmo tempo: "Pelo som dessa buzina, esse carro já parou em minha oficina!".   A reação dele também foi imediata: "Vão todos vocês tomarem nos seus digníssimos cus!". 



Capítulo VIII
   Sorrir, é o melhor remédio


Fomos para as nossas casas exaustos de tanto que sorrimos naquela noite, mas não só isso: estávamos exaustos de tanta felicidade, se é que alguém pode se cansar de ser feliz.

Há um provérbio popular chinês que diz que a criança ri mais que o jovem, que por sua vez, ri mais que adulto, que ri mais que o idoso. Sorrimos naquele dia, o que talvez nunca houvéssemos sorrido antes e que, acredito, nunca mais conseguimos sorrir depois. Não com aquela intensidade, embora, naquela idade, quase tudo nos fizesse sorrir.

Nós vivíamos como se nossos rostos e bocas tivessem sido feitos para parir sorrisos, tal qual uma mulher vem preparada para parir filhos. E como o provérbio parece sentenciar, a verdade é que com a idade temos a impressão de que vamos perdendo a nossa capacidade de sorrir. Por isso, acho que ser sábio é quando a gente reaprende a rir daquilo que no passado nos fez sorrir, reinventando a vida para que ela seja repleta de sorrisos, a despeito da proximidade da morte e das tristezas e decepções que esta vida eventualmente tenha nos causado.

O filósofo Nietzsche, a quem fomos apresentados àquela noite pelo nosso amigo Felipe, falou várias vezes sobre a importância do humor, que considerava uma tábua de salvação para os desgostos que a vida nos oferece: “O homem sofre tão terrivelmente no mundo que se viu obrigado a inventar o riso.”

Dizem que ele chegava a duvidar de qualquer afirmação apresentada com excessiva seriedade: “Deveríamos tachar de falsa toda verdade que não tenha sido acompanhada de um sorriso.”

A medicina, que tanto evoluiu da época da nossa juventude para cá, afirma ter constatado que existem diversos benefícios terapêuticos provocados pelo humor.

Vejamos alguns desses benefícios:

•      Atua como analgésico.
•      Melhora a circulação e regula a pressão arterial.
•      É um exercício aeróbico: cinco minutos de risadas equivalem a 45 minutos de exercícios leves.
•      Massageia os órgãos internos.
•      Reforça as defesas e previne doenças.
•      Alivia o estresse e a fadiga.
•      Libera endorfina, o hormônio da felicidade.
•      Promove o alívio muscular e o bem-estar.
•      Ajuda a relativizar os problemas.

Hoje me pergunto, se aquilo que vivenciamos em nossa juventude, assim o era porque havia ‘prazer’ em tudo o que fazíamos e vivíamos.  O grande educador Rubem Alves certa vez também se fez uma pergunta parecida e essa foi a resposta a que ele chegou.


"Era PRAZER? Era. Mas era mais que prazer. Era alegria.
A diferença? O prazer só existe no momento.
A ALEGRIA é aquilo que existe só pela lembrança.
O prazer é único, não se repete. Aquele que foi, já foi. Outro será outro. Mas a alegria se repete sempre. Basta lembrar."


Sinto uma enorme saudade e alegria daqueles tempos idos em que éramos felizes e ninguém estava morto, como certa vez disse Fernando Pessoa, e a saudade, nos diz Rubem, é a inclinação da alma na direção das coisas amadas que se perderam. No fundo, onde mora a saudade, não há esquecimento, porque lá só moram as coisas que foram amadas. E o amor não suporta o esquecimento”, disse ele.

Dias como aqueles que compartilhamos no passado, vão ficar guardados para sempre em nossas memórias e em nossos corações, e se irão permanecer guardados, lembrados e amados, serão eternizados, pois, como disse Adélia Prado, “O que a memória ama, fica eterno”.














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COLEÇÃO DE FOTOS - Locais por onde este conto se passa






                     A esquina da Rua Sete de Setembro com a Av. Conde da Boa Vista, a esquina mais charmosa da cidade...


 








  Minha residência na Rua Martins Jr.













                                                    Rua Martins Jr.








Rua Corredor do Bispo - vista do Colégio Esuda






Esquina da Rua Gervásio Pires com a Av.Conde da Boa Vista.



 Colégio Marista - Av. Conde da Boa Vista





Av. Conde da Boa Vista próxima à Rua do Hospício




Av. Conde da Boa Vista, visão da esquina da Rua Sete de Setembro




Rua Sete de Setembro vista por outro ângulo



A famosa esquina da Rua Sete de Setembro com a Av. Conde da Boa Vista.



 Vista da porta do Ed. Ouro - Rua Sete de Setembro



Minha residência vista por outro ângulo.

 Corredor do Ed. Amazonas, nosso local de reunião nos finais de noite em dias da semana.
 Nosso local de reunião visto por outro ângulo.

Corredor do Ed. Amazonas


Rua Martins Jr. - vista do Ed. Amazonas por outro ângulo.

Residência de François Hold 
 Rua Imperatriz, esquina com a Bulhões Marques











































































 











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