Uma tarde em Woodstock


“Se eu tivesse de resumir o século XX, diria
que despertou as maiores esperanças
 já concebidas pela humanidade
e destruiu todas as ilusões e ideais".
Yehudi Menuhin (músico)


Saímos de casa naquela linda tarde de sábado para assistirmos ao documentário que havia sido feito sobre o Festival de Woodstock, realizado em agosto de 1969.  Havíamos esperado mais de dois anos para ver/ouvir tudo o que tinha acontecido naquele que foi considerado o maior festival de todos os tempos. Estávamos eufóricos pois aquela energia que emanou daquele encontro ainda se fazia presente e de uma forma ou de outra nos contagiava a todos.

Partindo do nosso velho quartel general na esquina da Rua Sete de Setembro com a Av. Conde da Boa Vista, não andamos mais que duas quadras para chegarmos à Rua do Hospício, local onde ficava o mais novo cinema da cidade, o Cine Veneza.  Sabíamos que iríamos assistir a um espetáculo de som e imagem, pois aquela nova sala de entretenimento estava dotada do que havia de mais avançado naqueles tempos.

Antes, porém, nos preparamos de forma a absorvermos tudo o que se desenrolara naqueles três dias que entraram para a história como sendo o maior aglomerado de jovens reunidos em um único local para festejar a paz, o  rock e o amor, lema daquela geração. E como foi essa preparação?  A única coisa que posso dizer a esse respeito é que fomos para o cinema com a cabeça bem feita.

Vale ressaltar que aquele festival, acontecido alguns anos antes, perturbou de tal forma as classes governantes americanas que pouco tempo depois eles começaram a repensar novas estratégias de dominação. Não estaria totalmente incorreto afirmar que as bases da política econômica Neoliberal estavam surgindo ali. 

De acordo com os pensadores Pierre Dardot e Christian Laval, professores da universidade Paris-Quest Nanterre-La Defende, o Neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e uma norma geral de vida. Ele pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência. Ainda segundo esses renomados professores, a norma fundamental do Neoliberalismo é a competição mortífera modelando tudo na vida social introjetada na subjetividade dos indivíduos pelo capital e seu mercado. 

Segundo o filósofo francês Pierre Bordieu, o programa neoliberal "tende globalmente a favorecer a ruptura entre a economia e as realidades sociais". Seria "um programa de destruição metódica do coletivo", isto é "de todas as estruturas coletivas capazes de interpor obstáculo à lógica do mercado puro."  E se há alguma palavra que melhor defina aquela enorme reunião de jovens, esta palavra é “coletivo”. E põe coletivo nisso. Foram mais de quinhentos mil jovens reunidos em um único lugar.  

Para a classe dominante, isso foi simplesmente assustador. Atualmente, podemos reunir um aglomerado de garotos três vezes maior que nada acontece. Os jovens de hoje foram todos cooptados por este sistema hegemônico que agora nos governa. Não existe mais risco algum.

Entretanto, para aquela época, encontros como aquele, que acontecera entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969 no estado de Nova York, com certeza, não poderiam mais se repetir.  Vale lembrar que o mote daquela nossa geração estava expresso em uma palavra: transgressão, conceito esse que hoje está muito deturpado e desviado totalmente do sentido que lhe atribuíamos naquela época. Obviamente que isso incomodava os governantes de uma forma geral.

O jornalista e escritor britânico Anthony Sampson nos falou em seu livro O Homem da Companhia, das frustradas tentativas ocorridas nessa época, empreendidas pelas empresas com o intuito de atrair a nova geração de estudantes. Assim ele escreveu:

 “As tentativas de humanizar as grandes empresas não foram suficientes para atrair uma nova geração de estudantes que rejeitavam os benefícios sociais delas e as consideravam destruidoras de meio ambiente, opressoras das minorias e manipuladoras da demanda por meio da propaganda e do patrocínio.  Eles estavam com muito menos medo do desemprego que seus pais e desiludidos com o materialismo e a dependência da "sociedade de consumo”. Como explicava Herbert Marcuse, seu filósofo predileto: “As pessoas se reconhecem em suas posses; elas encontram sua alma no automóvel, no aparelho de som, na casa de vários níveis, nos eletrodomésticos”.   Os estudantes temiam ficar presos na vida empresarial e procuravam estilos de vida e valores alternativos para dar sentido à existência.  Os mais rebeldes ficaram fascinados com a ideia de uma contracultura totalmente liberada das pressões industriais e que permitisse uma expansão criativa da mente humana -- com novas aventuras em sexo, drogas e vida comunal --, uma visão de fuga perpetuada no filme de Dennis Hopper  Easy rider (Sem destino) , de 1969”.

Fascinados com essas possibilidades acenadas pela contracultura, fomos ao cinema buscar mais elementos que nos possibilitassem compreender melhor todos aqueles acontecimentos marcantes que estavam ocorrendo, não só no mundo, mas também em nosso país, que, apenas lembrando, estava envolto em uma ditadura ferrenha. A revolta estudantil, acontecida alguns anos antes, relatou o historiador Eric Hobsbawm, “serviu de advertência, uma espécie de memento mori para uma geração que quase acreditava que tinha resolvido os problemas da sociedade ocidental para sempre”.  Essa era a revolução que estava a caminho, alertou, em 1970, Willian O. Douglas, juiz da Suprema Corte dos EUA entre 1939 e 1975: “A busca dos jovens de hoje é por meios e modos de fazer a máquina – e a vasta burocracia do Estado empresarial e do governo que dirigem essa máquina – uma servidora do homem”.  Estava dado o alerta.

Esse emaranhado de ideias se fundiam num amálgama indivisível em nossos corações e mentes.  Obviamente, que pela idade que tínhamos esses conceitos ainda não eram tão claros assim. Essas rebuscadas análises só viríamos a vislumbrar muito tempo depois, mas dentro de cada um de nós, embora ainda não estivessem muito bem elaboradas, elas já se faziam presentes, mesmo que ainda de forma embrionária.

Deixando todas essas questões mais profundas de lado, vale ressaltar que naquela tarde teríamos, na verdade, um grande momento de confraternização, e não só entre nós, mas entre todos os jovens daquela nossa geração.  Outra vez, uma enorme quantidade de garotos se reunia para prestigiar um grande evento e como a nossa pequena cidade não tinha sido o palco daqueles acontecimentos históricos, era daquela forma que tínhamos contato com eles: através do cinema.  Havia sido assim com o filme Let it Be, que mostrou a última vez que Os Beatles haviam tocado juntos, e agora não seria diferente.

A cidade estava alegre, festiva e parecia comungar com as nossas almas tal era o esplendor de suas luzes que pareciam estar vibrando em consonância com os nossos pensamentos e sentimentos.

Em 1968, Henri Lefebvre introduziu o conceito do “direito à cidade”. Ele advogava o “resgate do homem como o principal protagonista da cidade que construiu (…) o ponto de encontro para a vida coletiva.”  A sensação que guardo em minhas memórias era que Recife, naqueles anos idos, nunca nos negou este direito. Como uma ágora que agregava a expressão máxima da esfera pública, ela parecia estar sempre em comunhão com aqueles que a habitavam e disposta a oferecer o devido reconhecimento pelo papel de protagonistas que desempenhavam em suas próprias vidas, e naquela linda tarde não estava sendo diferente. Com as suas ruas apinhadas de gente, o clima de intimidade que se configurava entre elas era tão grande que tinha-se a impressão de que flanavam de tão leves, embora tivessem destinos certos.  Realmente, naquele dia, nos sentíamos como sendo os verdadeiros protagonistas daquela cidade.

Eu e os meus amigos havíamos sido contagiados por aqueles devaneios mágicos que pairavam no ar e, acreditem-me, não havíamos ficados imunes ao lema daquela geração: sexo, droga e rock and roll, e falo isso em todos os sentidos.  Desses três itens, apenas o sexo estava, pelo menos naquele momento, relegado ao segundo plano. Os demais, estavam ali presentes e fariam parte daquele dia como talvez nunca tivessem feito antes.  Respirávamos música e o mais puro Rock and Roll. As portas das nossas percepções estavam totalmente esgarçadas, abertas à experiências, fechadas à conjecturas. Éramos puro deleite.

Ao chegarmos próximo ao cinema, percebemos que seria difícil trafegar pela Rua do Hospício, tamanha era a quantidade de gente que por ali circulava, chegando a interditar praticamente toda a circulação dos carros entre o Colégio Carneiro Leão e a Faculdade de Direito, que mais pareciam estar em dia de aula, tal era a quantidade de jovens que na frente delas se agrupavam. Eles formavam pequenas rodas fumando os seus baseados e conversavam tão alto que pareciam querer rivalizar com os riffs das guitarras que logo iríamos ouvir. O cheiro que pairava no ar era tão forte que tínhamos a impressão que ficaríamos meio malucos só de caminhar entre eles. A fila para comprar ingressos, então, estava enorme, ultrapassando o espaço onde ficava a entrada do cinema e chegando quase à esquina da Rua do Riachuelo.  Naquele instante, um repentino sentimento de preocupação me afligiu e eu acabei falando isso para SN...

-   Espero que hoje não nos desapontemos como naquele fatídico dia do filme dos Beatles, lembra?

    -      Pô, cara, nem me fale disso, - respondeu ele.

   -     Apesar de que depois daquele dia, lembra, nós acabamos assistindo de novo ao filme e eu achei demais, cara!  –  completou C-zinho.

   -      Nem me fale! Foi fantástico!. A apresentação dos caras no último andar do prédio onde ficava o estúdio deles foi antológica, meu Deus do céu! – respondeu SN enquanto enrolava os seus cabelos.  Aliás, aquele era o seu tique predileto.

Maravilhado com todo aquele clima de festa que tomava conta da rua, enchi-me de esperanças acreditando que dessa vez eu não fosse me decepcionar. Naquele dia tive a certeza de que iríamos ouvir algumas músicas que nos deixariam, de forma indelével,  marcados para sempre.  Só não tinha ideia de quanto. Isso, eu e meus amigos, só descobriríamos bem mais tarde.

Após uma longa espera na fila, conseguimos finalmente comprar os nossos ingressos e adentrar ao cinema, e ao chegarmos ao hall de entrada tive a impressão de que havia mais gente ali do que lá fora. No piso térreo, já não havia mais lugares e acabamos decidindo tentar a parte superior que, para nossa surpresa, também já estava completamente tomada, a ponto de que fomos obrigados a assistir ao filme sentados nas escadas que davam acesso às fileiras onde ficavam as poltronas. 

Ao meu lado, sentou-se uma linda garota que me distraiu durante quase todo o filme.  A todo momento nós nos olhávamos e eventualmente trocávamos algumas palavras. Ela era a ponta do tripé sexo, drogas e rock and roll  que estava faltando e se assim continuássemos, quem sabe, ele poderia se completar? Ocorre que à medida que o tempo passava, mais efeito fazia os preparativos que eu havia realizado antes de entrar no cinema, e isso foi pouco a pouco me distanciando daquela possibilidade. Fechado em meus devaneios, esqueci-me completamente dela e ao término do filme, eu não a encontrei mais. Óbvio que ela deve ter se sentido desprezada e acabou se afastando. Aquilo tudo era uma experiência ainda muito nova, não só pra mim como também para os meus amigos e nós ainda não tínhamos o total controle sobre os seus efeitos. 

À medida que o filme se desenrolava, íamos ficando cada vez mais impacientes pois durante um bom tempo o documentário esteve mais preocupado em relatar tudo o que realmente aconteceu antes da música rolar, como a chegada das pessoas, os problemas que os organizadores enfrentaram, a enorme quantidade de gente que chegou de todos os lugares dos EUA e que acabaram entrando sem pagar, as diversas tribos que ali se reuniram, etc.  

Da mesma forma que no filme Let it be dos Beatles, a música demorou muito a acontecer e isso, como era de se esperar, foi criando um certo frisson em todos nós. Contudo, quando ela começou, ah! que alegria, foi uma festa só.  Entramos em êxtase.

A cada apresentação, ficávamos mais e mais perplexos diante de tanta energia e tanta criatividade.  Os shows do The WhoSantana, Janis Joplin, Joe Cocker, Alvin Lee and Ten Years After e Jimi Hendrix foram simplesmente memoráveis.  Nunca mais vimos nada igual. E é bom ressaltar as ausências importantes daquele festival.  Por causa de problemas que não vêm ao acaso relatar aqui, ficaram de fora nada mais, nada menos que o Led Zeppelin, Os Beatles, que haviam acabado de se separar, e o grande poeta Bob Dylan.

As músicas que embalaram aquele festival, entraram definitivamente para a história a ponto de ficarmos com a sensação de que haviam sido escritas especialmente para ele. Parece que cada grupo levou para lá aquilo que eles tinham produzido de melhor. As escolhas das músicas foram quase que perfeitas. Basta lembrar os primeiros versos da Ópera Tommy composta pelo grupo inglês The Who, que conta a história de um garoto que por ter presenciado o assassinato do pai pelo seu padrasto, acabou ficando cego, surdo e mudo. Logo nos primeiros versos, ouvimos Roger Daltrey cantar: See me, feel me, touch me, heal me.  Ali, diante da tela, totalmente perplexos e maravilhados, aquelas palavras soaram como se fizessem parte de um grande hino. Na verdade, o hino de toda uma geração que queria a todo custo ser ouvida e que lutava ardorosamente por paz e amor. Convém lembrar, que ainda por cima eles estavam prontos para dizerem Não às guerras e às empresas destruidoras do meio ambiente. 

Na sequência, ouvimos Joe Cocker fazendo a maior releitura de uma música dos Beatles já feita: “With a little help from my friends.”  O arranjo que ele fez para esta canção foi capaz de recriá-la de uma forma tão mágica que os próprios Beatles, acredito eu, nunca imaginaram que isto seria possível.  Nada mais propício para aqueles anos turbulentos. A música diz que podemos suportar quase tudo, da solidão até a perda de um grande amor, desde que tenhamos uma pequena ajuda dos amigos. Ao ouvir aquela música, ficamos com a sensação de que ela estava falando diretamente para cada um daqueles jovens que foram forçados a enfrentar o medo, a distância do lar, o afastamento dos pais e de serem obrigados a ficar longe do seu país.  Isso, sem falar dos horrores da guerra.

À medida que o filme se desenrolava e as músicas eram executadas, mais e mais excitados ficávamos.

Quando Alvin Lee e o seu grupo, o Ten Years After, executou os primeiros acordes de  I`m going home, fomos ao delírio, sobretudo diante da rapidez com que ele dedilhava a sua frenética guitarra.  As plateias, tanto as de lá quanto aquela em que eu me encontrava, ficaram completamente enlouquecidas pois aquela canção falava justamente aquilo que todo jovem americano gostaria de dizer: “Baby, estou voltando pra casa”. Era isso o que mais eles desejavam: poder voltar da guerra, vivos.  

Esta música é um exemplo claro dessa referência que estou querendo traçar sobre o fato de cada grupo ter escolhido a canção perfeita para o festival. Numa entrevista muitos anos depois, Alvin Lee comentou que aquela música que eles escolheram, marcou profundamente a sua banda, sendo que por um lado, foi positivo, e por outro, de forma bastante negativa.  "Digo que foi positiva, porque a partir daquele dia nós nos tornamos um grupo com expressão internacional", disse ele. Até então, a banda era mais conhecida dentro do território americano. "O lado negativo, foi que todas as demais vezes que o grupo doravante veio a se apresentar, a plateia só pedia uma única coisa: `Toquem I`m Going Home'".  Ainda segundo ele, o Ten Years After passou a ser conhecida como a banda de uma música só e isso, de certa forma, acabou não sendo bom para o grupo.

Mais para frente chegamos ao ápice do show. Foi quando ouvimos os primeiros acordes do hino nacional americano, disparados pela guitarra distorcida e colérica de Jimi Hendrix. Naquele momento a plateia, tanto a do cinema quanto a do próprio festival, foram quase à loucura.  Não era o hino do nosso país, mas o sentimos como se fosse tal a força do sentimento de revolta que ele colocou em cada nota.  Sabíamos da enorme quantidade de jovens americanos que estavam morrendo todos os dias naquela estúpida guerra do Vietnã, jovens que como nós, estavam na flor da idade e que não mereciam vivenciar toda aquela estupidez. Naquele momento, sentimos como se não houvessem nacionalidades.  Comungamos com aqueles nossos compatriotas assim como com todos os jovens que no mundo inteiro estavam morrendo por causa das guerras, ou pelos horrores praticados pelos governos de exceção, como era o nosso caso. 


O filme chegou ao seu final de forma um tanto melancólica. Ver aqueles campos desertos e cobertos de lixo e lama nos deu uma sensação de finitude das coisas. Foram três dias maravilhosos, mas agora todos voltariam às suas vidas vazias. Não seria fácil encarar a realidade depois daquele sonho fantástico.  Aqueles que lá estiveram, assim como nós, para quem aquilo tudo tinha acontecido apenas de forma virtual e rememorada, teriam agora que encarar novamente a batalha diária da vida, já que durante aqueles dias ela havia ficado em suspenso.  Nos levantamos em direção às saídas do cinema com um misto de excitação e tristeza, que, obviamente, deixamos de lado para que ela não estragasse a festa.  Nos entreolhamos e sorrimos uns para os outros como se nos disséssemos: "Cacete! foi bom demais".  C-zinho me olhou com um sorriso que era um misto de desconsolo e alegria, deixando perpassar uma certa sensação de melancolia. Mas não tardou em  afastar aquela inquietação de desconforto e na sequência disparou:

- Temos algo que é só nosso e que ninguém pode nos tirar!
- O que é, do que você está falando? - perguntei.
- Estou falando do Rock, meu irmão.  Estou falando do Rock and Roll, brother! - respondeu ele com um enorme sorriso escancarado que ia de lado a lado.
- É isso ai...  é isso ai, - completou SN em concordância com ele.


Realmente eles estavam com razão.  Pela primeira vez na história os jovens tinham algo verdadeiramente deles. 

Alguns anos depois daqueles históricos dias, viríamos a ter contato com o Rock Progressivo que nos deu a possibilidade de fazermos um resgate de tudo o que ao longo da história os homens haviam produzido de melhor, e a música clássica, a chamada música dos grandes mestres, estava entre elas.  Ela fundiu toda a grande tradição cultural da humanidade nessa música totalmente nova, o Rock.  Só que com uma diferença: tratava-se de um Rock de natureza Clássica e experimentalista como foi toda a música produzida ao longo do século, sobretudo por músicos como Arnold Schoemberg, Luigi Nono, Igor Stravinsky, Alban Berg, Anton Webern, Luciano Berio e Pierre Boulez.

Da forma como ela estava sendo elaborada e produzida, sobretudo pelas bandas inglesas, dava-nos a sensação de que tínhamos agora uma música ainda mais nossa, mas sem, contudo, desprezar as tradições do passado. A nossa geração criou algo totalmente novo mas nunca relegou aquilo que a humanidade havia produzido ao longo dos séculos. Ela estava se sentindo livre para desbravar novos caminhos como nunca os homens haviam se sentido anteriormente. Contudo, não desprezava o arcabouço de conhecimento adquirido ao longo de toda a história.  

Os jovens de hoje vivem como se não existisse passado. Aquela nossa geração era diferente e talvez por isso mesmo ela tenha fracassado em suas tentativas de mudar o mundo.  Tentaram lutar contra o sistema utilizando-se das mesmas armas que ele os atacava. Nesse ponto, a geração de hoje leva uma enorme vantagem pois os jovens da atualidade detém um ferramental de conhecimentos que assusta as gerações mais velhas e nesse sentido parece que eles não devem nada ao passado.  Enganam-se, obviamente, pois para chegar onde chegaram eles precisaram se valer de todo o saber construído ao longo de décadas.

As músicas que fizeram parte daquele fantástico festival tornaram-se emblemáticas para toda uma geração, a ponto de alguns a considerarem até hoje como sendo a trilha sonora de suas vidas.  Foi um festival realmente antológico que se deu numa época de profundas mudanças na história da humanidade.  Este, por si só, já seria um motivo suficiente para torná-lo marcante, mas dentro do contexto em que aconteceu, na segunda metade do Século XX, ele se tornou ainda mais relevante.

O escritor inglês William Gonding, Prêmio Nobel de Literatura em 1988, certa vez falou: “Não posso deixar de pensar que o Século XX foi o mais violento da história humana”.  Não bastasse todas as guerras que eclodiram nesse período, só as duas grandes guerras mundiais já seriam mais que suficientes para corroborar a afirmação de Gonding.  Contudo, não podemos deixar de pensar, também, que o século passado foi, como falou o cientista espanhol Severo Ochoa, aquele onde se deu o maior progresso da ciência, seja por causa da revolução provocada pela descoberta da física quântica, seja pelo advento da bomba atômica, que destruiu Hiroshima e Nagasaki, seja por causa do surgimento da televisão, seja pela chegada do primeiro homem à Lua ou mesmo pela invenção dos computadores. Foi um século turbulento mas também efervescente, repleto de medos e violências, mas também cheios de sonhos e esperanças.

Eram esses sonhos que embalavam aqueles milhares de jovens que fizeram com que Woodstock se tornasse o maior festival de música de todos os tempos. A década em que ele foi realizado foi considerada por alguns historiadores, entre eles o inglês Eric Hobsbawm, como sendo a década que tudo mudou. O Século XX viu o nascimento das metanarrativas e dos últimos sonhos utópicos da humanidade, mas também assistiu às suas derrocadas.

Não tenho intenção aqui de resgatar nenhum daqueles sonhos, mas tão somente recuperar o sentimento de esperança que estava contido naqueles movimentos. É justamente essa esperança que parece que se perdeu nesses tempos hodiernos que estamos vivenciando hoje. Nos tornamos sujeitos hiperindividualistas, autônomos e autosuficientes, e isso nos transformou em células isoladas deixando-nos, assim, incapazes de nos organizar politicamente. Dessa forma, ficamos com a sensação de que nada mais podemos fazer diante da grandeza desse sistema hegemônico que hoje nos governa.

O geógrafo Milton Santos costumava dizer que o pior de todos os fundamentalismos é o fundamentalismo de mercado.   Diante dele, vimos os Estados e as Nações sucumbirem e o mundo passar a ser governado pelo Grande Monopólio do Capital Internacional. Embevecidos pelos confortos da vida moderna e envoltos por um hiperconsumismo que ameaça de vez com a sobrevivência de todo o planeta, sentamos em nossas confortáveis poltronas como se não houvesse nada mais a ser feito. Ledo engano.  Existe muito a ser feito, e para tanto precisamos nos espelhar naquilo que nos movia no passado.

Saímos do cinema com a alma lavada e tomados por um sentimento de paz e esperança, embora também de tristeza.  A dissipação daquele bando de jovens se deu de maneira relativamente ordeira.  Eles gritavam e cantavam mas não vi ninguém depredar ou praticar qualquer ato, por menor que fosse, de vandalismo, e isso poderia ter acontecido perfeitamente porque estávamos diante do conhecido fenômeno das massas.

A tarde já estava agonizando os seus últimos suspiros e a noite caía suavemente ao longe.  Assim que saímos da Rua do Hospício e dobramos na Av. Conde da Boa Vista, pude ver ao longe a luz que brilhava no horizonte e fiquei aliviado pois esse horizonte estava na direção do oceano. Convém ressaltar que isso normalmente acontece numa cidade litorânea. Parece que todos os lugares apontam para uma única direção: o mar.

Chegamos à esquina da Rua Sete de Setembro, e ali permanecemos por alguns momentos saboreando o ir e vir dos carros e transeuntes que por ali desfilavam. 


Ainda atordoado pelo efeito dos barbitúricos que havíamos tomado antes da sessão, senti como se todo aquele movimento que mais parecia uma dança, estivesse acontecendo só para nós. Nesse ponto, faço uma pausa para reflexão. Pode ser que com o efeito dos agentes que estavam atuando sobre as nossas mentes, aquele dia estivesse parecendo muito mais alegre e festivo que o habitual.  Contudo, devo ressaltar que as lembranças daqueles instantes quase se apagaram por completo da minha memória. Caso estivesse lúcido, aqueles momentos me pareceriam muito mais vivos, palpáveis, quase concretos.  Embriagado naquele êxtase temporário, elas se desvaneceram inteiramente. Pode ter sido muito bom como experimentação, mas foi péssimo para as minhas lembranças, pois elas não permaneceram vivas para a posteridade.

Lembro-me, entretanto, que naquele dia ficamos completamente chapados diante do que vimos e ouvimos, e às vezes penso que continuamos chapados até hoje. Passamos apenas uma única tarde em Woodstock, mas ela foi suficiente para modificar as nossas vidas por completo, e para sempre.


Carlos Pessegatti












Comentários

  1. Momentos marcantes de nossas vidas que, certamente, contribuíram nas formações de nosso caráter e de nossa humanidade. Fazem parte, hoje, de nossa maturidade e jamais os esqueceremos!

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