Uma tarde em Woodstock
“Se eu tivesse de resumir o século XX,
diria
que despertou as maiores esperanças
já concebidas pela humanidade
e destruiu todas as ilusões e
ideais".
Yehudi Menuhin (músico)
Saímos de casa naquela linda tarde de
sábado para assistirmos ao documentário que havia sido feito sobre o Festival
de Woodstock, realizado em agosto de 1969. Havíamos esperado mais de
dois anos para ver/ouvir tudo o que tinha acontecido naquele que foi considerado
o maior festival de todos os tempos. Estávamos eufóricos pois aquela energia
que emanou daquele encontro ainda se fazia presente e de uma forma ou de outra
nos contagiava a todos.
Partindo do nosso velho quartel general
na esquina da Rua Sete de Setembro com a Av. Conde da Boa Vista, não andamos
mais que duas quadras para chegarmos à Rua do Hospício, local onde ficava o mais
novo cinema da cidade, o Cine Veneza. Sabíamos que iríamos assistir
a um espetáculo de som e imagem, pois aquela nova sala de entretenimento estava
dotada do que havia de mais avançado naqueles tempos.
Antes, porém, nos preparamos de forma a
absorvermos tudo o que se desenrolara naqueles três dias que entraram para a
história como sendo o maior aglomerado de jovens reunidos em um único local
para festejar a paz, o rock e o amor, lema daquela geração.
E como foi essa preparação? A única coisa que posso dizer a esse
respeito é que fomos para o cinema com a cabeça bem feita.
Vale ressaltar que aquele festival,
acontecido alguns anos antes, perturbou de tal forma as classes governantes
americanas que pouco tempo depois eles começaram a repensar novas estratégias de
dominação. Não estaria totalmente incorreto afirmar que as bases da política
econômica Neoliberal estavam surgindo ali.
De acordo com os pensadores Pierre Dardot e Christian Laval, professores da universidade Paris-Quest Nanterre-La Defende, o Neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e uma norma geral de vida. Ele pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência. Ainda segundo esses renomados professores, a norma fundamental do Neoliberalismo é a competição mortífera modelando tudo na vida social introjetada na subjetividade dos indivíduos pelo capital e seu mercado.
Segundo o filósofo francês Pierre Bordieu, o programa neoliberal "tende globalmente a favorecer a ruptura entre a economia e as realidades sociais". Seria "um programa de destruição metódica do coletivo", isto é "de todas as estruturas coletivas capazes de interpor obstáculo à lógica do mercado puro." E se há alguma palavra que melhor defina aquela enorme reunião de jovens, esta palavra é “coletivo”. E põe coletivo nisso. Foram mais de quinhentos mil jovens reunidos em um único lugar.
Para a classe dominante, isso foi simplesmente assustador. Atualmente, podemos reunir um aglomerado de garotos três vezes maior que nada acontece. Os jovens de hoje foram todos cooptados por este sistema hegemônico que agora nos governa. Não existe mais risco algum.
De acordo com os pensadores Pierre Dardot e Christian Laval, professores da universidade Paris-Quest Nanterre-La Defende, o Neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e uma norma geral de vida. Ele pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência. Ainda segundo esses renomados professores, a norma fundamental do Neoliberalismo é a competição mortífera modelando tudo na vida social introjetada na subjetividade dos indivíduos pelo capital e seu mercado.
Segundo o filósofo francês Pierre Bordieu, o programa neoliberal "tende globalmente a favorecer a ruptura entre a economia e as realidades sociais". Seria "um programa de destruição metódica do coletivo", isto é "de todas as estruturas coletivas capazes de interpor obstáculo à lógica do mercado puro." E se há alguma palavra que melhor defina aquela enorme reunião de jovens, esta palavra é “coletivo”. E põe coletivo nisso. Foram mais de quinhentos mil jovens reunidos em um único lugar.
Para a classe dominante, isso foi simplesmente assustador. Atualmente, podemos reunir um aglomerado de garotos três vezes maior que nada acontece. Os jovens de hoje foram todos cooptados por este sistema hegemônico que agora nos governa. Não existe mais risco algum.
Entretanto, para aquela época, encontros como aquele, que acontecera
entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969 no estado de Nova York, com certeza,
não poderiam mais se repetir. Vale lembrar que o mote daquela nossa
geração estava expresso em uma palavra: transgressão, conceito esse que hoje
está muito deturpado e desviado totalmente do sentido que lhe atribuíamos
naquela época. Obviamente que isso incomodava os governantes de uma forma
geral.
O jornalista e escritor britânico
Anthony Sampson nos falou em seu livro O Homem da Companhia, das
frustradas tentativas ocorridas nessa época, empreendidas pelas empresas com o
intuito de atrair a nova geração de estudantes. Assim ele escreveu:
“As tentativas de humanizar as grandes
empresas não foram suficientes para atrair uma nova geração de estudantes que
rejeitavam os benefícios sociais delas e as consideravam destruidoras de meio
ambiente, opressoras das minorias e manipuladoras da demanda por meio da
propaganda e do patrocínio. Eles estavam com muito menos medo do
desemprego que seus pais e desiludidos com o materialismo e a dependência da
"sociedade de consumo”. Como explicava Herbert Marcuse, seu filósofo
predileto: “As pessoas se reconhecem em suas posses; elas encontram sua alma no
automóvel, no aparelho de som, na casa de vários níveis, nos eletrodomésticos”. Os
estudantes temiam ficar presos na vida empresarial e procuravam estilos de vida
e valores alternativos para dar sentido à existência. Os mais
rebeldes ficaram fascinados com a ideia de uma contracultura totalmente liberada
das pressões industriais e que permitisse uma expansão criativa da mente humana
-- com novas aventuras em sexo, drogas e vida comunal --, uma visão de fuga
perpetuada no filme de Dennis Hopper Easy rider (Sem
destino) , de 1969”.
Fascinados com essas possibilidades
acenadas pela contracultura, fomos ao cinema buscar mais elementos
que nos possibilitassem compreender melhor todos aqueles acontecimentos
marcantes que estavam ocorrendo, não só no mundo, mas também em nosso país,
que, apenas lembrando, estava envolto em uma ditadura ferrenha. A revolta
estudantil, acontecida alguns anos antes, relatou o historiador Eric Hobsbawm,
“serviu de advertência, uma espécie de memento mori para uma
geração que quase acreditava que tinha resolvido os problemas da sociedade ocidental
para sempre”. Essa era a revolução que estava a caminho, alertou, em
1970, Willian O. Douglas, juiz da Suprema Corte dos EUA entre 1939 e 1975: “A
busca dos jovens de hoje é por meios e modos de fazer a máquina – e a vasta
burocracia do Estado empresarial e do governo que dirigem essa máquina – uma
servidora do homem”. Estava dado o alerta.
Esse emaranhado de ideias se fundiam num amálgama indivisível em nossos corações e mentes. Obviamente,
que pela idade que tínhamos esses conceitos ainda não eram tão claros assim.
Essas rebuscadas análises só viríamos a vislumbrar muito tempo depois, mas
dentro de cada um de nós, embora ainda não estivessem muito bem elaboradas,
elas já se faziam presentes, mesmo que ainda de forma embrionária.
Deixando todas essas questões mais
profundas de lado, vale ressaltar que naquela tarde teríamos, na verdade, um
grande momento de confraternização, e não só entre nós, mas entre todos os
jovens daquela nossa geração. Outra vez, uma enorme quantidade de
garotos se reunia para prestigiar um grande evento e como a nossa pequena
cidade não tinha sido o palco daqueles acontecimentos históricos, era daquela
forma que tínhamos contato com eles: através do cinema. Havia sido
assim com o filme Let it Be, que mostrou a última vez que Os
Beatles haviam tocado juntos, e agora não seria diferente.
A cidade
estava alegre, festiva e parecia comungar com as nossas almas tal era o
esplendor de suas luzes que pareciam estar vibrando em consonância com os
nossos pensamentos e sentimentos.
Em 1968,
Henri Lefebvre introduziu o conceito do “direito à cidade”. Ele advogava o
“resgate do homem como o principal protagonista da cidade que construiu (…) o
ponto de encontro para a vida coletiva.” A sensação que guardo em
minhas memórias era que Recife, naqueles anos idos, nunca nos negou este
direito. Como uma ágora que agregava a expressão máxima da esfera pública, ela parecia
estar sempre em comunhão com aqueles que a habitavam e disposta a oferecer o
devido reconhecimento pelo papel de protagonistas que desempenhavam em suas
próprias vidas, e naquela linda tarde não estava sendo diferente. Com as suas
ruas apinhadas de gente, o clima de intimidade que se configurava entre elas
era tão grande que tinha-se a impressão de que flanavam de tão leves, embora
tivessem destinos certos. Realmente, naquele dia, nos sentíamos como
sendo os verdadeiros protagonistas daquela cidade.
Eu e os
meus amigos havíamos sido contagiados por aqueles devaneios mágicos que pairavam
no ar e, acreditem-me, não havíamos ficados imunes ao lema daquela
geração: sexo, droga e rock and roll, e falo isso em todos os
sentidos. Desses três itens, apenas o sexo estava,
pelo menos naquele momento, relegado ao segundo plano. Os demais, estavam ali
presentes e fariam parte daquele dia como talvez nunca tivessem feito
antes. Respirávamos música e o mais puro Rock
and Roll. As portas das nossas percepções estavam totalmente esgarçadas,
abertas à experiências, fechadas à conjecturas. Éramos puro deleite.
Ao
chegarmos próximo ao cinema, percebemos que seria difícil trafegar pela Rua do
Hospício, tamanha era a quantidade de gente que por ali circulava, chegando a
interditar praticamente toda a circulação dos carros entre o Colégio Carneiro
Leão e a Faculdade de Direito, que mais pareciam estar em dia de aula, tal era
a quantidade de jovens que na frente delas se agrupavam. Eles formavam pequenas
rodas fumando os seus baseados e conversavam tão alto que pareciam querer
rivalizar com os riffs das guitarras que logo iríamos ouvir. O
cheiro que pairava no ar era tão forte que tínhamos a impressão que ficaríamos
meio malucos só de caminhar entre eles. A fila para comprar ingressos, então,
estava enorme, ultrapassando o espaço onde ficava a entrada do cinema e
chegando quase à esquina da Rua do Riachuelo. Naquele instante, um
repentino sentimento de preocupação me afligiu e eu acabei falando isso para
SN...
- Espero que hoje não nos desapontemos como naquele fatídico dia do filme
dos Beatles, lembra?
- Pô, cara, nem me fale disso, - respondeu ele.
- Apesar de que depois daquele dia, lembra, nós acabamos
assistindo de novo ao filme e eu achei demais, cara! – completou
C-zinho.
- Nem me fale! Foi fantástico!. A apresentação dos caras no último andar
do prédio onde ficava o estúdio deles foi antológica, meu Deus do
céu! – respondeu SN enquanto enrolava os seus cabelos. Aliás, aquele era o seu tique predileto.
Maravilhado
com todo aquele clima de festa que tomava conta da rua, enchi-me de esperanças
acreditando que dessa vez eu não fosse me decepcionar. Naquele dia tive a
certeza de que iríamos ouvir algumas músicas que nos deixariam, de forma indelével, marcados para sempre. Só não tinha ideia de quanto. Isso, eu e meus amigos, só descobriríamos bem mais tarde.
Após uma
longa espera na fila, conseguimos finalmente comprar os nossos ingressos e
adentrar ao cinema, e ao chegarmos ao hall de entrada tive a
impressão de que havia mais gente ali do que lá fora. No piso térreo, já não havia mais
lugares e acabamos decidindo tentar a parte superior que, para nossa surpresa,
também já estava completamente tomada, a ponto de que fomos obrigados a
assistir ao filme sentados nas escadas que davam acesso às fileiras onde
ficavam as poltronas.
Ao meu
lado, sentou-se uma linda garota que me distraiu durante quase todo o
filme. A todo momento nós nos olhávamos e eventualmente trocávamos
algumas palavras. Ela era a ponta do tripé sexo, drogas e rock and roll que
estava faltando e se assim continuássemos, quem sabe, ele poderia se completar?
Ocorre que à medida que o tempo passava, mais efeito fazia os preparativos que
eu havia realizado antes de entrar no cinema, e isso foi pouco a pouco me
distanciando daquela possibilidade. Fechado em meus devaneios, esqueci-me
completamente dela e ao término do filme, eu não a encontrei mais. Óbvio
que ela deve ter se sentido desprezada e acabou se afastando. Aquilo tudo era
uma experiência ainda muito nova, não só pra mim como também para os meus
amigos e nós ainda não tínhamos o total controle sobre os seus
efeitos.
À medida
que o filme se desenrolava, íamos ficando cada vez mais impacientes pois
durante um bom tempo o documentário esteve mais preocupado em relatar tudo o
que realmente aconteceu antes da música rolar, como a chegada das pessoas, os
problemas que os organizadores enfrentaram, a enorme quantidade de gente que
chegou de todos os lugares dos EUA e que acabaram entrando sem pagar, as
diversas tribos que ali se reuniram, etc.
Da mesma forma
que no filme Let it be dos Beatles, a música demorou muito a
acontecer e isso, como era de se esperar, foi criando um certo frisson em
todos nós. Contudo, quando ela começou, ah! que alegria, foi uma festa
só. Entramos em êxtase.
A cada
apresentação, ficávamos mais e mais perplexos diante de tanta energia e tanta
criatividade. Os shows do The Who, Santana,
Janis Joplin, Joe Cocker, Alvin Lee and Ten Years After e Jimi
Hendrix foram simplesmente memoráveis. Nunca mais vimos
nada igual. E é bom ressaltar as ausências importantes daquele
festival. Por causa de problemas que não vêm ao acaso relatar aqui,
ficaram de fora nada mais, nada menos que o Led Zeppelin, Os Beatles,
que haviam acabado de se separar, e o grande poeta Bob Dylan.
As músicas
que embalaram aquele festival, entraram definitivamente para a história a ponto
de ficarmos com a sensação de que haviam sido escritas especialmente para ele.
Parece que cada grupo levou para lá aquilo que eles tinham produzido de melhor.
As escolhas das músicas foram quase que perfeitas. Basta lembrar os primeiros
versos da Ópera Tommy composta pelo grupo inglês The Who, que conta
a história de um garoto que por ter presenciado o assassinato do pai pelo seu
padrasto, acabou ficando cego, surdo e mudo. Logo nos primeiros versos,
ouvimos Roger Daltrey cantar: See me, feel me, touch
me, heal me. Ali, diante da tela, totalmente perplexos e
maravilhados, aquelas palavras soaram como se fizessem parte de um grande hino.
Na verdade, o hino de toda uma geração que queria a todo custo ser ouvida e que
lutava ardorosamente por paz e amor. Convém lembrar, que ainda por cima eles
estavam prontos para dizerem Não às guerras e às
empresas destruidoras do meio ambiente.
Na
sequência, ouvimos Joe Cocker fazendo a maior releitura de uma
música dos Beatles já feita: “With a little help from my
friends.” O arranjo que ele fez para esta canção foi capaz de
recriá-la de uma forma tão mágica que os próprios Beatles, acredito eu, nunca
imaginaram que isto seria possível. Nada mais propício para
aqueles anos turbulentos. A música diz que podemos suportar quase tudo, da
solidão até a perda de um grande amor, desde que tenhamos uma pequena ajuda dos
amigos. Ao ouvir aquela música, ficamos com a sensação de que ela estava falando
diretamente para cada um daqueles jovens que foram forçados a enfrentar o medo,
a distância do lar, o afastamento dos pais e de serem obrigados a ficar longe
do seu país. Isso, sem falar dos horrores da guerra.
À medida
que o filme se desenrolava e as músicas eram executadas, mais e mais excitados
ficávamos.
Quando
Alvin Lee e o seu grupo, o Ten Years After, executou os primeiros acordes de I`m
going home, fomos ao delírio, sobretudo diante da rapidez com que ele
dedilhava a sua frenética guitarra. As plateias, tanto as de lá quanto aquela em que eu me encontrava, ficaram completamente
enlouquecidas pois aquela canção falava justamente aquilo que todo jovem
americano gostaria de dizer: “Baby, estou voltando pra casa”. Era isso o que
mais eles desejavam: poder voltar da guerra, vivos.
Esta música
é um exemplo claro dessa referência que estou querendo traçar sobre o fato de cada
grupo ter escolhido a canção perfeita para o festival. Numa entrevista muitos
anos depois, Alvin Lee comentou que aquela música que eles escolheram, marcou
profundamente a sua banda, sendo que por um lado, foi positivo, e por
outro, de forma bastante negativa. "Digo que foi positiva, porque a partir
daquele dia nós nos tornamos um grupo com expressão internacional", disse ele. Até então, a banda era mais conhecida dentro do território americano. "O lado negativo, foi que todas
as demais vezes que o grupo doravante veio a se apresentar, a plateia só pedia
uma única coisa: `Toquem I`m Going Home'". Ainda segundo ele,
o Ten Years After passou a ser conhecida como a banda de uma
música só e isso, de certa forma, acabou não sendo bom para o grupo.
Mais para frente chegamos ao ápice do show. Foi
quando ouvimos os primeiros acordes do hino nacional americano, disparados pela
guitarra distorcida e colérica de Jimi Hendrix. Naquele momento a plateia,
tanto a do cinema quanto a do próprio festival, foram quase à
loucura. Não era o hino do nosso país, mas o sentimos como se fosse
tal a força do sentimento de revolta que ele colocou em cada
nota. Sabíamos da enorme quantidade de jovens americanos que estavam
morrendo todos os dias naquela estúpida guerra do Vietnã, jovens que como nós,
estavam na flor da idade e que não mereciam vivenciar toda aquela
estupidez. Naquele momento, sentimos como se não houvessem
nacionalidades. Comungamos com aqueles nossos compatriotas assim
como com todos os jovens que no mundo inteiro estavam morrendo por causa das
guerras, ou pelos horrores praticados pelos governos de exceção, como era o
nosso caso.
O filme
chegou ao seu final de forma um tanto melancólica. Ver aqueles campos desertos
e cobertos de lixo e lama nos deu uma sensação de finitude das coisas. Foram
três dias maravilhosos, mas agora todos voltariam às suas vidas vazias. Não
seria fácil encarar a realidade depois daquele sonho fantástico. Aqueles
que lá estiveram, assim como nós, para quem aquilo tudo tinha acontecido apenas
de forma virtual e rememorada, teriam agora que encarar novamente a batalha
diária da vida, já que durante aqueles dias ela havia ficado em suspenso. Nos
levantamos em direção às saídas do cinema com um misto de excitação e tristeza,
que, obviamente, deixamos de lado para que ela não estragasse a festa.
Nos entreolhamos e sorrimos uns para os outros como se nos disséssemos: "Cacete! foi bom demais". C-zinho me olhou com um sorriso que era um misto de desconsolo e alegria, deixando perpassar uma certa sensação de melancolia. Mas não tardou em afastar aquela inquietação de desconforto e na sequência disparou:
- Temos
algo que é só nosso e que ninguém pode nos tirar!
- O que é, do que você está falando? - perguntei.
- Estou
falando do Rock, meu irmão. Estou falando do Rock and Roll,
brother! - respondeu ele com um enorme sorriso escancarado que ia de lado a
lado.
- É isso
ai... é isso ai, - completou SN em concordância com ele.
Realmente
eles estavam com razão. Pela primeira vez na história os jovens tinham
algo verdadeiramente deles.
Alguns
anos depois daqueles históricos dias, viríamos a ter contato com o Rock Progressivo que nos deu a
possibilidade de fazermos um resgate de tudo o que ao longo da história os homens
haviam produzido de melhor, e a música clássica, a chamada música dos grandes
mestres, estava entre elas. Ela fundiu toda a grande tradição
cultural da humanidade nessa música totalmente nova, o Rock. Só
que com uma diferença: tratava-se de um Rock de natureza
Clássica e experimentalista como foi toda a música produzida ao longo do
século, sobretudo por músicos como Arnold Schoemberg, Luigi Nono, Igor
Stravinsky, Alban Berg, Anton Webern, Luciano Berio e Pierre Boulez.
Da forma como ela estava sendo
elaborada e produzida, sobretudo pelas bandas inglesas, dava-nos a sensação de
que tínhamos agora uma música ainda mais nossa, mas sem, contudo, desprezar as
tradições do passado. A nossa geração criou algo totalmente novo mas nunca
relegou aquilo que a humanidade havia produzido ao longo dos séculos. Ela
estava se sentindo livre para desbravar novos caminhos como nunca os homens haviam
se sentido anteriormente. Contudo, não desprezava o arcabouço de
conhecimento adquirido ao longo de toda a história.
Os jovens de hoje vivem como se não
existisse passado. Aquela nossa geração era diferente e talvez por isso mesmo
ela tenha fracassado em suas tentativas de mudar o mundo. Tentaram
lutar contra o sistema utilizando-se das mesmas armas que ele os atacava. Nesse ponto, a geração de hoje leva uma enorme vantagem pois os jovens da atualidade detém um ferramental de conhecimentos que assusta as gerações mais velhas
e nesse sentido parece que eles não devem nada ao
passado. Enganam-se, obviamente, pois para chegar onde chegaram
eles precisaram se valer de todo o saber construído ao longo de décadas.
As músicas que fizeram parte daquele
fantástico festival tornaram-se emblemáticas para toda uma geração, a ponto de
alguns a considerarem até hoje como sendo a trilha sonora de suas
vidas. Foi um festival realmente antológico que se deu numa época de
profundas mudanças na história da humanidade. Este, por si só, já
seria um motivo suficiente para torná-lo marcante, mas dentro do contexto em que aconteceu, na segunda metade do
Século XX, ele se tornou ainda mais relevante.
O escritor
inglês William Gonding, Prêmio Nobel de Literatura em 1988, certa vez falou:
“Não posso deixar de pensar que o Século XX foi o mais violento da história
humana”. Não bastasse todas as guerras que eclodiram nesse período,
só as duas grandes guerras mundiais já seriam mais que suficientes para
corroborar a afirmação de Gonding. Contudo, não podemos deixar de
pensar, também, que o século passado foi, como falou o cientista espanhol
Severo Ochoa, aquele onde se deu o maior progresso da ciência, seja por causa
da revolução provocada pela descoberta da física quântica, seja pelo advento da
bomba atômica, que destruiu Hiroshima e Nagasaki, seja por causa do surgimento
da televisão, seja pela chegada do primeiro homem à Lua ou mesmo pela invenção
dos computadores. Foi um século turbulento mas também efervescente, repleto de
medos e violências, mas também cheios de sonhos e esperanças.
Eram esses
sonhos que embalavam aqueles milhares de jovens que fizeram com que Woodstock
se tornasse o maior festival de música de todos os tempos. A década em que ele
foi realizado foi considerada por alguns historiadores, entre eles o inglês
Eric Hobsbawm, como sendo a década que tudo mudou. O Século XX viu o nascimento
das metanarrativas e dos últimos sonhos utópicos da humanidade, mas também
assistiu às suas derrocadas.
Não tenho
intenção aqui de resgatar nenhum daqueles sonhos, mas tão somente recuperar o
sentimento de esperança que estava contido naqueles movimentos. É justamente
essa esperança que parece que se perdeu nesses tempos hodiernos que estamos
vivenciando hoje. Nos tornamos sujeitos hiperindividualistas, autônomos e autosuficientes, e isso nos transformou em células isoladas deixando-nos, assim, incapazes de nos organizar
politicamente. Dessa forma, ficamos com a sensação de que nada mais podemos
fazer diante da grandeza desse sistema hegemônico que hoje nos governa.
O geógrafo
Milton Santos costumava dizer que o pior de todos os fundamentalismos é o
fundamentalismo de mercado. Diante dele, vimos os Estados e as
Nações sucumbirem e o mundo passar a ser governado pelo Grande Monopólio do
Capital Internacional. Embevecidos pelos confortos da vida moderna e envoltos
por um hiperconsumismo que ameaça de vez com a sobrevivência de todo o planeta,
sentamos em nossas confortáveis poltronas como se não houvesse nada mais a ser
feito. Ledo engano. Existe muito a ser feito, e para tanto precisamos
nos espelhar naquilo que nos movia no passado.
Saímos do
cinema com a alma lavada e tomados por um sentimento de paz e esperança, embora
também de tristeza. A dissipação daquele bando de jovens se deu de
maneira relativamente ordeira. Eles gritavam e cantavam mas não vi
ninguém depredar ou praticar qualquer ato, por menor que fosse, de
vandalismo, e isso poderia ter acontecido perfeitamente porque estávamos
diante do conhecido fenômeno das massas.
A tarde já
estava agonizando os seus últimos suspiros e a noite caía suavemente ao
longe. Assim que saímos da Rua do Hospício e dobramos na Av. Conde
da Boa Vista, pude ver ao longe a luz que brilhava no horizonte e fiquei
aliviado pois esse horizonte estava na direção do oceano. Convém ressaltar
que isso normalmente acontece numa cidade litorânea. Parece que todos os
lugares apontam para uma única direção: o mar.
Chegamos à
esquina da Rua Sete de Setembro, e ali permanecemos por alguns momentos
saboreando o ir e vir dos carros e transeuntes que por ali desfilavam.
Ainda
atordoado pelo efeito dos barbitúricos que havíamos tomado antes da sessão,
senti como se todo aquele movimento que mais parecia uma dança, estivesse
acontecendo só para nós. Nesse ponto, faço uma pausa para reflexão. Pode ser
que com o efeito dos agentes que estavam atuando sobre as nossas mentes, aquele
dia estivesse parecendo muito mais alegre e festivo que o
habitual. Contudo, devo ressaltar que as lembranças daqueles
instantes quase se apagaram por completo da minha memória. Caso estivesse
lúcido, aqueles momentos me pareceriam muito mais vivos, palpáveis, quase
concretos. Embriagado naquele êxtase temporário, elas se
desvaneceram inteiramente. Pode ter sido muito bom como experimentação, mas foi
péssimo para as minhas lembranças, pois elas não permaneceram vivas para a
posteridade.
Lembro-me, entretanto, que naquele dia ficamos completamente chapados diante
do que vimos e ouvimos, e às vezes penso que continuamos chapados até
hoje. Passamos apenas uma única tarde em Woodstock, mas ela foi suficiente para
modificar as nossas vidas por completo, e para sempre.
Carlos
Pessegatti
Momentos marcantes de nossas vidas que, certamente, contribuíram nas formações de nosso caráter e de nossa humanidade. Fazem parte, hoje, de nossa maturidade e jamais os esqueceremos!
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