A mão que balança o terço

Cine Trianon


No inicio daquele ano de 1970, P-zinho havia confeccionado uma nova carteira de estudante para cada um dos que ainda não tinham completado a maior idade. Para nós, naqueles anos de descobertas e aventuras, a maior idade era representada pela idade da censura dos filmes para adultos, ou seja, dezoito anos.

Pegamos as nossas carteiras e fomos estreá-las, não no costumeiro Cinema São Luiz, onde trabalhava aquele porteiro barra-guri, mas num cinema pouco frequentado por nós naquela época.  Eu consigo contar nos dedos as poucas vezes que assisti a um filme no Cine Trianon.  Acho que o mais marcante de todos foi Romeu e Julieta do prestigiado diretor Franco Zeffirelli. Lembro que o assisti sozinho rodeado por um monte de mulheres que não paravam de suspirar.  Meu amigo, as mulheres continuam até hoje do mesmo jeito  Só mudaram os personagens.  Talvez hoje elas suspirem por, sei lá, Robert Pattinson, da saga Crepúsculo. Podemos dizer que pelo menos nesse ponto, as coisas não mudaram tanto de lá para cá.

Só que o filme daquele dia não tinha nada de romântico.  Era um suspense mais voltado para terror e com um nome bem sugestivo: A mão assassina. Resolvemos assisti-lo à tarde por uma mera questão de... segurança, vamos dizer assim. Não queríamos ir dormir sugestionados.  À noite, acreditem-me, seria bem pior.  E não importa se estivéssemos em bando ou sozinhos,  o medo seria o mesmo.  Na hora de colocar a cabeça no travesseiro, podem ter certeza, o bicho iria pegar.

Já estávamos no outono, muito embora essa estação não representasse muita coisa. No Nordeste, vivemos quase que uma espécie de polarização Verão-Inverno. Ou chove muito, ou faz bastante sol. Apesar de já termos deixado o verão para trás, o dia estava lindo e a temperatura agradável.

Partindo mais uma vez da Rua Sete de Setembro, caminhamos em meio àquela tradicional multidão que se esquivava pelas calçadas apinhadas de gente e que apressadamente cruzavam a Avenida Conde da Boa Vista, muito diferente de nós, diga-se de passagem, que só tínhamos uma obrigação na vida: estudar.

Fizemos uma pequena parada na Aky Discos, uma pequenina e singela loja de discos que ficava encravada bem na esquina do Cinema São Luiz. Queríamos saber das novidades.  Fiquei extasiado ao ouvir os primeiros acordes de Whole Lotta Love, do Led Zeppelin, conjunto que ainda não conhecia.  Olhei para SN espantado e falei:

-  Cara, eles são tão bons quanto Os Beatles, caráio!!!
      - Cipó!!!! – exclamou SN, numa expressão que normalmente usava quando a música era uma paulada.

Que coisa linda eram os LP`s.  As capas eram verdadeiras viagens.  Através da arte gráfica podíamos antecipar a música antes mesmo de escutá-la.  Como é diferente hoje em dia quando as músicas e os discos não passam de um simples arquivo armazenado nesses novos dispositivos, sejam eles computadores, tablets ou smartphones. Não compramos mais os discos, fazemos download dos mesmos. Não os tocamos fisicamente mais; não os sentimos como antes, em nossas mãos. Com o passar do tempo, o mundo foi cada vez mais e mais se virtualizando, ou liquefazendo, como  disse Zygmunt Bauman em seu livro Modernidade Líquida.  Sinal dos tempos!  Mas cada época tem o seu encanto e naqueles anos distantes fico com a impressão que vivíamos uma vida, digamos... mais real.

Saímos dali um pouco extasiados com aquele som que era ao mesmo tempo leve e pesado, e essa, descobriríamos mais tarde, foi a inspiração para o nome do grupo: Zeppelin de chumbo.  Inspirei com força aquele cheiro forte que exalava do Rio Capibaribe, ou Capiberibe, como preferem alguns, e me senti completamente feliz. Convém ressaltar que o cheio era, na verdade, ruim, pois se tratava de uma mistura de mangue com esgoto. Entretanto, não era dessa forma que eu sentia. Eu, e os meus amigos. Tanto é verdade, que nós carinhosamente cunhamos o termo “carnicérico” para designar as suas peculiaridades.  Interessante deixar registrado, que mesmo que em algum momento das nossas vidas tenhamos tido contato com alguma coisa relativamente ruim, se isso ficar associado a uma época boa, ela vai também ser lembrada assim.  Hoje, quando passo, por exemplo, pela Marginal Tietê ou Pinheiros aqui em São Paulo, e sinto aquele cheiro, ele não me soa fétido porque me remete a aqueles tempos. Na minha memória, aquilo nem é um cheiro: é aroma.



 Ponte Duarte Coelho

Como ainda tínhamos algum tempo antes da sessão começar, fizemos, como de costume, uma pequena parada no meio da ponte Duarte Coelho.  Era muito gostoso sentar naquelas balaustradas para ver o movimento frenético da cidade com o ir e vir das pessoas que caminhavam apressadas de um lado para o outro. Some-se a isso, a agradável sensação de podermos sentir a suave brisa que vinha do mar.  Aliás, mesmo frequentando muito pouco as praias, quem nasce numa cidade litorânea, e era esse o nosso caso, sente a presença do oceano como se fosse uma marca d`água que indelevelmente parece carimbar as nossas almas e que vai se incrustando lentamente e de forma quase que imperceptível, dentro dos nossos corações, mas que se você cavocar, ah!, sim, ela vai estar lá, escondida no âmago do seu ser, com certeza.  O Mar, quer prestemos atenção nele ou não, sempre estará ali, como uma inefável presença a preencher as nossas vidas.

Depois de nos deliciarmos por aqueles breves instantes diante da vida que pulsava radiante perante os nossos olhos atônitos e alegres, partimos para o cinema, que ficava a poucos metros dali, na comercialíssima Av. dos Guararapes. O Cine Trianon ficava logo na primeira quadra, num edifício defronte ao prédio dos Correios.  Ele e o Cine Art Palácio, que ficava numa rua ali atrás, faziam parte do grupo que era concorrente da rede Luiz Severiano Ribeiro, dona dos cinemas Moderno e São Luiz.

Compramos os nossos ingressos e como sempre acontecia, na hora de entrar tivemos um pequeno entrevero com o porteiro por causa da nossa idade. F e SN entraram na frente visto que eles já tinham completado os famigerados dezoito anos. Foi SN, inclusive, quem convenceu o sujeito a nos liberar, pois era um velho conhecido seu.

Ficamos ali sentados no Hall de entrada e enquanto esperávamos a sessão começar, resolvemos comprar os nossos docinhos preferidos numa bombonière ali instalada. F comprou um Mentex, Jo, um drops Dulcora e eu a minha adorada caixinha de uvas-passa. Naquele instante, avistamos He e Ma, dois sujeitos que moravam na pensão da minha Avó. Com eles, havia um outro rapaz, colega de faculdade, que aparentava ser um pouco bossal e falava o tempo todo em tom de ironia. Lembro que não simpatizamos muito com aquele sujeito. He e Ma eram Filhos de famílias abastadas que haviam vindo de Maceió para estudar Medicina em Recife, visto ser a nossa capital aquela que possuía as melhores faculdades da região.  Era muito comum encontrarmos jovens oriundos de cidades do interior e de algumas capitais próximas, como João Pessoa e Maceió. estudando por aqueles nossos lados.

Conversamos por algum tempo enquanto aguardávamos pelo início da nossa sessão, contando piadas e nos divertindo a valer. Talvez aquela fosse uma forma de lidar com o medo que sorrateiramente estava se instalando em cada um de nós, mesmo que não assumíssemos publicamente. 

He, um dos rapazes que encontramos naquela tarde, era um sujeito baixo, meio entroncado e de feições delicadas, que tinha uma forma gozada de falar. Os seus parcos e loiros cabelos já insinuavam que quando mais velho ele provavelmente iria ficar careca. Notei que ele estava carregando uma daquelas bolsas a tira-colo muito comuns naqueles tempos, pois todo hippie ou pretendente a, tinha a sua.  O estranho, é que He era meio burguesinho e seria muito mais aceitável que ele carregasse, por exemplo, uma bolsa estilo capanga, que também havia virado febre naquela época. Quando perguntei-lhe sobre o que carregava ali, ele desconversou. O que mais me chamou a atenção foi o fato de que eu nunca o tinha visto portando qualquer tipo de bolsa antes. Contudo, aquilo passou praticamente desapercebido, pois o momento em que nos encontrávamos sugeria outras ilações e devaneios.

Logo que adentramos ao salão de projeção, os três  rapazes nos falaram que iriam assistir ao filme no andar superior.  Como eu era míope, pedi para que ficássemos na parte de baixo e o mais perto possível da tela. Feliz da vida por ter sido atendido, procuramos logo encontrar um lugar que estivesse de comum acordo com todos os ali presentes.  Nos aconchegamos aos nossos assentos cheios de excitação e enquanto aguardávamos o início do filme, começamos a zombar dos nossos....  meeeeedos, coisa muito comum entre os garotos, que normalmente costumam ridicularizar essas situações de pavor como forma de defesa e também para poder lidar melhor com elas.

Quando o filme começou, a história que foi se desenrolando estava mais-ou-menos dentro daquilo que imaginávamos: cenário sombrio, mansão mal-assombrada, intrigas e assassinatos. Narrava a vida de uma mulher que era casada com um sujeito muito rico, mas que o traía com um amante mal caráter.  Ele a induziu a matar o marido para que ela ficasse com a sua herança e dessa forma eles poderiam viver juntos tranquilamente. Planejaram com cuidado o seu assassinato mas no dia em que foram executar o plano, algo não saiu exatamente como esperavam. Quando se preparavam para esconder o corpo, o marido, que inicialmente havia sido atingido na cabeça por um golpe de machado, levantou-se e tentou tomar a arma que estava na mão do seu algoz.  Na briga, ele acabou morto e uma de suas mãos foi decepada. Estava montada o cenário que dava título ao filme.  O que se viu daí em diante foram cenas onde uma mão aparecia andando sozinha pela casa, se vingando de todas as pessoas que fizeram parte daquele plano sórdido.

Lá pelas tantas, nós que já estávamos completamente enrijecidos de tanto medo em nossos assentos, tomamos um susto ainda maior: um enorme grito ecoou pelo cinema. Sentada algumas fileiras atrás de nós, uma mulher levantou-se gritando e falando que uma mão havia tocado seus ombros. Um enorme burburinho fez-se ouvir em todo o salão e não demorou muito para que o filme fosse interrompido e as luzes acesas.  Um grande alvoroço se instalou com pessoas discutindo sobre o que teria acontecido. O namorado da moça começou a discutir com um rapaz que estava sentado atrás dela acusando-o de ter feito aquilo propositalmente, mas ela mesma o inocentou informando que havia chegado a segurar nessa mão que tocara em seu ombro e que essa mão misteriosa tinha voado para longe quando ela a agarrou. Um grande fuzuê se formou em volta daquelas pessoas, com algumas tentando acalmá-la, outras se perguntando sobre o que de fato teria ocorrido e outras também que não paravam de rir, pois achavam que aquilo que acontecera era totalmente inverossímil. Depois de algum tempo participando daquele bate-boca, o casal resolveu ir embora visto que a garota estava muito assustada.

Naquele momento, eu, um católico fervoroso (a saber, mais por espontânea pressão do que por convicção), comecei a balançar as minhas mãos como se estivesse segurando algum terço imaginário e em seguida comecei de forma destrambelhada a rezar alguns Pai nossos e Ave Marias, e tudo isso em silêncio, obviamente, mas numa tagarelice interna que só mesmo Deus poderia saber. Meu amigo, nessas horas a mão que balança o terço sabe bem o tamanho do seu pavor.

- Pai nosso que estás no céu... / Ave Maria cheia de graça... / Livrai-nos do mal, amém... – e aquilo foi se desenrolando na minha cabeça numa velocidade espantosa, pois era assim que fazia quando criança e o padre da igreja Matriz me mandava rezar cem Pai Nossos e cem Ave Marias pelos pecados relatados no confessionário. Acho que por mais que escondesse, inclusive de mim mesmo, no âmago do meu ser eu era um autêntico beato.  Eu disse...  Beato.  Tá me estranhando, sô!!!


Assim que tudo se acalmou, as pessoas retornaram aos seus lugares e o filme recomeçou de onde tinha parado.  Embora ainda estivéssemos um pouco assustados com todos aqueles acontecimentos e a minha mão ainda continuasse a balançar aquele terço imaginário, no final de tudo nos sentimos mais aliviados pois a partir daquele ponto a história tomou um rumo que nos pareceu bastante fantasioso, levando-nos à conclusão de que toda aquela trama não passava de uma grande mentira, por sinal, muito mal contada. A realidade era uma só: o filme era muito ruim, beirando o mal gosto daquelas produções baratas, os chamados Filmes B, termo que foi usado originalmente para se referir a películas destinadas a serem a “outra metade” de uma sessão dupla, onde geralmente eram apresentados dois filmes do mesmo gênero, tipo faroeste, gangster ou terror.

Quando a sessão acabou, nos entreolhamos e começamos a sorrir de forma divertida pois um sentimento de alívio havia nos invadido como um bálsamo refrescante.  Assim que saímos da sala de projeção e chegamos ao hall de entrada nos deparamos com uma grande quantidade de pessoas que aguardavam pela próxima sessão, que seria logo mais às 18:20hs.  Procurei rapidamente por aqueles rapazes que encontramos na nossa chegada, mas não os avistei.  O fato é que, embora tenha achado um tanto estranho, aquilo não era tão relevante assim.

Ponte Duarte Coelho à noite.



Ao sairmos do cinema, tivemos um sentimento de estranheza visto que quando chegamos, no meio tarde, o dia ainda estava flamejante de luz, só que  àquela hora, passava um pouco das dezoito, a noite já tinha dado o ar da sua graça nos presenteando com um lindo festival de luzes e cores. Em tempo, mesmo que aquele cenário fizesse parte do nosso cotidiano, assim que subimos a Ponte  Duarte Coelho, não deixei de me emocionar ao ver novamente a cidade toda iluminada.  Era uma paisagem digna de cartão postal.  Daquele ponto onde nos encontrávamos podíamos assistir a um maravilhoso caleidoscópio multi-colorido a banhar as águas do Rio Capiberibe.  Fui tomado por um sentimento de quase-êxtase diante de tanta luz mesclada ao movimento frenético das pessoas que pareciam flanar por aquelas ruas e avenidas.

Quando chegamos à esquina da Rua Sete de Setembro, paramos, como de costume, bem em frente ao Edifício Ouro para sentir o clima pulsante da cidade. Conversamos alegremente por alguns momentos e traçamos a nossa programação para aquela noite.  Iríamos para as nossas casas jantar e depois voltaríamos a nos encontrar no nosso carinhoso “murinho”, aquele, que ficava ali mesmo na  Sete de Setembro.

X

Antes de concluir, gostaria de pontuar algumas particularidades do que ocorrera naquele dia dentro cinema. Uma semana depois, ficamos sabendo que aqueles rapazes que havíamos encontrado antes da sessão começar, tinham sido os responsáveis por toda aquela confusão.  Um deles havia subtraído a mão de um dos corpos utilizados para dissecação num laboratório da faculdade e a levado naquele dia para assistir ao filme.  Eles se postaram no piso superior da sala de projeção e amarraram aquele membro a um fio de nylon. De lá de cima, eles o desceram cuidadosamente até que o mesmo tocasse no ombro de uma moça, aquela do grito, que estava sentada lá embaixo. Ela, por sua vez, ao sentir-se tocada por aquela mão, a segurou com firmeza e em seguida a puxou em sua direção, pensando, num primeiro momento, que fosse alguém que estivesse sentado atrás dela querendo assustá-la.  Só que no instante em que segurou aquela mão solta, foi que percebeu que se tratava de um membro isolado, pois não havia o braço. Desesperada, jogou-a para longe e a partir daí todos sabemos o restante da história.

Dias depois, FN passava pela frente do Trianon quando o porteiro o chamou para contar-lhe o desenrolar daquele acontecimento.  Segundo ele, depois que todas as sessões se enceraram, por volta da meia-noite, um dos faxineiros foi a fazer a limpeza e para seu desespero, ao varrer debaixo de uma das poltronas, achou aquela estranha mão que havia ficado caída no chão durante todo o tempo sem ser percebida.  Diante daquela cena, o pobre coitado saiu correndo e gritando “mão assassina”, “mão assassina”, e não voltou mais.

Ocorre que isso, só descobriríamos depois, como também fui descobrir mais para frente, uma outra estória bizarra envolvendo aqueles dois.  He e Ma teriam colocado numa desafeta deles, um pênis embalsamado em sua bolsa. Quando a moça a abriu para pegar a sua carteira e deu de cara com aquele membro viril, soltou um enorme grito, tamanho foi o susto que levou. Dizem as más línguas, que o primeiro grito foi de pânico, só que num segundo momento, ela teria dado um outro tipo de grito, esse já de espanto e encantamento.  Aqueles dois sujeitos realmente, não eram flor que se cheirasse.

X

Voltando a aquele instante em que nos encontrávamos reunidos em frente ao Edifício Ouro, pouco tempo depois nos dispersamos com cada um indo para suas casas jantar com as suas famílias. Partimos carregando em nossas almas um sentimento de leveza e plenitude pois sabíamos que todas aquelas brincadeiras estavam apenas começando, e isso normalmente sempre se repetia, dia após dia.

Logo mais, voltaríamos a compartilhar daqueles momentos mágicos que só os bons amigos podem desfrutar.  O dia tinha sido uma festa e a noite certamente a seria, também.  Que bom se tudo aquilo fosse eterno, era o meu mais íntimo desejo. Porém, como não podia deixar de ser, lembrei do grande Vinícius e pensei com um sorriso que ia de lado a lado: “Meu Deus, deixe que isso seja eterno, pelo menos enquanto dure”.

Carlos Pessegatti








  



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