Rodinha de samba, não era, não!


Era mais uma daquelas noites quentes de verão e a turma da Esquina Sete novamente lá estava reunida.  Não naquela emblemática esquina que era o ponto de partida e chegada de quase todos que ali se encontravam e onde alguns nasceram e cresceram, mas sim, naquele velho estacionamento onde quase todas as noites eles se postavam enfileirados, sentados ao longo de toda a extensão do seu muro como se estivessem esperando alguma senha para serem atendidos por algum serviço, sabe-se lá, qual. 

Como registro, devo ressaltar que o calor era algo que não está presente nas minhas memórias.  Hoje, como ele me aflige!  Eu simplesmente não o suporto. Dizem as más línguas que quanto mais velhos ficamos, mais frio precisamos.  Para cada ano que passa, um grau centígrado deve ser diminuído para que não nos deterioremos.....rsss  É!, talvez essas pessoas que propagam essa ideia tenham razão: quanto mais o tempo passa, mais conservados precisaremos estar.

Sartre, sobre o calor, certa vez disse: Quando eu era garoto o sol era uma grande festa de luz e vida. Não havia o calor, isso pelo menos não estava gravado em minha lembrança.  Hoje isso é uma presença constante e acachapante.  “Verão!  O céu assombrava a rua, era um fantasma mineral; os transeuntes flutuavam no céu e seus rostos flamejavam”.  Realmente, o calor, embora fosse uma realidade, é como se não existisse. 

Ignorando todo o calor, a cidade brilhava com os seus diferentes matizes de luzes e cores. Não muito longe dali, o vento soprava trazendo do mar uma brisa suave.  A noite parecia estar sempre em festa, tamanha era quantidade de placas brilhando com os seus letreiros em Neon.  E naquele dia, não estava sendo diferente.  

Rivalizando com os brilhos da cidade, estavam aqueles rapazes em mais uma de suas reuniões. Aquele grupo parecia estar se divertindo bastante.  Se não todos, pelos menos alguns.  Os sorrisos e gritos ecoavam pela rua numa mistura de alegria e dor.  Por que dor?  O que estava acontecendo ali?  Qual era a graça ou des-graça daquela insólita reunião?

Antes de relatar aquela cena, vamos tentar entender um pouco a sua origem. Devo dizer que aquela brincadeira deve ter sido ideia de algum...  “parrudinho” do grupo.  Dos mais franzinos, como eu, por exemplo, não poderia ter sido.  Tá louco, sô!?  Eu tenho juízo!  Contudo, é isso aí, meu amigo.  Quando fazemos parte de um grupo, temos que topar, se não tudo, quase tudo.  Os mais fracos acabam sendo coagidos pelos mais fortes.  Aquela ideia só podia ter partido daqueles dois  “monstrinhos”. Os irmão F e N.  

Dessa vez, o grupo estava em pé com todos encostados em um dos muitos carros que ficavam estacionados ao longo da rua.  Eram uns sete ou oito elementos que estavam juntos tendo à sua frente um coitado que ficava de costas para os demais.  E como funcionava aquela tão delicada brincadeira? 

De repente, um daqueles elementos (ou seriam maus elementos?.....rs) desferia um golpe nas costas daquele que estava à sua frente.  Este, por sua vez, teria que adivinhar quem o golpeou.  Se tivesse sorte e acertasse quem foi o seu malfeitor, este trocaria de lugar com ele.  Do contrário, haja pancada. E assim a brincadeira (brincadeira?) continuava com a alternância entre desforrandos e desforrados.

Em alguns casos, era muito fácil acertar aquele que nos golpeou.  Haviam ocasiões que o golpe era tão forte que dificilmente parávamos em pé.  Era só virar, depois de tomar fôlego, obviamente, e apontar para o meliante.  Tinha sido, com certeza, um dos monstrinhos.  E eles se entregavam facilmente porque normalmente caiam no chão de tanto que riam.  Quando isso acontecia comigo, eu ficava tão bravo que na minha cabeça só se passava uma coisa: vingança.  Só que eu nunca conseguia me vingar à altura.  Em primeiro lugar, porque não tinha tanta força assim.  Em segundo, porque eles eram fortes como touros e mal sentiam o meu golpe.  Se nas brincadeiras do Seu Martinho eu apenas saía com as minhas mão ardendo, dessa vez eu ia para casa mal conseguindo respirar. 

Numa dessas vezes, fui eu, o pobre coitado que estava lá na frente tomando soco atrás de soco. Às vezes, chegava a respirar com dificuldade, tamanha era a ira que tomava conta do meu ser.  Em determinado momento, tomei uma pancada tão grande, que caí no chão. Fiquei ruborizado.  Respirei bem fundo e levantando-me com dificuldade, esbravejei.

- Féla da puta!  Só pode ter sido você, seu monstro miserável!!!

Olhei para trás e N também estava caído no chão, só que por outro motivo. Eu porque havia apanhado e ele porque rolava de tanto rir.

- Puta merda, caralho!!!  Precisava bater tão forte assim, - retruquei com indignação.

- Vem pra cá agora, seu Féla da Puta!!!  Vou me vingar.

E quanto mais eu falava, mais o sujeito ria, e isso só aumentava a minha revolta. E o pior, é que ele negava, o cara de pau.

- Não fui eu!, Foi o F. - Respondia ele.

- F um caralho!!!   Foi você.  Você!!! E para de rir, droga!  - repetia eu, louco de raiva.

E o sujeito ria, ria, e rolava no chão de tanto rir. E o que mais me revoltava é que todos acabavam rindo contagiados por aquele sorriso escroto.  Confesso que até eu mesmo sentia vontade de rir, tamanha era a alegria do indivíduo.

- Vocês estão rindo porque não foi em vocês, cacete! - eu esbravejava.

- Vou me vingar - dizia eu, revoltado.
Naqueles dias em que havia sido coagido a participar daquelas brincadeiras, eu, com certeza, não ia embora para casa satisfeito.  Ao contrário, saía dali muitas vezes jurando não mais participar daqueles encontros.  

Só que no dia seguinte, tudo havia sido esquecido.  No fundo, no fundo, eu adorava fazer parte daquela turma e aquelas brincadeiras faziam parte do rol de opções e diversões que nós tínhamos no nosso cardápio de iniquidades, só que aquelas iniquidades não carregavam o peso que alguém de fora, desavisadamente, poderia atribuir.  Todas elas eram, acreditem-me, brincadeiras desprovidas de maldades.

Naqueles tempos, a juventude se reunia para festejar. Tudo era motivo de confraternização.  Diferentemente de hoje em que tantos jovens se reúnem para se digladiarem.  

É verdade!  Vivíamos tempos em que a televisão ainda era incipiente, as propagandas um tanto ingênuas, sem muito poder de persuasão.  Não havia a Internet, nem os jogos eletrônicos e tampouco as redes sociais.  A vida estava mesmo era nas ruas, nos encontros, nas festas, nos bailes, ou até mesmo naquelas “inocentes” rodinhas que, garanto, não eram de samba.

O mundo se virtualizou e as relações, antes fortes, como aquelas que existiam dentro do nosso grupo, se afrouxaram.  Hoje, as amizades estão ligadas a um “conectar” e “desconectar”.  Eu adiciono pessoas à minha rede de amigos (hoje isso se chama “networking”, palavra bonita, em inglês, que os experts chamam de jargão e que serve para designar a nossa rede de contatos)  que mal sei quem é, só porque é conhecido de um amigo que é amigo de um amigo meu.  A facilidade de se ligar às pessoas é tão grande que acabamos fazendo por impulso.  E é inversamente proporcional à carga de energia que colocamos nessa relação. Por isso que elas se desfazem tão facilmente.  E isso ocorre em tudo: nas amizades, nas relações profissionais e pessoais, e até nos casamentos.

Aqueles nossos elos de amizade persistem até hoje, apesar do tempo e da distância.  Algumas dessas pessoas que faziam parte daquele grupo, não se veem há décadas e nem por isso deixaram de ser importantes umas para as outras.  Aquelas brincadeiras, algumas bastante pesadas, diga-se de passagem, só servem para  reforçar  o vínculo que existiu e existe entre nós, por mais paradoxal e estranho que isso possa parecer.

Aquelas sessões de pancadaria não eram rodinhas de samba, isso é verdade.  Contudo, a música que ali reinava ainda continua tocando em nossos corações, e assim será até que eles parem de bater.

Carlos Pessegatti


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