Nelson, de Aracaju à Bahia
Naquele sábado, havíamos nos preparado para irmos a um dos bailinhos da cidade. Vestimos as nossas melhores “becas”, todas elas, obviamente, estampadas em xadrez ou com listras nas cores mais diversas. Elas haviam sido confeccionadas pelo nosso grande alfaiate Macedo, uma das bichas mais desvairadas daqueles tempos. Como de costume, nos encontramos na esquina da Rua Sete de Setembro, local que normalmente funcionava não só como ponto de encontro, mas também de onde se davam as partidas e chegadas.
Hoje
em dia, com essa história do
“politicamente correto”, o mundo ficou mais chato e careta e aa pessoas já
não
podem mais falar esse tipo de coisa, como chamar alguém de bicha, por
exemplo,
pois isso pode revelar preconceito e dar até cadeia já que o indivíduo
pode
ser chamado de racista ou ser suspeito de estar praticando homofobia.
Agora, precisamos ter muito cuidado antes de sairmos por aí falando o que pensamos,
pois o discurso do “politicamente correto” em voga hoje em dia, é, na grande maioria das vezes,
bastante
hipócrita pois se percebe que por trás dele existe uma falsa moral
escondida
e que se formos parar para pensar, chegaremos à conclusão de que isso
poderá vir a se
transformar em algum tipo de censura, como de fato já está funcionando.
O certo é que, pelo fato de não mais se permitir que algumas coisas possam ser faladas, fica a impressão de que tudo o que foi dito lá atrás estava errado e que hoje, sim, estaríamos vivenciando uma época onde reina a mais perfeita alteridade e respeito ao próximo e onde a civilização teria, enfim, chegado a um estágio de plena retidão moral, quando na verdade, sabemos bem, é justamente o contrário, Talvez na História, nunca as sociedades tenham sido tão hipócritas e cheias de preconceitos e ódio como agora. Na era do pós-tudo e do gozar a qualquer custo, todas as coisas tornaram-se supérfluas e até a própria vida humana tornou-se efêmera e destituída de sentido.
O certo é que, pelo fato de não mais se permitir que algumas coisas possam ser faladas, fica a impressão de que tudo o que foi dito lá atrás estava errado e que hoje, sim, estaríamos vivenciando uma época onde reina a mais perfeita alteridade e respeito ao próximo e onde a civilização teria, enfim, chegado a um estágio de plena retidão moral, quando na verdade, sabemos bem, é justamente o contrário, Talvez na História, nunca as sociedades tenham sido tão hipócritas e cheias de preconceitos e ódio como agora. Na era do pós-tudo e do gozar a qualquer custo, todas as coisas tornaram-se supérfluas e até a própria vida humana tornou-se efêmera e destituída de sentido.
Deixando de lado todo esse discurso moralista, o
certo é que boa parte dos garotos daquela época, que viviam num mundo ainda
incipiente de marcas e modismos, costumava fazer as suas roupas naquele
pseudo-famoso costureiro dos pobres.
Com todos devidamente vestidos
e com as suas cabeleiras perfeitamente glostorizadas, lá fomos
nós cheios de hormônios em busca de uma noitada de sarros (expressão
utilizada no nordeste que significa roçar-se em alguma donzela com intuitos
libidinosos), lembrando ainda que elas seriam regadas a muito Ron
Montilla com Coca-Cola. Era o que o dinheiro daqueles, minto, nós, pobres coitados,
dava para pagar.
Após fazermos uma breve reunião na esquina da
Sete, resolvemos que iríamos ao Clube Português pois alguém havia falado
que naquela noite iria acontecer um daqueles encontros de jovens, com bandas
tocando ao vivo e tudo o mais. Atravessamos a Av. Conde da Boa Vista
e fomos para o ponto de ônibus que ficava do outro lado da avenida, em frente ao
Edifício Iran. Tomamos o primeiro “elétrico” com destino ao bairro de
Campo Grande pois no seu trajeto ele passava bem no início da Av. Cons. Rosa e Silva, nosso destino.
Ao chegarmos lá, descobrimos que o evento que
estava programado para acontecer naquele local não tinha nada a ver com aquilo que
buscávamos. Um rapaz que se encontrava na portaria do clube nos
informou que estava tendo uma festa no Círculo da Polícia Militar, localizada a
algumas quadras dali. Atravessamos a Praça do Entroncamento, que ficava na
esquina da Av. Rosa e Silva e seguimos em direção à Av. Rui Barbosa.
Depois
de alguns minutos caminhando por aquela
avenida repleta de palmeiras e margeada por dois grandes colégios, o
Agnes e o São Luiz, chegamos finalmente ao clube. Era uma casa antiga,
provavelmente construída no início do século passado e que ficava um pouco
recuada. Na sua frente, ela era cerceada por um muro de alvenaria de
aproximadamente um metro e meio de altura, send que no restante, era
completada por grades de ferro em estilo rococó. A casa era rodeada
por uma enorme varanda cheia de imensas janelas e revestida com azulejos
portugueses em seu piso. Entre o portão da rua e a porta de entrada da
casa,
havia um átrio de aproximadamente uns oito metros margeado por pequenos
jardins
que desembocava numa escada de uns cinco degraus que levava até a
entrada
principal. Aparentando o estilo de um antigo sobrado, a casa tinha
dois andares. No térreo, havia um amplo salão iluminado por belos lustres
que
pendiam brilhantes do teto, e ao fundo, existia uma linda escadaria que
levava ao andar
superior. Era neste andar que estava se desenrolando a festa.
Após nos informarmos com os seguranças sobre o
valor do couvert e saber o que de fato iria acontecer naquela
noite, nos afastamos um pouco, como se fôssemos comer algum cachorro quente num
daqueles carrinhos parados ali na calçada, e confabulamos sobre o que iríamos
fazer pois o preço da entrada com certeza faria uma baixa grande nos nossos
parcos recursos, impedindo que sobrasse algum dinheiro para que pudéssemos
consumir alguma bebida no salão.
Chegamos à conclusão, um tanto óbvia naqueles
tempos de vacas magras, que teríamos que entrar de forma
clandestina. Nos afastamos um pouco da portaria para averiguar as
redondezas e assim poder traçar uma estratégia de invasão.
Observamos que ao lado da casa havia um muro
muito extenso que pertencia ao colégio São Luiz, e naquele ponto onde fazia
vizinhança com o clube, ele não era tão alto assim. Olhamos por uma
fresta de um imenso portão e vimos que ao longe havia um enorme prédio de dois
andares que se encontrava totalmente às escuras. A impressão que
se tinha era que não havia ninguém ali. Tudo seria muito fácil se
não tivéssemos escutado uma porção de latidos nos fundos da
casa. Pela quantidade de latidos simultâneos, é bem provável que ali existisse uma matilha, talvez não muito grande, mas que deveria servir para vigiar aquela propriedade.
Isso, a princípio, nos desencorajou um
pouco. Digo, a princípio, porque F estava entre nós e quando ele se
encontrava presente no grupo, alguma emoção se descortinava no
horizonte. Sabe como é que é, não é mesmo? “Neguinho” com
pinta de marrento sempre é metido a valente. Ele dá a ideia e a tropa acaba
seguindo seus tenebrosos planos. E foi o que aconteceu. Pelas suas
observações, ele percebeu que aqueles cachorros estavam bastante longe e que se
entrássemos sorrateiramente, eles não nos escutariam. Na hora que
ele deu a ideia, e o pior, o grupo acatou, entrei em pânico e pensei com os
meus ornados botões:
- É hoje que me estrepo!
Naquele dia, estávamos em torno de umas sete
pessoas e não seria eu aquele que iria bancar o medroso diante de todos, por
isso aceitei segui-los naquela arriscada empreitada. Qual era o
plano do marrentinho? Pularíamos o muro do colégio e seguiríamos
caminhando em direção ao fundo, margeando o muro que dividia as duas casas até
chegar a um ponto onde fosse possível pulá-lo e assim adentrar ao clube.
Assim que entramos no colégio, caminhamos em
fila indiana em direção aos fundos da casa. Falávamos baixinho com
medo de que os cachorros, que não paravam de latir, nos escutassem e viessem em
nossa direção. Lá pelas tantas, quando estávamos quase chegando ao
local onde faríamos a nossa investida, ouvimos um latido forte que nos deu a
impressão de que um daqueles terríveis au au, haviam percebido
a nossa presença. Num piscar de olhos, nos vimos todos correndo, com
uns sobre os outros, em direção à rua.
Saltamos aquele muro, que não era tão baixo assim, como estivéssemos saltando por cima de uma pequena mureta. Já do outro lado, ainda aflitos e ofegantes, começamos a contar os pequenos prejuízos que já se faziam notar em nossas roupas, cabelos e também, porque não dizer, auto-estimas.
- Puxa, cara, por pouco não rasguei a minha camisa! - falei quase sem ar.
- Me arranhei todo - bradou ML, também bastante ofegante.
- Marca não, moçada, marca não!! - voltei a dizer tentando ver se fazia com que pudéssemos desistir daquela aventura.
- Você viu? os cachorros vieram em nossa direção, caráio!!! - completou SN.
- Puta merda, véio! Nunca pensei que conseguisse pular um muro de quase dois metros de altura em apenas dez segundos. Acho que bati o recorde - falou F, sorrindo.
Ficamos ali por algum tempo do lado de fora
tentando nos recompor daquele susto. Enquanto isso, como era de
costume, ríamos que nem loucos cada um contando um detalhe não percebido pelos
demais. Os latidos, que anteriormente haviam se intensificado, começaram a
diminuir chegando a ficar quase que completamente em silêncio. E aí
F voltou a carga
- Moçada, vocês não vão desistir, né? Vamos tentar de novo! - Concluiu.
- Moçada, vocês não vão desistir, né? Vamos tentar de novo! - Concluiu.
- Marca não, marca não F! Cê
viu... os caninos quase nos pegaram – retruquei tentando desestimulá-lo.
- Larga de ser
medroso, cara! Eles nem chegaram a vir até a gente – respondeu F,
bravo.
Depois de uma calorosa reunião para discutir
os próximos passos, o grupo resolveu fazer uma nova investida. Eu,
que já estava com medo antes, fiquei ainda mais apavorado. Contudo,
de nada adiantaram as minhas justificativas visto ser a única voz dissonante
ali. Prevaleceu a decisão da maioria e lá fomos nós mais uma vez.
Pulamos
novamente o muro do colégio e sorrateiramente caminhamos em direção aos fundos
do clube. Eu era, obviamente, o último da fila. Depois de
termos caminhado uns dez metros, chegamos a um ponto onde o muro que dividia os
dois terrenos era relativamente baixo. Fizemos uma primeira
tentativa de cume para poder observar o movimento do outro
lado. Como tudo parecia tranquilo, fomos, um a um, saltando para
dentro do clube até que todos tivessem completado a
passagem. Superado aquele primeiro obstáculo, o próximo passo seria
caminhar pela varanda lateral da casa até chegarmos à porta principal.
Quando interpelamos os seguranças sobre o
valor do ingresso, logo no início, pudemos perceber que depois deles não havia
mais ninguém. Sendo assim, o plano era chegar até a frente do clube
e entrar sorrateiramente para que eles não percebessem a nossa presença.
Só que naquele exato momento, para nosso azar,
começou a chover e os caras que antes se encontravam no portão recuaram para
debaixo da marquise, se postando bem em frente à porta principal.
Foi um imprevisto que alterou completamente os nossos planos. Ali onde nos
encontrávamos, não tinha como entrarmos sem sermos vistos. Obviamente, que
eles, os porteiros, iriam nos reconhecer e perguntar de onde tínhamos vindo, já
que aquela parte da casa estava proibida aos frequentadores. Ficamos
numa verdadeira sinuca de bico.
Voltamos em silêncio para a parte dos fundos e lá nos deparamos com um imenso quintal. Demos a volta
por trás da casa até chegarmos ao outro lado onde avistamos uma escada bem
estreita que dava acesso a uma pequena porta, que de tão pequena seria necessário nos agacharmos para poder adentrá-la.
Lentamente e em silêncio, subimos aqueles
degraus até alcançarmos aquela pequena entrada. Só que para a nossa surpresa, assim que
a abrimos, presenciamos algo totalmente inesperado e inusitado. Aquela
porta simplesmente dava acesso aos fundo do palco onde a banda se apresentava.
- Ei, cara!, o que é que vocês estão fazendo
aí? Cai fora! Gritou o baixista que o foi primeiro que
nos avistou.
- Quieto aí, rapaz! Não fala nada, não! –
respondeu SN para o carinha.
Em seguida, ele foi avisando aos demais
membros do conjunto e nós fizemos a única coisa que teríamos
que fazer. Atravessamos abaixados pela lateral do palco e pulamos
diretamente para o salão de dança. Um único detalhe: o salão estava
quase que totalmente vazio e praticamente todos os ali presentes perceberam a
nossa desastrada e triunfal chegada. Triunfal, porque quer queira, quer não,
havíamos atingindo o nosso objetivo, que era o de entrar no clube, e ainda por cima sem
pagar. Desastrada, porque ela não poderia ter acontecido em um lugar pior.
Nos espalhamos pelo amplo salão para não dar
tanto na cara que havíamos entrado de forma irregular e assim esperar para ver
se passaríamos desapercebidos. Eu procurei sentar-me numa das muitas
mesas que rodeavam o salão, a grande maioria, completamente vazias, e fiquei
espreitando o movimento.
Só que aqueles carinhas do
conjunto acabaram avisando para uns seguranças que estavam por ali por perto e
um imenso buxixo começou a se formar. Começamos a circular pelo
salão, cruzando com um aqui e outro ali para tentarmos tirar a temperatura do
ambiente.
- Os caras do conjunto avisaram os
seguranças. Circula, circula! – falou ML ao cruzar comigo.
- Acho que os seguranças daqui de cima foram
chamar os de lá de baixo – falou Jo num desses encontros.
- Sujou, sujou! – falou F, já demonstrando
ares de preocupação.
Percebemos que o clima havia esquentado e que
não tínhamos mais condições de continuarmos ali. O jeito era sair de
mansinho, antes que os caras nos localizassem. Conseguimos despistar
os estraga-prazeres que de forma enlouquecida procuravam por nós.
Descemos aquela enorme escadaria e caminhamos
rumo à porta de saída, que para nossa surpresa, naquele momento, estava vazia.
Como os porteiros haviam subido para nos procurar, acabamos encontrando o caminho
completamente livre para a nossa escapada, que também seria triunfal, mas, haveremos de convir,
vexatória.
Assim que chegamos à calçada, avistamos de
longe os seguranças que tinham corrido para nos alcançar. Só que já era
tarde. Já estávamos sãos e salvos. Para não ficarmos
totalmente por baixo, gritamos todos em alto e bom som:
- Nós entramos, seu trouxas, entramos! - gritamos estufando o peito ao mesmo tempo em que degustávamos um certo sabor de vitória.
- Vão embora daqui seus
moleques – respondeu um sujeito com pinta de armário.
E lá fomos nós correndo com ares de peraltas
por aquela imensa rua deserta, gritando e sorrindo como verdadeiros moleques.
Àquela hora, a chuva que havia estragado toda nossa festa, também tinha ido
embora. Fiquei com a sensação de que ela chegara só para frustrar o
nosso dia.
Poucas coisas eram capazes de estragar a nossa
alegria naqueles dias festivos e não seria uma chuvinha qualquer que iria
conseguir.
Voltamos pra casa felizes da vida, cantando
e nos divertindo como se a nossa noite tivesse sido um imenso sucesso.
Àquela hora, os ônibus já haviam parado de
circular e nós tivemos que voltar a pé, caminhando por quase dois quilômetros
até chegarmos à esquina Sete. Ficamos ali ainda por um bom tempo
confabulando e contando as nossas peripécias até a hora em que já cansados e
extenuados resolvemos ir para as nossas casas dormir o sono dos justos.
Deitei aquela noite com uma felicidade rara
pois toda a tensão que havia vivenciado horas antes, mais uma vez acabara,
e como sempre, numa completa paz. Era certo que no dia seguinte
eu iria novamente me encontrar com aqueles rapazes para aprontarmos mais algumas poucas e
boas.
Sei, porém, que se alguém naquela mesma noite
me sugerisse fazer uma aventura igual, a minha resposta teria sido uma
só: Nelson, de Aracaju à Bahia!, ou seja... Nem fudendo!
Carlos Pessegatti
Pois é Carlinhos eu estava junto..não lembrava mais de todo esse desenrolar...kkkk essa época umas de nossas curtições era entrar nos bailes dos clubes de Recife, pulando muros , pelo fundo ,por cima, sei lá , a gente dava um jeito ..mesmo com dinheiro no bolso..
ResponderExcluir